- Gabriel García Márquez não nasceu em Aracataca! Nasceu em Macondo. Todas as reportagens que tenho lido, incluindo de jornais estrangeiros, fazem referência a Macondo.
Do outro lado da linha, a milhares de quilómetros de distância, as palavras saíam com rara convicção. Imaginava o espaço amplo onde aquele amigo de longa data me escutava, rodeado de livros e de capas nas paredes que pareciam ter vida, de fotografias de escritores. E, à medida que o ia ouvindo, sempre com atenção, recordava, com uma clareza que até a mim me espantava, a imagem de José Saramago e a inscrição onde, quase todos os dias, ele deixava os seus olhos pousar: "Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo."
A chamada caiu.
Reinava a calma na cidade e uma brisa entrava pela janela quando Ângela Sarmiento Llanes, ainda meio ensonada, com os seus cabelos e olhos negros, vestindo uns calções curtos, me despertou dos meus pensamentos sobre o homem que, de forma inigualável, deu expressão ao realismo mágico.
Em Gabo, folheando as velhas páginas dos seus livros, vive-se em permanente tensão, tentando perscrutar onde acaba o mundo vivido e onde começa o mundo sonhado. Agora, no momento em que o dia ainda se espreguiçava, desejava mergulhar nesse mundo que teima em confundir-nos, e pensava fazê-lo de comboio.
-Temos carris mas não temos comboio!
A afirmação, produzida no interior da exígua recepção da pensão, naquela rua onde chegava o cheiro do mar, fez-se acompanhar de um sorriso irónico. Deixei Santa Marta aos primeiros alvores do dia, quando a cidade ainda se entregava ao seu torpor, mas não sem antes beber um café.
-Com leite ou tinto?
Hesitei, perante a pergunta do vendedor.
-Tinto!
Num copo de plástico, o café negro fumegava.
Entrei na buseta, pensei em todas as brasileiras do mundo, sem excepção, aconcheguei-me num dos seus estofos de veludo, limpos e confortáveis, senti o ar condicionado e, depois de ter pago sete mil pesos, permiti que os meus olhos vissem o que eu, se fosse leitor, não acreditaria no plasma, para uma plateia entusiasta, passava o filme Comboio em Fuga. Por instantes, ainda que breves, resgatei à memória o nome de Ângela Sarmiento Llanes. À minha esquerda, onde o sol brilha timidamente, correm, na sua orfandade, os carris percorridos, de quando em vez, pelos comboios que transportam carvão. Ao fim de quase duas horas, a buseta detém-se e o motorista faz-me sinal. À minha frente, posso ler: Es la hora de querer a Aracataca. A primeira impressão sobre a cidade de mais de 50 mil almas faz-me lembrar uma frase que não me pertence:
-Linda de feia!
Há casas térreas de cores alegres de um lado e do outro das ruas atravessadas por cabos. A música ecoa como um canto solitário e, à sombra das árvores, ao longo dos passeios, descansam velhinhos, indiferentes à dinâmica matinal das velhinhas que limpam a poeira. A manhã avança, fremente, azul. De repente, toda vestida de castanho, uma senhora, com umas ancas quase tão robustas como uma amendoeira centenária, das muitas que se observam em Aracataca, passeia-se em cima de uma mota que se aguenta com um estoicismo de animal de carga, como se tudo fizesse parte de um número circense. Não temos dúvidas de que chegamos a Macondo e ao mundo mágico de Cem Anos de Solidão.
"Aureliano Segundo foi o glutão invicto até ao sábado de infortúnio em que apareceu Camila Sagastume, uma fêmea totémica conhecida em todo o país pelo bom nome de a Elefanta. O duelo prolongou-se até ao amanhecer de terça-feira. Nas primeiras vinte e quatro horas, depois de ter despachado uma vitela inteira com mandioca, inhame e bananas assadas, além de caixa e meia de champanhe, Aureliano Segundo estava certo da vitória. (...) Dormiram quatro horas. Ao acordar, cada um bebeu um sumo de cinquenta laranjas, oito litros de café e trinta ovos crus."
A motorizada, da qual pouco ou nada já se via no momento em que se cruzou comigo, desaparecia agora ao virar da esquina.
