Fugas - Viagens

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Colômbia: Na rota do mundo mágico de García Márquez

Por Sousa Ribeiro

Um tempo sonhado, um tempo vivido e um tempo contado. Na velha casa de Aracataca, Gabriel García Márquez era já considerado uma criança velha quando o avô lhe falava das histórias da guerra, como se já as houvesse vivido ele próprio. Percorremos os caminhos que deram corpo e alma a um escritor que marcou como poucos os últimos 50 anos da literatura.

- Gabriel García Márquez não nasceu em Aracataca! Nasceu em Macondo. Todas as reportagens que tenho lido, incluindo de jornais estrangeiros, fazem referência a Macondo.

Do outro lado da linha, a milhares de quilómetros de distância, as palavras saíam com rara convicção. Imaginava o espaço amplo onde aquele amigo de longa data me escutava, rodeado de livros e de capas nas paredes que pareciam ter vida, de fotografias de escritores. E, à medida que o ia ouvindo, sempre com atenção, recordava, com uma clareza que até a mim me espantava, a imagem de José Saramago e a inscrição onde, quase todos os dias, ele deixava os seus olhos pousar: "Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo."

A chamada caiu.

Reinava a calma na cidade e uma brisa entrava pela janela quando Ângela Sarmiento Llanes, ainda meio ensonada, com os seus cabelos e olhos negros, vestindo uns calções curtos, me despertou dos meus pensamentos sobre o homem que, de forma inigualável, deu expressão ao realismo mágico.

Em Gabo, folheando as velhas páginas dos seus livros, vive-se em permanente tensão, tentando perscrutar onde acaba o mundo vivido e onde começa o mundo sonhado. Agora, no momento em que o dia ainda se espreguiçava, desejava mergulhar nesse mundo que teima em confundir-nos, e pensava fazê-lo de comboio.

-Temos carris mas não temos comboio!

A afirmação, produzida no interior da exígua recepção da pensão, naquela rua onde chegava o cheiro do mar, fez-se acompanhar de um sorriso irónico. Deixei Santa Marta aos primeiros alvores do dia, quando a cidade ainda se entregava ao seu torpor, mas não sem antes beber um café.

-Com leite ou tinto?

Hesitei, perante a pergunta do vendedor.

-Tinto!

Num copo de plástico, o café negro fumegava.

Entrei na buseta, pensei em todas as brasileiras do mundo, sem excepção, aconcheguei-me num dos seus estofos de veludo, limpos e confortáveis, senti o ar condicionado e, depois de ter pago sete mil pesos, permiti que os meus olhos vissem o que eu, se fosse leitor, não acreditaria no plasma, para uma plateia entusiasta, passava o filme Comboio em Fuga. Por instantes, ainda que breves, resgatei à memória o nome de Ângela Sarmiento Llanes. À minha esquerda, onde o sol brilha timidamente, correm, na sua orfandade, os carris percorridos, de quando em vez, pelos comboios que transportam carvão. Ao fim de quase duas horas, a buseta detém-se e o motorista faz-me sinal. À minha frente, posso ler: Es la hora de querer a Aracataca. A primeira impressão sobre a cidade de mais de 50 mil almas faz-me lembrar uma frase que não me pertence:

-Linda de feia!

Há casas térreas de cores alegres de um lado e do outro das ruas atravessadas por cabos. A música ecoa como um canto solitário e, à sombra das árvores, ao longo dos passeios, descansam velhinhos, indiferentes à dinâmica matinal das velhinhas que limpam a poeira. A manhã avança, fremente, azul. De repente, toda vestida de castanho, uma senhora, com umas ancas quase tão robustas como uma amendoeira centenária, das muitas que se observam em Aracataca, passeia-se em cima de uma mota que se aguenta com um estoicismo de animal de carga, como se tudo fizesse parte de um número circense. Não temos dúvidas de que chegamos a Macondo e ao mundo mágico de Cem Anos de Solidão.

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