Há conversas assim: por muito que queiramos conduzi-las por um determinado caminho, acabam invariavelmente por ter sempre o mesmo destino. O relato da conversa que se segue é disso um belo exemplo: por muito que nos tenhamos esforçado, andou sempre à volta da mesa.
O dia tinha sido tórrido e a noite caíra mais do que amena naquela varanda sobre o Douro. Na mesa, já só restavam os “destroços” das sobremesas e a garrafa de vinho tinto. Pelas 23h30, Rui Paula (que nesse serão tinha tido um D.O.C. de lotação esgotada) puxou uma cadeira, pediu água fresca e abriu o passaporte. Em abono da verdade, não tem assim muitas histórias para contar e as que tem giram todas à volta dos tachos.
Se quisermos ser rigorosos, houve apenas uma grande viagem, ainda que com vários capítulos, na vida do chefe de cozinha do D.O.C., o famoso restaurante de Folgosa, em Armamar. Rui Paula teria “uns 20 ou 21 anos”, conheceu um cozinheiro e pouco tempo depois tinha embarcado num navio de pesquisa de petróleo americano. “Apanhei um comboio do Porto para Lisboa, um avião de Lisboa para Londres e outro para o Japão. E embarquei no Japão”, recorda. E depois escreveuse uma história a bordo que começou literalmente de baixo.
“Inicialmente, fui lavar louça grossa e só mais tarde fui promovido à louça fina.” No navio trabalhavam 450 pessoas e eram os portugueses que cozinhavam “para toda aquela gente”, que incluía filipinos, americanos e franceses.
As viagens duravam dois meses em alto mar, outros tantos em terra e o chefe do D.O.C., entretanto promovido, andou “nesta vida durante dois anos”. “Quando parávamos nos portos, embora fossem só três dias, dava para conhecermos de tudo: as cidades, as pessoas, e a vida que lá se vivia. Era nestas paragens, por exemplo, que bebíamos, uma vez que não havia bebidas alcoólicas a bordo.” É do Japão que Rui Paula guarda as melhores recordações. “Marcoume muito, sem dúvida. Tóquio é uma cidade que até assusta, pela sua dimensão e grandeza. Lembro-me que havia hotéis fabulosos, de haver uma cama que dava à vontade para sete pessoas. Lembro-me da quantidade assinalável de limusinas no aeroporto. E lembro-me que me fascinei logo com a sua gastronomia, talvez porque a única grande influência que teve foi a portuguesa, o que se nota nomeadamente ao nível das tempuras.” É por esta razão que Rui Paula quer acrescentar em breve mais um carimbo do Japão ao seu passaporte. Os que lá vemos têm a data de 1990 e é imperioso que sejam actualizados.
Ainda a bordo do navio de pesquisa Rui Paula passou por Espanha, pelos Estados Unidos, pela Coreia do Sul... “Foi a primeira grande viagem que fiz e foi uma coisa fantástica. O trabalho era duro mas bem pago, 300 contos por mês, e tínhamos a vantagem de poder conhecer mundo.” Depois dessa experiência, ficou claríssima a vocação do chefe do D.O.C. “tinha de ser cozinheiro, não havia dúvidas”. Autodidacta, estagiou com o chefe Miguel Castro e Silva na Casa da Calçada, em Amarante, e acabou por montar o Cêpa Torta, em Alijó. Mais tarde, abriu o D.O.C., uma aposta claramente ganha na margem do Douro. E é precisamente o trabalho no D.O.C. que o impede de fazer todas viagens que gostaria. As que faz têm sempre a gastronomia na mira.
“Viajo com a perspectiva da comida.
Viajar para mim é comer, ponto final. Dou-lhe um exemplo: há uns tempos andava chateado por não estar a aprender nada. Fui a Paris gastar dinheiro a comer. Fui ao L’Atelier, do chefe Joël Robuchon, e pensei que ainda tenho muito que evoluir. Vou lá voltar outra vez, vou jantar e venho logo embora. Para mim viajar é isto. Não me interessa gastar dinheiro num bom hotel, interessa-me gastar dinheiro para poder comer e aprender com o que como. Não sou nada disso de viajar e comer uma saladinha.” Mais uma achega: “Conhecer a comida de um país diz-nos muito do que é esse país. Comer é um acto cultural.” As viagens de avião são, no entanto, uma pequena pedra no sapato de Rui Paula. Não por ter medo de voar, antes por ter medo do que vai comer nas nuvens. “A comida de avião é simplesmente horrível. Na última viagem para Paris, deram-me uma sanduíche de vitela horrorosa. Prefiro comer umas bolachas”, protesta. “A comida de avião piorou muito e não entendo porquê”, sentencia. Perguntamoslhe se aceitaria criar menus para servir a bordo e Rui Paula responde prontamente: “Claro, mas dentro das minhas condições de trabalho.
Com alma.” Ok, já percebemos. Rui Paula é “obcecado com o trabalho” não precisaria de dizê-lo, mas faz questão e por isso são poucas as viagens de lazer que faz. “Férias, férias, não sei o que isso é, mas não me queixo”, diz. Ainda assim, abrimos-lhe outra vez o passaporte e encontramos um carimbo da Tunísia, com data de 1999. Foi com a família, gostou mas não repetiu a dose. No Verão deste ano, os dias de descanso foram no Algarve. Com a comida outra vez debaixo de olho, claro: esteve no Vila Joya, na praia da Galé, Algarve, cujo restaurante está cotado com duas estrelas Michelin, graças à arte do chefe Dieter Koschina.
Bilhete de identidade
Rui Paula nasceu no Porto a 3 de Junho de 1976. Andou num seminário, dos dez aos 15 anos, em Beja e lá cresceu “talvez depressa de mais”. “Não brinquei com carrinhos. Aos onze anos fazia a barba. Um menino-homem feito à pressa.” Concluiu o secundário no liceu Alexandre Herculano, no Porto, e ainda frequentou o primeiro ano de um curso superior de Marketing. Não o levou por diante porque percebeu que o que queria era cozinhar. “Aos 17 anos, fui para Paris. Fiquei uns tempos, o dinheiro acabou-se e pedi ao meu pai para me mandar mais. Não mandou. Fui trabalhar, vendia livros nos Champs-Elysées e cozinhava.
Fiquei lá seis meses.” Abriu o Cêpa Torta, em Alijó, depois o D.O.C., em Armamar, e embora não troque “o Douro por nada”, prepara-se para abrir um restaurante no Porto, em Fevereiro do próximo ano, o D.O.P. Em Julho passado, o livro “Rui Paula Uma Cozinha no Douro”, com textos de Celeste Pereira e fotografias de Nelson Garrido, fotojornalista do PÚBLICO, foi distinguido com o Gourmand World Cookbook Award para o melhor livro de estreia na área da culinária.
As viagens de eleição
Há só uma: a que fez, nos anos de 1990, a bordo de um navio de pesquisa de petróleo americano, e que lhe permitiu conhecer Tóquio, uma cidade pela qual cultiva um fascínio incondicional.
Carimbo mais desejado
São dois e ainda não os tem: o do Chile e o do Peru. Sem surpresas, as motivações para visitar estes dois países são gastronómicas. “Têm uma variedade enorme do uso da batata, de que não sou ainda muito conhecedor.”