A casa
O primeiro traço são dois traços, como riscos de veludo, por cima de olhos com cores de final de tarde nas Caraíbas. Com a mesma graciosidade com que o faria Tranquilina Iguarán Cotes de Márquez, conduzindo o neto, Rubiela Reyes Yáñez, com os seus cabelos já grisalhos, transporta-nos para o mundo de Gabito, aquele mundo envolto em ecos do passado. Sente-se a fragrância das flores, a frescura do ar, o canto alegre dos pássaros.
-Gabo escreveu o que viveu na casa!
A frase de Rubiela Reyes Yáñez, desde Março de 2010 guia da casa-museu do escritor, tem o poder de uma sentença.
Impelido por forte emoção, deixo que o olhar se encaminhe, que goze de inteira liberdade naquele lugar onde Gabriel García Márquez formou o seu carácter, onde viveu os dias felizes de uma infância feliz. Basta levantar os olhos, logo à entrada da casa, indo ao encontro da fachada vestida de branco, para perceber o espaço que ocupa no coração de Gabo.
"A minha memória mais constante e nítida não é tanto das pessoas, mas da casa onde vivi com os meus avôs. É um sonho recorrente que persiste mesmo agora. Mais, todos os dias da minha vida acordo com a sensação, real ou imaginária, de que sonhei que estou naquela enorme casa velha. Não que voltei lá, mas que estou lá, em nenhuma idade específica, por nenhum motivo particular como se nunca tivesse saído."
Navego ao longo do corredor das begónias, onde as mulheres se sentavam, ao fim da tarde, a bordar e a falar dos amores proibidos. Ao meu lado, serena, está Rubiela Reyes Yáñez. "Gabito gostava das histórias das guerras civis, que escutava do avô, Coronel Nicolás Marquez, e de todos os amigos que o visitavam nesta casa. E também se deixava seduzir pelos comentários das mulheres, as suas superstições e costumes. Ele encontrava sempre um espaço para se divertir."
Gabriel García Márquez, actualmente a viver no México, não teve a oportunidade de conhecer esta réplica, construída com base nas suas memórias de menino e inaugurada o ano passado, no lugar onde veio ao mundo, no dia 6 de Março de 1927. Mas nem precisa de a conhecer, de tal forma está identificado com ela, a despeito de a ter deixado, depois da morte do avô, aos 10 anos. "Para nós, apenas existia uma no mundo: a velha casa dos avós em Aracataca, onde tive a sorte de nascer."
Na sala de jantar, um espaço aberto num dos lados, com acesso ao corredor de begónias, a mesa continua posta como se o coronel estivesse à espera de alguém que irá chegar no comboio do meio-dia, como tantas vezes sucedeu ao longo dos tempos e das páginas de Cem Anos de Solidão. A partir daqui, à esquerda, situam-se os quartos: primeiro o dos avós, depois o de Gabito, com o berço de ferro onde dormiu até aos quatro anos e sempre observado pelos santos que lhe provocavam pavor. "Na casa dos avós, cada santo tinha o seu quarto, e cada quarto tinha o seu morto." Mais para a frente, outros dois que lhe estavam vedados. Num deles, haveria de descobrir, anos mais tarde, estiveram guardados os 70 bacios que os avós compraram no dia em que outras tantas amigas de curso da mãe, Luísa Santiago, a visitaram.
O quintal, com árvores mas sem o castanheiro de Cem Anos de Solidão, onde estava preso o coronel nos seus tempos em que era já um morto em vida, estende-se até ao quarto dos índios, outra das fontes de inspiração de Gabo. O olhar penetrante de Rubiela Reyes Yáñez desvia-se por um instante fugaz. "Esta era uma casa de portas abertas, que recebia forasteiros e deles escutava Gabito as histórias do que se passava noutros lugares distantes, em Guajira, em Riohacha, em Santa Marta."
A cozinha fazia parte do universo das mulheres e hoje, quando se olha a mesa, absorvendo o fragor cada vez mais intenso das flores que se espalham pela casa, sentimos que há vida, que aqueles animais de caramelo acabaram de ser confeccionados por Tranquilina Iguarán Cotes de Márquez e que alguém os irá vender, depois da sesta, pelas ruas de Aracataca.
Um escritório pessoal e uma ofi cina de ourivesaria, onde o avô passava grande parte do tempo a fabricar peixinhos de ouro, ambos situados logo à entrada, eram compartimentos exclusivos dos homens. Era ao lado do coronel que Gabito se sentia bem e seguro, longe das inquietações e dos temores que as conversas no corredor das begónias lhe provocavam.
