O que se faz em Banguecoque, pelo menos numa primeira visita, é ver templos e andar às compras. Dois ou três complexos budistas depois, o visitante tem sérias hipóteses de contrair a síndrome de Stendhal, leia-se de sofrer de uma overdose de beleza, na circunstância dourada. É pelo menos o álibi mais usual para cortar com a informação e dedicar o resto do tempo ao que realmente interessa, ou seja, às compras.
O destino mais comum é o mercado nocturno de Patpong, atafulhado de contrafacções e t-shirts com logos de marca. Ou em alternativa Khao San Road, o seu equivalente para jovens mochileiros. São lugares animados e pitorescos, a maior parte dos artigos em exposição valem uma bagatela para as carteiras ocidentais. Mas convenhamos que estão muitos furos abaixo da verdadeira shopping experience de Banguecoque, proporcionada pelo mercado de Chatuchak. Uma prodigiosa balbúrdia, desde logo anunciada pela pluralidade de nomes do mercado, também conhecido por Jatujak, pelas iniciais JJ (pronuncia-se djay), ou mais simplesmente ainda sob a designação inglesa de Weekend Market (mercado de fim-de-semana).
Um país inteiro revisto num mercado
Pense-se em Londres, que tem os maiores mercados a céu aberto da Europa. Pois este, na ponta norte da capital tailandesa, é capaz de ser maior e mais variado que Candem, Portobello e Brick Lane todos juntos. Há, para começar, a estatística oficial: Chatuchak ocupa uma área de mais de 14 hectares (o equivalente a Lisboa na Idade Média) e acolhe 15 mil postos de vendas, incluindo barracas precárias cobertas de pára-sóis a loja convencionais com montras e vendas informatizadas.
O que a estatística já não contabiliza é que, mesmo assim, a feira está a rebentar pelas costuras, contando-se por centenas, ou mesmo milhares, os vendedores ambulantes não licenciados que rondam nas imediações, ou se aventuram a montar estendal no recinto, arriscando a multa correspondente. De resto, se o mercado recebe 200 a 300 mil visitantes por dia, tanto ao sábado como ao domingo, aos fins-de-semana de pagamento para os assalariados tailandeses esse número pode facilmente duplicar.
Porque o mercado de Chatuchak - fundado nos anos 50 e no presente local desde 1982 - , foi e continua a ser eminentemente tailandês. Isto tanto no sentido de aqui virem parar os artigos mais variados de todos os cantos do país, como no de ser sobretudo frequentado por locais (a clientela estrangeira é estimada em cerca de 30 por cento). Funciona, portanto, como um ecrã panorâmico que projecta a cultura de rua da capital e, mais em geral, o mosaico humano que constitui a Tailândia. O género de local onde se encontram pilhas de coisas e magotes de gente que são very thai, mas que dificilmente figuram nas campanhas oficiais da "Amazing Thailand".
Vai dos quadros ilustrados com as letras do alfabeto local a todo um sortido de tatuagens mágicas, das crianças que andam às compras em bando, todas de uniforme escolar, aos velhotes de pés descalços com pesados fardos às costas. São testemunhos vivos de preservação das tradições, mas Chatuchak é bem mais do que isso. É também uma rampa de lançamento para os criadores de arte e design em inícios de carreira e um recreio de eleição para as tribos juvenis mais ou menos alternativas da capital. Ou seja, a mega feira de Banguecoque é também um espaço de celebração dos figurinos juvenis, cada vez mais híbridos e originais, que hoje dominam a cultura urbana tailandesa.
Os objectos estranhos e os costumes esquisitos, ancestrais ou ultramodernos, mais frequentemente cruzados sem preconceitos, resultam assim como um alucinante bombardeamento de "novidades" aos olhos ocidentais. É todo um novelo de charadas que surpreendem e por vezes até chocam (o que fazem tantos transexuais de braço dado com meninas de rostos angélicos?), mas que não são indecifráveis. Basta sorrir neste país onde o sorriso é uma espécie de língua franca para ficar a saber mais. Outra maneira de dizer que Chatuchak se oferece igualmente como uma ocasião privilegiada para meter conversa e ganhar contacto directo com as complexidades da actual cultura urbana tailandesa.
Rezar para vender
Na perspectiva, justamente, de querer ficar a saber mais, vale a pena chegar de madrugada. Por volta das cinco da manhã, as lojas ainda não abriram portas, mas as ruas do mercado são já calcorreadas por um batalhão de vendedores. Caminham todos no mesmo sentido, para um pequeno altar, plantado no coração do recinto, invariavelmente coberto de grinaldas de flores amarelas e de resmas de paus de incenso. O "contrato" com os espíritos da terra sobre a qual se eleva Chatuchak requer que os vendedores, antes de iniciarem a actividade, venham aqui rezar e fazer-lhes oferendas de comida e bebida.
