Fugas - Viagens

Paulo Ricca

Uma aventura nas aldeias do xisto

Por Andreia Marques Pereira

O cenário é magnífico e agreste q.b. para que o Campeonato Mundial de Corridas de Aventura 2009 passasse por lá. Na Rota das Aldeias do Xisto, a Fugas viu atletas resistentes a correr, pedalar, remar quase 24 horas sobre 24 horas; e viram como se faz o equilíbrio entre a tradição e a modernidade

O convite parecia simples: assistir a algumas etapas do Campeonato Mundial de Corridas de Aventura 2009 em território das aldeias do xisto. Escusado será dizer que todos os planos feitos saíram gorados. Mas não nos queixamos. O mundial de corridas de aventura revelou-se uma aventura também para nós. Apesar do cansaço e do frio, fomos até onde nunca pensáramos ir e fomos onde sempre quiséramos ir.

Por enquanto estamos a chegar ao ponto de encontro Hotel Serra da Estrela, é segunda-feira, noite cerrada. Há uma sala improvisada com mochilas, sacos-cama e muito movimento. Concorrentes, pensamos. Pessoal de apoio, esclarecem-nos os concorrentes continuam lá fora, em prova. O descanso é opcional, dizem-nos, cada equipa tem a sua estratégia, o que interessa é que cumpram todas as etapas dentro de uma determinada janela temporal. Por isso, o plano genérico da competição fala em "estimativas" de chegadas e partidas; e o mais esmiuçado refere coisas como "horário de passagem diurno com possibilidade de as últimas equipas passarem durante a noite".

É manhã cedo quando partimos ao encontro da prova. Na estrada, algumas equipas em direcção ao hotel, mas seguimos, porque as corridas de aventura não se correm na estrada é mesmo proibido seguir estradas, excepto em troços bem definidos, é fora dela e, de preferência, em paisagens deslumbrantes (estamos agora na serra da Estrela, mas a prova, que começou no Estoril há dois dias, já passou pelas serras da Lousã e do Açor; ainda irá à da Gardunha, de São Mamede, de Aire e Candeeiros e d' El Rei). E não há percurso definido, há um ponto de partida e um ponto de chegada, os caminhos escolhidos são inteiramente da responsabilidade das equipas, que recorrem à orientação. A pé, de BTT e de canoa, sobretudo, mas sem desdenhar de outros meios de progressão, como os patins e a natação, ou a escalada e o rappel, por exemplo, as 59 equipas que cumprem a prova portuguesa fazem uma mini-volta ao país por caminhos pouco explorados e isso é um dos atractivos.

Paramos no ponto de controlo 173, um tripé e um pequeno aparelho electrónico onde cada concorrente passa o seu chip e "marca pontos" (a classificação final inclui uma série de variáveis, herméticas para leigos) o ideal é passar por todos os postos de controlo, mas alguns desviam-se no percurso (perderem-se é normal, por isso é que cada participante é seguido por um serviço de monitorização por satélite) e falham-nos.

O 173 fica no topo de um vale rochoso. Não há ninguém à vista, portanto avançamos para outro, por uma estrada periclitante sobre ravinas "Trânsito fechado". "É só para enganar", diz o nosso guia. Quando vemos um buraco na estrada, como uma dentada gigante, duvidamos. Mas, entretanto, já passa uma equipa, os membros separados por vários metros o cansaço é palpável. O próximo miradouro é amplo. No fundo da encosta várias equipas começam a subir não há mais ninguém na paisagem remota, onde se entrevêem ruínas camufladas e o único som é o de chocalhos. A Team Accelerate Adventure Racing (Reino Unido) chega cá acima, dois membros presos por cordas. Como está a correr? A mulher (as equipas têm quatro elementos e pelo que vimos cumprem "quotas": normalmente um é do sexo feminino): "Fine, not too much work on my tan, though", brinca. O dia está frio, o sol brinca às escondidas, no dia anterior choveu. Porém, eles estão de calções e t-shirts.

A equipa russa, totalmente feminina, passa apressadamente. "Nos últimos dias, as mulheres são bem mais fortes do que os homens, em provas mais longas, sobretudo", sublinha Frederico Tiago, da Associação Portuguesa de Corridas de Aventura, o nosso guia e também participante habitual nestas provas. Mas este ainda é o terceiro dia, há mais quatro pela frente para cumprir os 900 quilómetros de percurso (as corridas de aventura devidem-se em três categorias: curta distância, até oito horas; 24 horas, entre 150 e 250 quilómetros; e longa distância, entre 300 e mais de 1000 quilómetros). O suecos City Wolfs vêm calmamente, dizem que falharam dois check-points por causa do nevoeiro dois ou três metros de visibilidade apenas, queixam-se.