O avô
Sentado debaixo de uma amendoeira, plantada em 1982, Alfredo Correa Garcia segura nas mãos sulcadas pelo tempo uma fotografia do escritor ao lado de amigos, entre eles o já falecido Rafael Escalona, o mais mediático compositor de vallenato, género musical da costa das Caraíbas.
-Para o Feio, do seu irmão mais velho, Gabriel.
Uma senhora, com uma tez olivácea, prepara o lume à sombra da árvore que também estende os braços sobre nós. Para trás perdem-se os campos onde vacas pastam indiferentes ao calor.
-O Feio sou eu!
Alfredo Correa Garcia pode orgulhar-se de ser o único amigo de infância de Gabo à face da terra.
-Todos os outros estão mortos. Mas o grande amigo dele era o meu irmão, Luís Carmelo Correa, da mesma idade.
Estava sentado na esplanada do La Mona, mesmo em frente ao edifício do alcaide, quando a senhora Cármen, depois de me ter tentado explicar como chegar à Calle 4, rogou a José Artur Londoño, acabado de chegar na sua motorizada que o ajuda a distribuir os jornais, o favor de me deixar em casa de Alfredo Correa Garcia, que agora tira pela primeira vez o boné que sempre o acompanha.
-Está a ver esta cicatriz?
Gabito, o meu irmão e outros dois amigos estavam em cima de uma cañandonga, uma árvore que dá um fruto muito grande, quando me caíram todos em cima.
A marca indelével espreita por entre os raros cabelos brancos e as memórias desse tempo são testemunhadas por aquela árvore que não deixa entrar o sol. Cheira a flores frescas naquela segunda manhã em Aracataca.
-Gabito era um miúdo demasiado mimado. Andava sempre com o avô por todo o lado. E sempre muito limpo. Todos os dias, ao final da tarde, saíam os dois de mãos dadas e iam passear. Era nessa altura que o Coronel lhe contava as histórias do que havia passado em Guajira, em Barrancas.
Gabriel García Márquez confirma em Viver para contá-la a importância do avô na sua vida. O coronel festejava o aniversário de Gabito todos os meses e era frequente ouvir-lhe dizer, para quem quisesse ouvir, que o pequeno tinha todos os direitos.
"A princípio desenhava nas paredes, até que as mulheres da casa protestaram com indignação: a parede e a muralha são o papel da canalha. O meu avô enfureceu-se e mandou pintar de branco uma parede da sua joalharia e comprou-me lápis de cores e mais tarde um estojo de aguarelas para pintar à vontade, enquanto ele fabricava os seus célebres peixinhos de ouro."
-Gabito tinha uma grande capacidade para o desenho.
Num dos aposentos exclusivos do avô, na casa-museu, a poucos quarteirões da Calle 4, onde agora escuto Alfredo Correa Garcia, um comboio multicolorido, umas palmeiras e uma casa cheia de vida recortam uma parede branca, trazendo à memória esses primeiros desenhos.
Rubiela Reyes Yáñez veste uma camisa branca que lhe realça a cor da pele e aqueles olhos diáfanos. "Na verdade, o avô andava com ele para todo o lado, numa rotina diária que agradava a ambos. O coronel alimentava-o não só de histórias mas também de livros. A ele se deve o amor de Gabito à leitura. O dicionário resolvia qualquer inquietude da criança. O avô dizia-lhe que era o único livro que não mentia."
O fumo eleva-se, a senhora da tez olivácea, feliz à sombra da árvore, entrega-se ao trabalho. Do lado oposto, um vendedor ambulante oferece frutas e legumes. Não corre uma brisa.
-Nasci aqui, em frente à casa de Gabito, sempre vivi aqui.
Alfredo Correa Garcia leva-nos de volta ao mundo mágico da infância do escritor agora que a amanhã avança decidida.
-Estudámos juntos, na Escola Montessori. Lembro-me da professora a ensinar as vogais e as consoantes e a estabelecer, com o movimento da língua, a diferença entre o b e o v. Chamava-se Rosa Elena Fergusson e levava Gabito sempre pela mão. O coronel tinha medo de o mandar sozinho. Não confiava.
Uns fiapos de nuvens pintam o céu azul e a bola de fogo queima e faz brilhar aquela cabeça desprovida de cabelo que passa agora à nossa frente e que se assemelha a uma foca ao sol.