É um singular ritual, este, que alia a fé com a fortuna, mas o visitante mais observador verificará também a profusão de estatuetas de Nang Kwak, a deusa do comércio e da prosperidade (de mão levantada, em jeito de saudação aos clientes), substituídas nos comércios mais modestos por todo um sortido de amuletos protectores. Estes constituem, aliás, um dos artigos mais transaccionados nas feiras tailandesas e Chatuchak é a maior delas. Daí a profusão de bancas repletas de efígies de Buda e de homens santos, mas também de talismãs fálicos, raízes de plantas medicinais e de uma multiplicidade de curiosidades abençoadas, tipo dentes humanos, olhos de gatos ou mesmo telemóveis. Há amuletos meticulosamente embrulhados e acondicionados em caixas de madeira, mas também os há empilhados em plásticos no chão, como se fossem sucata. Uns e outros atraem uma legião de coleccionadores, muitos de lupa em riste, que demoram eternidades a examinar-lhes o valor.
Os vendedores de amuletos são dos primeiros a abrir negócio, mas de resto o arranque do mercado é bastante lento e está longe de ser sincrónico. Para quem quiser fazer compras de algum valor, pelo menos com algum discernimento, a manhã é a melhor altura do dia em Chatuchak. Mesmo assim, o mercado é tão amplo e tão labiríntico que é de toda a conveniência começar por fixar o seu principal ponto de referência, a Torre do Relógio e aí, no posto de informação turística, pedir um mapa do recinto (gratuito).
Tudo parece muito organizado: os 14 hectares do mercado estão divididos em 27 secções, organizadas em áreas de cor segundo as especialidades, sendo as alas identificadas por letras e as ruas por nomes. Esta ordem é, no entanto, algo equívoca, porque depois o que não faltam são desalinhados, gente a vender mercadorias que não correspondem à especialidade da zona, para além dos ambulantes mais ou menos legais, que param onde estiver a dar. Na verdade, a impressão de caos organizado que se tem à chegada ou ao consultar o mapa depressa se desvanece.
Uma boa dica é fazer a ronda dos antiquários e lojas de artesanato enquanto a confusão é ainda suportável. A maior parte destes estabelecimentos tem ar condicionado, aceita cartões de crédito e apenas expõe meia dúzia de peças escolhidas a dedo, com pequenas legendas em inglês (época, estilo, procedência) e o respectivo preço. Podem ser as peças mais caras em venda em Chatuchak, mas o preço é negociável, como tudo o resto. O que já não vale a pena discutir é se as antiguidades são genuínas ou não, simplesmente porque não há maneira de saber. De qualquer maneira, quando nos propõem um buda esculpido em madeira ou em bronze, uma estatueta delicada e cheia de detalhes por um preço bastante atraente, acaba por ser quase irrelevante se foi produzida na Birmânia ou no Camboja do século XIX.
Bebidas em sacos de plástico
Por volta do meio meio-dia, o visitante madrugador de Chatuchak já terá sucumbido à febre desta babilónia de consumo, mas não será (só) por isso que estará a suar em bica. É porque faça sol ou esteja a chover a cântaros, o mais certo é instalar-se um calor sufocante, que se torna ainda mais castigador à medida que o mercado enche de gente. A garrafa de água ou a lata de refrigerante são escolhas óbvias, mas há opções mais interessantes para matar a sede.
Vendedores montados em bicicletas trilham o recinto a toda a hora, propondo cocos e mais frutas tropicais, mas também sacos de plástico transparentes, cheios de líquidos de cores berrantes. Contêm sumos de frutas, chás e infusões de ervas, misturados com carradas de gelo e de açúcar, mas também de sal. As cores artificiais tornam-nos duvidosos aos olhos ocidentais, ainda mais porque a freguesia local tem o hábito de beber por palhinhas do mesmo saco. As receitas que os originam constituem, porém, a fórmula certa, ou o antídoto perfeito, para combater a desidratação.
Desde o meio-dia até se fazer noite cerrada, intensos odores a comida invadem todas as secções de Chatuchak, das ruas principais até às vielas onde não passa um carro. É uma mistura de aromas perfumados de especiarias com cheiros rudes e quase pestilentos, como o é o das lulas a secar em redes, por vezes acompanhados de nuvens de fumo que fazem chorar, mais comuns quando a cozinha é à base de malaguetas. Há restaurantes convencionais que vendem pratos tailandeses em versões mais ou menos ocidentalizadas, alinhados no topo norte da zona dos antiquários. Mas há também tascas semeadas um pouco por toda a parte, no meio da via pública, onde a comida é directamente servida de tachos XL, a que se devem acrescentar os inúmeros ambulantes que param para cozinhar onde for preciso, em pequenos fogões montados em duas rodas.