Voltamos à estrada e ao cenário. Ali em baixo, um planalto de erva amarela entre seara de pedras impressiona. "Era uma povoação", dizem-nos. Agora, resta uma pequena igreja de pedra esventrada. Mais à frente, um vale glaciar, garganta profunda que corre até Manteigas, onde já evoluem equipas, apenas pontos coloridos.

Fazemos escala no hotel para seguir para outro ponto do percurso, onde a BTT será o meio de progressão, e a azáfama é imensa. As bicicletas estão a receber as últimas afinações, algumas equipas descansam ao sol. A portuguesa Globaz.pt -Boxit está em torno de uma carrinha branca. Dois membros dormem em boxers, outro trata de roupa. Jorge Xará, 31 anos, engenheiro aeronáutico, já foi a seis ou sete países nesta coisa das corridas de aventura. "Faço sete ou oito provas por ano, uma delas, grande", conta. "Este ano, excepcionalmente, fiz duas". Tudo começou como brincadeira entre amigos, até que se entranhou. "É duro e violento, há o contacto com a natureza, o espírito competitivo, a orientação", enumera. O seu objectivo? "Chegar ao fim". Para isso treinou seis dias por semana, 14 horas semanais.

Barroca quase deserta

As bicicletas vão saindo e mais uma vez subimos e descemos montes para as ver passar, em caminhos extremamente picados, armadilhados de pedras e buracos, por entre bosques de pinheiros e carvalhos e vista para a Cova da Beira. Vão até Ourondo, onde as bicicletas ficam para trás e as canoas seguem em frente.

Entramos finalmente numa aldeia do xisto, Barroca. Aqui, termina um percurso em canoagem (e começa outro em BTT). Alguns já estão de saída, montados em bicicletas com as luzes a brilhar, outros ainda estão a chegar à margem do Zêzere. A escuridão é total à beira-rio e a organização faz sinais de luzes quando vislumbra um caiaque a aproximar-se. É tudo rápido e tumultuoso: "Onde fazemos o check-in?" é a pergunta que todas as equipas fazem quando largam os caiaques. E precipitam-se na escuridão na direcção indicada, enquanto membros da organização recolhem os caiaques. "Está completamente furado" ou "devia parecer mais um submarino do que uma canoa", são comentários comuns.

Num largo de Barroca, há uma bancada da organização e um posto de controlo. "Nunca Barroca teve tanta confusão quanto hoje". Estamos numa "feira da ladra", há roupas, sapatos, sacos espalhados pelo chão em confusão,há bicicletas encostadas, há pessoas deitadas, sentadas, a trocarem de roupa, a massajarem os pés. Stuart Lynch é um deles e um campeão do mundo (membro da neo-zelandesa Oríon que perderia o título na prova portuguesa para os britânicos da Helly Hansen Prunesco). "Vamos descansar um pouco, talvez duas horas. Se calhar nem tanto", explica. O dia correu bem, mas houve um momento de "pânico", quando acharam que não iam chegar ao rio a tempo para fazer a etapa de canoagem (chegaram às 15h00, o limite era 15h30).

Passa das 22h00. Lia e Emil, de oito e quatro anos, são os mais novos espectadores da prova. Estão com as avós, Louise la Point e Louise Pellerin, que vieram do Quebeque para apoiar a fi lha e nora. Já é habitual fazerem-no, mas é a primeira vez que trazem os netos. A equipa vai partir: "À demain", diz Lia, "je t'aime". "Go Quebec, go", gritam as mais velhas, entusiasmadas mas perplexas por não verem "ninguém da população a assistir". "Nos outros países não é assim". As corridas de aventura não são um desporto conhecido em Portugal, e um dos motivos é precisamente o facto de não ser fácil para o público assistir, acompanhar as provas.

Aqui, estamos numa aldeia do xisto, que até é sede da ADXTUR Agência para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto, que lidera o projecto da Rede das Aldeias de Xisto. Os desportos de aventura não são desconhecidos desta zona nem do projecto Aldeias do Xisto é, aliás, uma das suas apostas. Recentemente foram criados os Centros de BTT Aldeias do Xisto, apoios para a rede de trilhos que atravessa o território "demarcado". Há ainda rotas pedestres, e actividades como paintball, rafting, canoagem, escalada são comuns por estas paisagens rudes, de carácter forte, beleza selvagem e trabalho intenso, que descobrimos à boleia das Corridas de Aventura.

Foz do Cobrão, 58 habitantes

Aproximamo-nos de Foz de Cobrão, para descobrir uma aldeia que sobe uma pequena encosta, soalheira, clara, mais branca do que cinza mais cal do que xisto vista assim de fora. Não pode surpreender: o Alto Alentejo está já ali, do outro lado Tejo que banha a sede do concelho, Vila Velha de Ródão. Nos arredores, há campos, olivais e homens que trabalham desde manhã cedo e o horizonte fecha-se na serra de Sarnadas.