A fé
Alfredo Correa Garcia segura a fotografia do amigo com força, com aquelas mãos grandes, como se pretendesse mudar-se para o passado.
-O meu irmão, Luís Carmelo Correa, mandava Gabito para a baliza porque achava que ele não tinha habilidade para marcar golos.
Nas suas memórias, Gabriel García Márquez também viaja por esse tempo e pela amizade e cumplicidade que o ligavam ao irmão mais velho de Alfredo Correa Garcia.
"Começámos a jogar com bolas de trapo e consegui ser um bom guarda-redes, mas quando passámos à bola regulamentar levei uma pancada no estômago com um pontapé tão potente dele que por ali se ficaram as minhas veleidades."
Os botões e o pião eram outros divertimentos no pouco tempo que tinha disponível, entre a escola e os passeios com o avô.
-Sabe que ele foi sacristão?
Na praça principal, onde Alfredo Correa Garcia dá vinte voltas todos os dias, quando ainda nem sequer os galos cantaram anunciando o amanhecer, a igreja de paredes brancas e, aqui e acolá, de vermelho, tem as portas abertas a esta hora. São apenas três os fiéis que erguem as mãos aos céus. Encostada a um dos bancos de madeira, no interior, está uma bicicleta.
"Começaram a tratar-me como um adulto e o sacristão mais velho ensinou-me a ajudar à missa. O meu único problema foi que não consegui entender em que momento devia tocar a campainha e tocava-a quando me lembrava, por pura e simples inspiração (...) A parte boa do ofício era quando o outro menino do coro, o sacristão e eu fi cávamos sós para pôr a sacristia em ordem e comíamos as hóstias que sobravam com um copo de vinho."
-Ele até participava na procissão da Virgen del Cármen!
Alfredo Correa Garcia gosta de conversar e, a despeito dos seus 82 anos, mantém a lucidez e guarda memórias de tempos imemoriais. Gabito cumpriu mesmo os mistérios da primeira comunhão naquela igreja onde uma senhora sorri na nossa direcção depois de perceber que a bicicleta acabara de ser fotografada.
"Na véspera da primeira comunhão, o padre confessou-me sem preâmbulos, sentado como um Papa de verdade na poltrona tronal e eu ajoelhado em frente dele numa almofadinha de peluche. (...) Creio que respondi bem até que me perguntou se não tinha feito coisas imundas com animais. Tinha a noção confusa de que alguns dos mais velhos cometiam com as burras pecados que nunca tinha entendido, mas só naquela noite aprendi que também era possível com galinhas. Deste modo, o meu primeiro passo para a comunhão foi outro salto grande na perda da inocência e não senti nenhum estímulo para continuar como menino de coro."
O amor
Gabito não tinha vocação para a igreja mas desde muito novo revelou extraordinária apetência para o "amor sem amor" e para "o amor de urgência". Muito antes ainda de conhecer Mercedes, a mulher da sua vida e que ainda hoje o acompanha para todo o lado.
-Namorava de carago!
Alfredo Correa Garcia também evoca essa virtude, para outros apenas um defeito, quando, ainda e sempre à sombra da amendoeira, fala do amigo. Mais tarde, já homem, Gabriel García Márquez haveria de reviver as tardes em que o avô o levava a passear e outras, não tão raras, em que o via em casas estranhas, sendo recebido com honras de amante. Habituais eram também as incursões do pai no reino dos amores efémeros, uma tendência que haveria de marcar, de forma indelével, a juventude de Gabo. O episódio, vivido em Sucre, onde o escritor permaneceu uns tempos durante a sua errância vagabunda, vale a pena ser contado, como o próprio o contou.
"Lembro-me do seu nome e apelidos, mas prefiro chamar-lhe como então: Nigromanta. Ia fazer vinte anos pelo Natal e tinha um perfil abissínio e uma pele de cacau. Era de cama alegre e orgasmos pedregosos e atribulados, e um instinto para o amor que não parecia de ser humano mas de rio revolto. (...) Na primeira semana, tive de fugir do quarto às quatro da madrugada porque nos enganámos na data e o oficial podia chegar a qualquer momento. Saí pelo portão do cemitério através dos fogos-fátuos e dos latidos dos cães necrófilos. Na segunda ponte do canal, vi vir um vulto descomunal que só reconheci quando nos cruzámos. Era o sargento em pessoa, que me teria encontrado em sua casa se me tivesse demorado mais cinco minutos.
