Fugas - Viagens

Luís Maio

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Kutná Hora - A Praga que não chegou a sê-lo

A catedral abre-se sobre uma ampla esplanada, que oferece vistas deslumbrantes sobre a cidade e o vale frondoso, sulcado pelo rio Urchlice. A esplanada assenta, por sua vez, sobre a Capela de Corpo de Cristo, que data de finais do século XIV/inícios do XV e era suposto funcionar como catacumba, mas nunca foi acabada. Não tem nada que se veja lá dentro, para além de quatro grossas colunas e três grandes janelas, mas vale mesmo assim a pena descer a escadaria que lhe dá acesso para admirar um dos maiores e mais bem preservados salões góticos do mundo.

O lugar místico, pelo menos o mais concorrido de Kutná Hora, vem a seguir: é a Barborská Ulice, a rua empedrada que conduz ao centro da cidade medieval. De um lado corre a fachada do Colégio dos Jesuítas, do outro uma balaustrada empedrada, sobranceira ao vale. Nela se perfilam a espaços regulares 13 esculturas de santos em absoluto êxtase espiritual, imponente conjunto barroco certamente não isento de semelhanças com o da famosa Ponte Carlos de Praga.

Mais à frente encontra-se a Corte Italiana, que começou (1300) por ser casa da moeda, onde viviam os cunhadores originários de Itália, que lhe deram nome. Foi depois Paço Real com Venceslau IV, vindo a ser largamente reconstruída em estilo neogótico no século XIX. É agora um museu de moedas, onde a estrela é naturalmente o groschen checo, a tal moeda de prata que se tornou dominante na Europa Medieval.

A chamada Casa de Pedra, com uma fachada gótica profusamente decorada e o originalíssimo reservatório de água que domina Plackého Námestí, a praça principal da cidade, são outros edifícios que merecem ser destacados. São, no entanto, tantos e estão tão bem preservados que Kutná Hora mais parece um cenário de reconstituição histórica.

Intrusão do insólito

Kutná Hora é a prova cabal de que o insólito mora onde menos se espera. De facto, quem diria que a menos de três quilómetros do risonho centro da cidade mora uma das mais macabras fantasias à face da terra? Falamos da capela de Todos os Santos, mais conhecida por Igreja dos Ossos, alcunha a que por certo não é estranha a circunstância de ser decorada por tíbias, perónios e, na verdade, toda a espécie de ossos humanos. Serão entre 40.000 a 70.000.

Vê-se e mesmo assim quase não se acredita. Depois começam as perguntas. A primeira será como foi possível reunir tamanha quantidade de ossos humanos, sobretudo ali, no meio de nenhures. No princípio, ou melhor, em 1142, antes mesmo de Kutná Hora ser Kutná Hora, Sedlec acolheu um mosteiro cistercense, ao lado do qual nasceu a Igreja da Assunção. Radicalmente reconstruída no primeiro decénio do século XVIII, segundo um projecto do inclassificável arquitecto Jan Santini Aichel, a igreja é outro dos monumentos classificados da cidade boémia. A sua grandiosidade e mérito arquitectónico são ostensivos, mas não é menos claro que em termos de popularidade acaba por ser ofuscada pela vizinha mais modesta de Todos Os Santos.

A capela foi plantada no centro do cemitério, pequeno mas instantaneamente célebre, desde que foi fundado, em 1278, com terra colhida em Golgotha, o sítio da crucificação de Cristo. Ou seja, o cemitério foi promovido a terra santa e toda a gente de Kutná Hora e até de muito mais longe passou a elegê-lo para última morada. Depois veio a peste no século XIV, as não menos letais guerras hussitas no século seguinte e o exíguo recinto ficou a rebentar pelas costuras, inclusive com muitos cadáveres a descoberto. Primeiro o andar superior da capela e depois o seu subsolo foram então convertidos em armazém de ossos em excesso. Resta saber a que se deve o emprego de boa parte dessas toneladas de restos humanos em figuras decorativas, que mais frequentemente parecem ferir as regras do bom gosto e até do respeito aos mortos.

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