O que os ambulantes e os restaurantes mais populares servem, quase sempre sob o formato de espetadas, é comida alienígena ao paladar ocidental. O caso mais flagrante, e motivo recorrente da consternação por parte dos turistas, são os insectos fritos e cobertos de picante, numa gama que inclui formigas, escaravelhos e escorpiões. Claro que também se cozinham bichos mais comuns, mas com uma particular incidência em partes que usualmente deitamos fora, como sejam fígados, intestinos e testículos de aves e mamíferos. Os amantes da alteridade gastronómica poderão ir ainda longe provando fetos de galinha e outras delícias insólitas.
Entre pitons e transexuais
Os tailandeses comem quase tudo o que mexe, mas também adoram ter animais de estimação e nenhum lugar oferece tanta variedade de bichos à venda como Chatuchak. A maior parte são os animais domésticos do costume, cães e gatos às centenas, muitos de raça, a que se acrescentam peixes aos milhares das mais variadas espécies. Ratos, tartarugas, esquilos e papagaios são também populares, mas pelo meio há vitrinas preenchidas por bichos menos amigáveis como tarântulas, serpentes e pitons.
Esta secção é responsável pela má publicidade que o mercado de Banguecoque tem motivado na imprensa internacional, derivada das denúncias de tráfico ilegal de espécies em perigo. Esse comércio, no entanto, desapareceu (pelo menos da vista) no último par de anos e a secção de animais domésticos de Chatuchak é hoje um lugar mágico onde crianças tailandesas de todas as idades se apaixonam por bichos a toda a hora.
Pode não haver logística para levar um cachorro para casa (embora se vejam muitos ocidentais de roda dos bichos de raça), nem orçamento para comprar relíquias e outras peças de colecção. Mas com um sortido virtualmente infindável de objectos de desejo a preços ultra-convidativos - uma t-shirt comprada no mercado de Patpong pode aqui custar sete vezes -, é quase impossível sair de Chatuchak de mãos a abanar. Os números falam por si e, apesar dos preços de saldo, o volume de negócios por fim-de-semana ronda os 120 milhões de bahts, ou seja, cerca de 2,50 milhões de euros. Neste paraíso de compras, o ocidental é mais susceptível de passar ao consumo frenético, motivado pela sensação eufórica de descobrir e conquistar, não de estar a gastar dinheiro. Sairá com mais sacos que mãos e a consciência pesada, não tanto pelo que comprou, mas por aquilo que não chegou a meter ao saco.
Quase tudo o que se acaba por levar traz a marca de um certo artifício pop e exótico. É uma conjugação de simpático, bonito e fofo, uma mistura peculiar de Japão e Disneylândia, que é completamente thai. Domina a mais vasta gama de artigos, desde a extensão da tradicional escultura de frutas ao negócio dos sabonetes até às imagens de bonecos sorridentes estampadas em doces e coberturas de telemóveis. Em Chatuchak até o artesanato tradicional virou pop e as estátuas de anjos e deuses partilham agora os mesmos olhos gigantes, a ocupar meia cara, comuns nos mangas tailandeses.
A assimilação thai da cultura global encontra ainda farta expressão nos diversos espectáculos, que se multiplicam ao fim da tarde nas principais ruas do mercado ao norte de Banguecoque. Vai desde transexuais a executarem rigorosos números de gueixas a miúdos a tocarem xilofone (supostamente para pagarem os estudos), passando por cantores de country tailandês de banjo em punho, a uivarem à lua como se tivessem nascido no Texas. Talvez o visitante ache que tudo não passa de um efeito sórdido da aculturação, ou muito pelo contrário fi que maravilhado e acabe por comprar o CD. Mas o mais importante é a alteridade e esse incrível assalto dos sentidos que Chatuchak oferece a toda a hora.
Informações
www.bangkok.com
www.into-asia.com/bangkok/ markets/chatuchak.php
Como ir
O mercado fica no extremo norte de Banguecoque, a uma boa meia hora de táxi do centro da cidade. É por isso mais conveniente e económico chegar lá em metro aéreo (BTS), saindo na estação de Mo Chit, que desemboca em pleno mercado.
Também se pode ir de metro (MRT) até à Chatuchak Park Station e depois caminhar dez minutos até ao recinto da feira. Há ainda dois terminais de autocarros nas imediações, que acolhem dezenas de carreiras.
Horários
Aos sábados e domingos o horário é das seis da manhã às seis da tarde. Mas a maior parte das bancas não abre antes das 9 da manhã e continua aberta muito depois da hora de fecho. Às sextas, e com o mesmo horário, é sobretudo uma feira para grossistas, enquanto às quartas e quintas só abre a secção de flores e plantas.
Dicas
Há apenas meia dúzia de caixas onde se pode levantar dinheiro no recinto, de modo que convém levar a carteira reforçada. Trata-se de uma feira com magotes de gente, há que ter cuidado com os carteiristas. Se sentir cansaço, aproveite a boleia dos carrinhos de golfe que constantemente circulam nas ruas principais do mercado. São gratuitos. Desde há dois anos que é proibido fumar no mercado (2 mil baths de multa), exceptuando nos lugares assinalados.