-Bons dias, branco disse-me em tom cordial.
Respondi-lhe sem convicção.
-Deus o guarde, sargento.
Parou então para me pedir lume. Dei-lho, muito perto dele, para proteger o fósforo do vento do amanhecer. Quando se afastou com o cigarro aceso, disse-me bem disposto: -Estás com um cheiro a puta que não se pode."
Considerado por muitos como um caso perdido, Gabriel Garcia Marquez interpretava na perfeição a tese de que "o amor tem mais quartos do que uma pensão de putas". Se estivesse, como eu, sentado naquela esplanada, àquela hora, quando os polícias ainda matam a fome no interior do La Mona, daqui poderia ver a Casa do Telegrafista, com as suas letras decadentes, pintada de branco e com uma faixa verde térrea, a cor das portas de madeira, já cansadas de serem velhas. No interior do pequeno espaço, Gabriel Elígio García, mais tarde pai de Gabito, ganhou fama, real ou imaginária, de ter uma rede para deitar as mulheres que o visitavam.
As histórias do pai, um telegrafi sta, ainda por cima de pele escura e conservador, logo odiado pelo avô de Gabito, um liberal, misturadas com as recordações da mãe, daquela épica viagem de mula por montes e vales, deram origem àquele que é um dos melhores livros de Gabriel García Márquez: O amor nos tempos da cólera.
-O avô não contava com o telégrafo e com o facto de Gabriel Eligio García ter muitos contactos em lugares remotos. Aquela era a relação de dois seres que passaram muitas dificuldades e Gabo já tinha o livro na cabeça muito antes de o escrever, enfatiza Rubiela Reyes Yáñez.
A boémia
A Torre do Relógio veste-se de amarelo, a muralha por baixo conduz-nos à Praça dos Coches e à nossa frente está o Portal dos Dulces, ainda sem vida, sem os doces de coco, de banana, de tamarindo, de arequipe, sem as melcochas, os diabolinos, os suspiros, as muñecas de leite, sem o coco com ananás ou com goiaba. Pouco passa das sete da manhã e já Ema Peña Aranda vende numa pequena caixa de madeira que se desdobra à vista do cliente rebuçados, caramelos e também cigarros, a 200 pesos a unidade.
"Já na puberdade consumira, por ordem de aparecimento, todos os volumes da Biblioteca Popular que Tránsito Ariza lhe comprava nos livreiros de ocasião do Portal dos Escrivães."
Quem não estiver identificado com a obra do escritor, dificilmente chegará à conclusão de que o Portal dos Escrivães, presente em O Amor nos tempos da cólera, e o Portal dos Dulces são uma e a mesma coisa. "Durante a Colónia, chamou-se o Portal dos Mercaderes. (...) Mais tarde, foi chamado Portal de los Escribanos (...) Há vários anos que se chamava Portal dos Dulces", haveria de reviver, uma vez mais nas suas memórias, o escritor, despertando para a suave recordação do dia em que, deixando para trás Bogotá à pressa, a capital vítima de mais um conflito político, chegou a Cartagena das Índias, sem dinheiro e com fome.
Como se navegasse num eterno arco-íris, caminho ao longo das ruas da cidade que desperta para um novo dia, sem rumo, sem destino, como alguém que, ébrio de contentamento, procura encontrar ao virar da esquina Florentino Ariza.
-Deve ser maricas!
Recortado contra uma parede castanha, um homem de chapéu na cabeça, o típico boltano, parecia-me uma imagem mais forte do que uma mulher que, embora sorridente, nada tinha que a fizesse ser vista como colombiana. E o disparo saiu, espontâneo. Glenys Barrios, cada vez mais sorridente, agora que lhe fizera o retrato, nunca percebeu que eu ouvira aquela difamação que me fazia lembrar, como se de uma sombra se tratasse, Florentino Ariza, visto na cidade como homossexual, pedófilo e até virgem.
