Fugas - Viagens

Adriano Miranda

A caminho de Santiago

Por José Augusto Moreira

José Augusto Moreira faz a revisão da lenda que tornou Compostela o lugar para onde todos os caminhos convergem. Não esquecendo quão rica arquitectonicamente é a cidade galega.

Todos os motivos são válidos e todas as razões são boas. Hoje vai-se a Santiago de Compostela em peregrinação ou como turista e pelas mais diversas motivações, mas tudo começou com a fé e a expansão do cristianismo. Não é ainda hoje muito clara - e provavelmente nunca será - a forma como se estabeleceu a conexão entre a Judeia e a Galiza, ou seja, entre os locais do nascimento e do culto àquele que é tido como um dos mais empenhados apóstolos de Jesus Cristo e que mais se distinguiu na prédica inicial do cristianismo. A questão torna-se ainda mais aliciante quando é ponto assente que São Tiago se tornou mártir em Jerusalém, onde foi degolado no ano 44, e a tumba com os seus restos mortais terá sido milagrosamente descoberta em Compostela já no século IX, no ano de 830.

Como destino, Santiago de Compostela é seguramente o mais antigo e conhecido do velho mundo, uma atracção que há muito ganhou carácter planetário, principalmente em ano santo ou Xacobeo, quando, como agora acontece, a data da celebração ao santo, o dia 25 de Julho, coincide com um domingo. O calendário faz com que este seja um ciclo incerto, que tanto pode implicar intervalos de cinco, seis ou onze anos. O último ano jacobeu foi há seis anos e o próximo vai celebrar-se apenas em 2021.

Para além da catedral e das peregrinações, a cidade é também um repositório da cultura e gastronomia galega e tem um extenso e preservado centro histórico de raízes medievais classificado como património da humanidade. Há uma vida cultural vibrante, bares, animação e criatividade, que resultam em grande parte da influência da população estudantil, que representa cerca de um terço dos habitantes da cidade.

Localizando-nos no início da era cristã, o mundo tinha epicentro em Roma e a Galiza, onde ficava o fim da terra (Finsterra), era o seu limite. A glória consistia, portanto, em expandir a fé até ao fim da terra, sendo que ao apóstolo Tiago é atribuído um papel de grande relevo e eficácia na divulgação da boa-nova. O Novo Testamento descreve-o como Tiago Maior, filho de Trueno, aquele cuja voz se impunha e cativava os povos durante as prédicas.

Ao período de divulgação e afirmação cristã seguiu-se a sua expansão, o que significa também o propósito de conquista das terras a sul e a consequente subjugação dos hereges muçulmanos. É o tempo que medeia entre o império romano e a idade média; entre a degolação do mártir Tiago e a milagrosa descoberta do sepulcro com as suas ossadas. Os historiadores referem-se ao achado como uma genialidade da Espanha cristã, então necessitada de um efeito que lhe fornecesse sentido unitário e a motivasse para a expansão a sul. 

Segundo a lenda, foi alertado pelas informações de um eremita sobre a ocorrência de fenómenos sobrenaturais que o bispo Teolomiro acabou por encontrar na localidade de Compostela o túmulo do apóstolo, no ano 830. Os seus discípulos terão transportado o mártir até ao fim da terra, numa caminhada que simbolizava ao mesmo tempo a expansão do domínio cristão e a meta da salvação. O templo erguido para veneração das ossadas, era, a partir de então, o local que todos almejariam um dia alcançar. Mesmo que o Tiago caminhante evangelizador e pacífico tenha virado herói conquistador e matamouros, a propósito da expansão medieval e da subjugação dos infiéis muçulmanos, nada foi capaz de suster o crescimento do templo e da cidade medieval que em seu redor se desenvolveu desde então.