"A primeira anotação foi feita com a viúva de Nazaret. Cinquenta anos mais tarde, quando Fermina Daza ficou livre da sua sentença sacramental, tinha uns vinte e cinco cadernos com seiscentos e vinte e dois registos de amores continuados, à parte as incontáveis aventuras fugazes que não mereceram nem um apontamento caridoso. (...) A viúva de Nazaret nunca faltou aos encontros ocasionais com Florentino Ariza (...) Convenceu-a a deixar-se ver enquanto faziam amor, a mudar a posição convencional do missionário pela da bicicleta de mar, ou do frango assado na grelha, ou do anjo esquartejado."
As mulheres, pelo menos algumas, ficavam gratas àquele homem por quem ninguém dava nada em matéria do coração, como se pode ver em O amor nos tempos da cólera.
-Adoro-te porque fizeste de mim uma puta.
Na esquina da La Tablada com a Praça Fernandez de Madrid, Keny sorri do alto do andaime quando Glenys Barrios, já sem vontade de me difamar, lhe atira: -Keny, vais para Portugal. E sem pagar nada!
O pintor acena e deixa-se fotografar outra vez. Na praça, bem no meio, há um poço, polícias que se misturam com o povo e bebem tintos que fumegam em copo de plástico.
O trintanário projecta-se contra a parede púrpura do antigo Convento de Santa Clara, hoje transformado em hotel e presente em diferentes obras de Gabo.
"Porém, à uma da tarde, estava tudo resolvido e só faltava a sobremesa, encomendada às freiras do Convento de Santa Clara, que se tinham comprometido a mandá-la até às onze."
A trabalhar na loja em frente há cinco meses, Liliana Marin vem de longe para conhecer o bairro de San Diego de perto. "É uma das zonas com mais identidade. O hotel tem um papagaio muito colorido que atrai as crianças das redondezas. E como tem alguns restaurantes da moda, a praceta enche-se de vida à noite."
Quando se olha a primeira vez, sem ver e sem sentir, ninguém suspeita que a Praça Fernandez de Madrid possa ter a ver com o Parque dos Evangelhos de O amor nos tempos da cólera. Era aqui, muito provavelmente, que Fermina Daza tinha a sua casa.
"E mais ainda quando Florentino Ariza persistiu em evocar as tardes de versos melancólicos no Parque dos Evangelhos, os esconderijos das cartas no caminho da escola, as aulas de bordado sob as amendoeiras."
-Ofereço-lhes queijo, laranja, ananás, melão - apregoa ao longo da Cochera del Hobo, há mais de 40 anos, a negra Maria Viñalma.
Para tudo tem resposta:
-São verduras verdes!
Maria Viñalma continua a apregoar como se tivesse parado no tempo. Ela e a cidade. A partir daqui, é um passo até às Bovedas. Ao longo daqueles arcos, pintados de ocre, Gabo viveu na fronteira da decadência, dividido entre a esperança de ser jornalista e a angústia de não ser ninguém, como admite nas memórias.
"Senti-me tão mergulhado num pântano que a minha única diversão era amanhecer a cantar com os bêbados em Las Bóvedas das muralhas, que tinham sido bordéis de soldados durante a Colónia e mais tarde uma sinistra prisão política."
A noite encontra-me no renovado bairro, antes de má memória, de Getsemani, um dos mais genuínos e com mais identidade da cidade e o único que Gabo trata pelo nome em O amor nos tempos da cólera. Vagueio ao longo da Rua da Media Luna, na direcção da minha pensão, e ouço um murmúrio que não é mais do que um convite:
-Holla, mi amor!
Se é assim na Rua da Media Luna, como será na rua da lua cheia?
Um homem, cabisbaixo, caminha atrás de uma mulher que sobe as escadas com pressa, com tanta que parece que já as vem a descer. Aquela bem podia ser a "casa das meninas que vão para a cama por fome" ou mesmo um lugar onde um homem se divide entre "o amor da alma, da cintura para cima, e o amor do corpo, da cintura para baixo".
Olho em volta, da janela do meu quarto, e o céu das Caraíbas está cheio de estrelas. Não cabe mais nenhuma. Ao longe, perscruto a Torre do Relógio. Não me dói a alma nem o corpo.
A fantasia
Desperto como se tivesse vivido um sonho e com aquela frase na cabeça. "Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo." Era como se tudo voltasse ao início. No sonho, ouvia a Rádio Caracol anunciar, às primeiras horas do dia, a inauguração para breve da Rota de Macondo, com um comboio amarelo a percorrer a linha de caminho de ferro entre Santa Marta e Aracataca.