A catedral é hoje o centro para onde convergem todos os visitantes e um dos maiores símbolos mundiais do turismo religioso, e não só. Durante a Idade Média, o templo com as ossadas funcionou essencialmente como santuário, ao redor do qual foram sendo construídas sucessivas capelas. O primitivo mausoléu acabaria até por ser demolido para dar lugar à edificação da catedral românica, no final do século XI. A cripta, as torres e o celebrado pórtico da glória foram edificados no século seguinte.

É uma cidade opulenta, onde se multiplicam palácios, conventos e mosteiros, aquela que cresce depois à volta. Submergida por tanta variedade e riqueza arquitectónica, a catedral foi perdendo o protagonismo que só seria recuperado depois com a vistosa construção barroca da fachada actual, sob a qual permanecem ainda todas as anteriores construções.

Para compreender Compostela, a sua história, as suas lendas e a evolução até à actualidade, o melhor é mesmo começar pela catedral. Há visitas-guiadas a toda a hora, algumas delas incluindo um passeio pelos telhados, o melhor local para se perceber as linhas de evolução do templo e da cidade que o rodeia. Vale mesmo a pena e não há problemas de segurança ou com vertigens: as coberturas são em lajes de granito e é possível passear como se de um vulgar passeio na rua se tratasse.


Os caminhos da cidade: Vaguear por ruas e ruelas 

Dois conselhos: esqueça o carro e não queira ser muito criterioso. Os automóveis praticamente não entram nas ruas do centro histórico de Santiago de Compostela e para visitar a cidade o melhor é meter-se na onda e vaguear por ruas e ruelas mais ou menos ao sabor do improviso. Não é que não seja útil a utilização de um guia, o problema é que se quiser seguir as instruções e estar atento a todas as dicas arrisca-se a gastar boa parte da jornada apenas numa única artéria e ter dificuldade em sair das imediações da catedral, tal a densidade de edifícios, pormenores e locais de interesse.

O melhor é flanar e, tal como quem se atira para as ondas do mar em tarde quente, deixar-se envolver na multidão de turistas, peregrinos locais e estudantes que por ali andam também. Como orientação básica haverá que ter em conta três pontos de referência, a partir dos quais se liga toda a rede de ruas e ruelas do casco histórico. 

A norte o Obradoiro, a praça para onde está voltada a imponente fachada barroca da catedral; a sul o Toural, de onde partem as ruas de maior movimento e interesse para o visitante; e a nascente a Porta do Caminho, o histórico acesso à cidade medieval para os peregrinos que trilhavam os caminhos Francês e o do Norte.

O Obradoiro é o ponto de chegada de todos os peregrinos e além da escadaria e fachada da catedral há também as imponentes fachadas graníticas do Palácio de Raxoi e do Hostal dos Reis Católicos. O primeiro é hoje o símbolo do poder político galego e utilizado apenas para cerimónias de grande simbolismo ou protocolo, enquanto o edifício do original hospital dos peregrinos acolhe actualmente uma das mais simbólicas unidades hoteleiras da rede de Paradores de Espanha.

Saindo da praça pela fachada sul acede-se a Praça de Fonseca e depois à Rua do Franco. A zona está pejada de bares e restaurantes que se animam especialmente nos finais de tarde. Ao lado está a pequena Rua da Rainha, onde não há uma única porta que não seja para comes e bebes. No final da Rua do Franco, um pouco para a esquerda, está a Praça do Toural, nome que nada tem a ver com actividades taurinas (estamos em terras celtas), mas antes porque era o local onde na idade média se mercadejavam os toros de madeira. Tal como acontece com a praça homónima de Guimarães, é partir daqui que se acede às mais importantes e estruturantes artérias do centro histórico. .