Até conseguia ver Ângela Sarmiento Llanes a rir, sempre com os seus calções curtos, feliz por ter carris e comboio.
Com grande nitidez, como se da realidade se tratasse, via Gabo a viajar de comboio, há muitos anos, com a sua mãe, para vender a casa de Aracataca. De repente, por entre as inúmeras paragens, o escritor perscruta uma quinta, a única com nome ao longo de todo o trajecto no meio daquele mar de bananas: Macondo, na vizinha Sevilha. Quando a coluna de fumo se ergue nos céus, seguida de um suspiro igual ao espasmo de um cavalo e de um apito estridente que rasga o silêncio, o comboio chega finalmente a Aracataca. A partir daí, a pé, ao lado da mãe, Gabo passa a velha escola onde estudou, pintada de cor-de-rosa e com pneus de várias cores a separarem os jardins dos passeios, com desenhos nas paredes, e chega finalmente à casa, que é apenas um farrapo das suas memórias. A desilusão é tanta e a nostalgia é tão forte que naquele momento desabafa: mas isto é como cem anos de solidão. O sonho parecia mais nítido do que nunca. Gabo decidira que o livro que era para ser A Casa iria ser Cem Anos de Solidão; que Barranquilla, o palco, passaria a chamar-se Macondo.
E no sonho eu próprio ganhava algum protagonismo. Vindo de Santa Marta, chegava a uma cidade de calores eternos. Como um nativo, tratava-a por Cataca, sabia que Ara significa rio na língua chimila, dos índios indígenas da Colômbia, e Cataca era a palavra que os locais utilizavam quando se referiam à pessoa que mandava. Caminhava, no sonho, pelas ruas da cidade, sentava-me no Restaurante Gabo, na sala Cem Anos de Solidão, comia tiras de frango com feijão e patacones (banana frita) e, nas paredes, nas prateleiras, nas mesas, descobria o mundo de Gabriel García Márquez.
"Sinto-me latino-americano de qualquer país mas sem renunciar nunca à nostalgia da minha terra Aracataca, à qual regressei um dia e descobri que entre a realidade e a nostalgia estava a matéria-prima da minha obra."
À medida que o dia ia avançando, parecia que havia cada vez mais clareza naquela fantasia. Era quase como se, de facto, tivesse vivido tudo. O sol ardente das três da tarde apanhava-me em plena Rua dos Turcos, onde antigamente os homens se matavam por causa das mulheres, tão poucas eram. No sonho, estou agora a ler, a ler Cem Anos de Solidão.
"A Rua dos Turcos, enriquecida com os luminosos armazéns dos ultramarinos que deixaram a perder de vista os velhos bazares de cores berrantes, transbordava nas noites de sábado com multidões de aventureiros."
Sempre com aquela laranja que enche o céu a queimar sem dó nem piedade, sonho que, em Aracataca, as pessoas sonham, que a indolência daqueles que estão sentados nos Quatro Caminhos, à sombra das árvores da Ponte de los Varados, tudo não é mais do que o resultado de um sonho. O sonho de que o comboio nunca deixou de apitar e de que todos os dias continuam a chegar, por volta do meio-dia, os forasteiros. O sonho de que aquele pesadelo nunca existiu, na praceta junto à estação.
"Fora ali, segundo me precisou a minha mãe naquele dia, que o exército matara em 1928 um número nunca determinado de jornaleiros da banana. Eu conhecia o episódio como se o tivesse vivido, depois de o ter ouvido contado e mil vezes repetido pelo meu avô desde que tive memória: o militar lendo o decreto pelo qual os peões em greve foram declarados um bando de malfeitores."
Aracataca vivia agora nas trevas, na mais profunda depressão. E nunca mais se recompôs. No sonho, mergulhava uma vez mais nas memórias de Gabo. "Em Aracataca, nunca se passou nada, nem está a passar, nem passará nunca, este é um povo feliz." Até Mário Vargas Llosa, o escritor peruano que acaba de conquistar o Nobel, entrava naqueles resíduos de fantasia.
"À primeira vista, dir-se-ia que aqui não acontece nada (...), que a principal ocupação de toda a gente é dormir a sesta (...) Grande mentira! Pois, sonhar, fantasiar, inventar. A mais ilustre e mais antiga das tarefas humanas: imaginar, partindo de este mundo, um outro, mais original, mais belo, mais perfeito e, mediante um movimento da sensibilidade e da mente, mudar-se para ali para viver melhor."
Sinto que o sonho chega ao fim. De pouco mais me consigo recordar. Na rua, há um menino que inventa, com um pau bizarro, uma pistola e simula que faz pontaria. Também ele idealiza outro mundo, o mundo dos brinquedos que não tem.
Ender David sabe que naquela terra nasceu alguém importante mas acredita que já morreu. Abano com a cabeça, em sinal negativo.
-Entonces no sé quien es!
Pela estrada de terra batida, a caminho do centro, aquele riquexó com o número 112 e a caricatura da cara de Gabo, com os nomes de Aracataca e Macondo na parte superior da cobertura de plástico, a ninguém passa despercebido. Hector Pulgar, de 55 anos, percorre há seis estas ruas cheias de pó e também ele, partindo deste mundo, inventa um melhor, em que pode comprar mais livros do escritor que o preenche, mesmo quando chega a casa, ao fim de um dia de trabalho, quase de mãos vazias.
No sonho, só há tempo para beber uma cerveja Aguila, sin igual y siempre igual, na Rebaja Granero, de onde, de pé e ao balcão de madeira, posso avistar a buseta que me irá levar de volta a Santa Marta.
Agora que mergulhei na vida de Gabo, sinto vontade de ligar e ouvir, lá do outro lado, muito longe, a voz daquele amigo que a esta hora estará a deixar pousar o olhar num livro, numa fotografi a de um escritor, numa capa, apenas para lhe anunciar que me preparo para deixar esta terra, esta terra que foi de Gabriel Garcia Marquez, um homem de terra nenhuma, que viveu sem fronteiras. "Macondo não é um lugar mas um estado de ânimo, que permite a cada um ver o que quer, e vê-lo como quer."
Como ir
Várias companhias aéreas europeias voam para Bogotá, por preços a rondar os 1200 euros. Não há voos directos a partir de Lisboa.
Desde a capital da Colômbia, a Avianca garante as ligações com outras cidades, incluindo Cartagena das Índias, com um preço de ida e volta de cerca de 200 euros. Para chegar a Aracataca, o mais fácil é a partir de Santa Marta, num percurso de autocarro de menos de duas horas. Para breve está prevista a ligação por comboio, o Comboio Amarelo, para atrair maior número de turistas à cidade de Gabo.
Quando ir
A Colômbia, estando ao lado da linha do Equador, tem um clima com poucas variações. Os meses de Dezembro e Janeiro, quando o povo parece viver em permanente festa, são boas opções para visitar este país de quase 50 milhões de almas.
A época da Semana Santa também pode ser considerada uma boa alternativa. Cartagena das Índias, nas Caraíbas, goza de dias de sol durante quase todo o ano.
Onde dormir
A oferta é variada, para todas as carteiras, mas se pretende ir ao encontro da história nada melhor do que alojar-se no antigo Convento de Santa Clara, actual Hotel Sofitel. Em Santa Marta, para quem pretende visitar Aracataca, a oferta de qualidade é menor. Mas não faltam bons hotéis com preço em conta.
Onde comer
Sendo Cartagena uma cidade turística, não faltam restaurantes, como o El Santíssimo, no Bairro de San Diego, El Rincón de la Mantilla, no centro, ou o Coroncoro, em Getsemani. Em Santa Marta, aconselha-se o Donde Chucho, com bom marisco, e em Aracataca, mais pela curiosidade, o Restaurante Gabo, propriedade de um investigador da vida do escritor que de quando em vez lhe envia dedicatórias mas que nunca ali pôs os pés.
A visitar
Em Santa Marta, há todo um passado colonial; não muito longe, a praia de Taganga é o lugar perfeito para um final de tarde; em Cartagena das Índias o melhor é não seguir um mapa, guiando-se apenas pelos sentidos. Um pouco distante da cidade, justifica-se uma visita à bonita Playa Blanca, com as suas areias finas, na ilha de Barú.
Informações
Para entrar na Colômbia apenas necessita de ter passaporte com seis meses de validade.
A moeda é o peso colombiano.
Um euro equivale a 2600 pesos. A diferença horária entre Portugal e a Colômbia é de seis horas.
Livros
A D.Quixote tem editados todos os livros de Gabriel García Marquez, incluindo a auto-biografia "Viver para Contá-la" e a biografia de Gerald Martin, "Uma Vida".