Tertúlia e comércio

Na Rua do Vilar, que se alonga até à praça traseira da catedral, há umas belas arcadas medievais debaixo das quais se acolhem alguns dos cafés e casas comerciais de maior tradição da cidade. Aqui fica também o principal posto de turismo (nº 63), onde é disponibilizada informação e documentação sobre Santiago e todo o tipo de actividades. Mesmo ao lado fica o pequeno Café do Suso, lugar de tertúlia e de encontro da intelectualidade. Serve também excelentes tartes e bolos de confecção caseira e nos pisos superiores do edifício medieval funciona ainda um pequeno hotel. Mais à frente está o cosmopolita Café Casino, muito frequentado pelos turistas devido ao estilo clássico e glamoroso, com cadeirões e piano de cauda no meio do salão.

A partir do Cantón do Toural sai também a Rua Nova, que corre paralela à do Vilar e de características idênticas. Mais à frente está a Rua das Orfas, que se prolonga depois pela da Caldeireira e a do Perguntório, sobretudo dedicadas ao comércio e onde se encontram as mais modernas marcas e tendências.

É a partir desta zona, um pouco mais para nascente e já nas imediações da Porta do Caminho, que fica o Mercado de Abastos. Além da austera construção em granito, o colorido das bancas, a riqueza de peixes e mariscos, hortícolas e legumes fazem dele um local de visita quase obrigatória. É verdade, trata-se de um mercado, mas que, depois da catedral, é o segundo lugar mais visitado da cidade. Por alguma coisa há-de ser.

Voltando ao emaranhado de pequenas ruas, basta seguir o instinto até alcançar a Praça de Cervantes, de onde se voltam a avistar as torres da catedral.

Tapas e vinhos

É famoso o estilo petisqueiro das tapas galegas e Santiago é o seu reino. São várias as lendas sobre a origem desta moda de pequenas porções para acompanhar uns goles de bom vinho, mas nada se sabe ao certo. Uns atribuem-na ao rei Afonso X, o Sábio, a quem o médico terá recomendado que emagrecesse. Para satisfazer a gula terá ordenado que lhe servissem pequeníssimas porções, mas mantendo todo o sabor e qualidade das anteriores refeições pantagruélicas. Para outros tratou-se tão-só de um expediente dos operários das obras, que não podiam comer muito durante as horas de trabalho, enquanto outros crêem ainda que tudo resultou de pedidos dos estudantes de Santiago por falta do dinheiro necessário para as doses normais.

Seja lá pelo que for, o certo é que as tapas são uma instituição e cada uma melhor que a anterior. Como um roteiro seria tarefa impossível, o melhor é mesmo deixar apenas algumas indicações, mas há seguramente outros tantos locais de idêntica ou melhor qualidade. Começando pelas imediações da catedral, há uma ruela no prolongamento da Rua da Rainha onde fica o Gato Negro, uma espécie de tasca com ambiente do século passado onde se servem delícias. Há portas de correr, pequenas mesas com portas de vai-e-vem, pipas e vinho servido à tigela no balcão.

Junto à Praça do Toural (Rua do Vilar, 75) está a Casa Negreira, mas que todo o mundo conhece por "O Patata", por ter sido o primeiro a ousar servir batatas para acompanhar um copo de vinho. O local é exíguo e muito concorrido e ao início da noite é normal ter que aguentar à porta à espera que alguém saia para caber lá dentro.

Não muito longe, e num estilo mais contemporâneo, há o Hotel Gastronómico Trânsito dos Gramáticos (Trânsito do Gramático, 1). Ambiente entre o bistrô e o pub, com comidas elaboradas e criteriosa carta de vinhos. Junto à Porta do Caminho, mas já fora do centro histórico, está O Catro (Rua de S. Pedro, 4), e mais perto da parte traseira da catedral fica A Curtidoria (Rua da Conga, 2-3).

Para quem queira sair da zona histórica, a vida na zona moderna da cidade desenvolve-se em torno da Praça Roxa (Vermelha), onde estão as ruas de maior actividade comercial. No que respeita a comidas e bares, a Taperia Castelão (Rua Nova de Abaixo,7), La Viura (na mesma rua, quase em frente), La Cavita (San Pedro de Mezonzo, 9), ou A Viña de Xavi (Fernando III O santo, 4), são boas opções.

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