Entramos para ruas estreitas, chão empedrado irregular e no primeiro largo que encontramos paramos o carro, que ali ficará até voltarmos à estrada (estamos em plena Foz do Cobrão, só há ruelas a saírem e a chegarem, mas as placas indicam Lisboa para um lado, Castelo Branco e A23 para outro). Não se vê ninguém o ar traz-nos vozes animadas de parte incerta.

O sol aquece esta manhã de Novembro no meio do casario apertado e indisciplinado. Há ruelas, becos, pequenos largos que sobem e descem. Subimos, portanto, porque para baixo vemos a cor das casas e, afinal, procuramos xisto. Ele começa a surgir, primeiro em apontamentos em pequenos anexos. Xisto, madeira e amarelo, parece ser a combinação mais usual. Pequenas construções de xisto abandonadas, humildes outra combinação forte. E no meio de tudo isto, muitas casas pintadas -rebocadas.

Subimos, sempre, e espreitamos uma ruazinha e outra à espera de sermos surpreendidos. E somos, por vezes: a Rua dos Barqueiros, pequenina, ar rústico um pouco abandonado, pequenas escadas desalinhadas; depois a ladeira, poucos metros de rua pitoresca encimada por uma casa branca e lista azul-cobalto, muitos vasos em frente; muros de xisto escondem videiras e oliveiras que estão por todo o lado; uma nespereira surge no meio do caminho.

Na Rua do Chafariz, percebe-se que algo mexe por ali: há uma série de lajes de xisto à espera de serem usadas algo está a mudar, mas são tantas as vielas onde as casas de xisto de um ou dois andares, algumas impossivelmente estreitas, às vezes em passadiço sobre a rua, estão arruinadas. Algumas sobrevivem desde os anos 20, outras são novas, nota-se bem. E grandes.

Nunca paramos de subir. Os telhados da aldeia estendemse para baixo, para cima mais ruas e fachadas de casas de xisto, mas sobretudo pintadas. A Foz do Cobrão está na rota das Aldeias do Xisto mas nem todos estão convencidos com o xisto, dizemos. Maria da Conceição, 61 anos, mora numa casa amarela (clara) e branca, nova. Xisto nem pensar. "No Norte gosto de ver, aqui estava farta disso". Mas isso não significa que a integração na rota não tenha tido os seus benefícios "há dias em que chegam excursões", diz, "e as pessoas andam por aí. E vão ao restaurante [o Vale Mourão], ao rio...". De resto, a vida corre igual, há o café, a mercearia, o centro de dia e à terça-feira vem o autocarro para Vila Velha de Ródão. "Uma pessoa vai às compras, distrai-se".

Hoje há distracção na aldeia. Magusto às 17h00, no Centro de Dia (em breve haverá também um lar), que Joaquim Viegas mostra orgulhoso. Tem 75 anos e encontramo-lo a caminhar vagarosamente já no topo da aldeia, a ver os grifos que vivem nos montes do outro lado, aponta com a bengala: "Recuperaram dois e vieram lançá-los há pouco tempo".

Foi operário na Lisnave, está reformado há 21 anos. Lembrase de quando a aldeia era quase toda de xisto, "mas puseram tudo abaixo". Ele próprio o fez. "A minha [casa] era de pedra. Deitei tudo abaixo, é mais confortável assim". E "mais limpo": "o xisto é bonito para criar teias de aranha e bichos". Quanto aos incentivos, "poucos beneficiam com isso". O xisto "é mais caro e mais trabalhoso", e as pessoas vivem com "o dinheiro contado".

Há recuperação, um dos seus próprios filhos (tem três, dois em Lisboa e outro em castelo Branco) recuperou uma casa de xisto. E "um engenheiro que não é de cá mas tem um colega que casou aqui" veio à aldeia e comprou logo uma casa, que está a recuperar de forma tradicional. É a população de fim-de-semana, "12 ou 14" pessoas que se juntam aos "58, 60" habitantes permanentes.

Joaquim Viegas tem um orgulho visível na aldeia. Tanto que insiste em levar-nos onde ainda não estivemos. Seguimo-lo de boa vontade até à beira-rio, por um caminho estreito de terra de um lado, um pouco abaixo, pequenos campos até ao rio (a encosta em frente ainda recupera de um incêndio e entre as "ruínas" o tronco de um sobreiro que "teria 200 anos"), do outro as "tulhas", de xisto: cada agricultor tinha a sua, onde punha as azeitonas até à altura de irem para o lagar comunitário.

O lagar está ao fundo do caminho e ainda vemos os restos da prensa das azeitonas, mas agora é uma sala de espectáculos. Faz parte do "complexo cultural", juntamente com a antiga fábrica de lanifícios "teria mais de cem anos, deixou de laborar nos anos 30", onde funciona um centro de interpretação (que hoje está fechado). Lá atrás, há uma ponte de madeira, moderna, sobre o rio, que ali é um espelho antes de cair mais abaixo, há ruínas de moinhos e a paisagem é inequivocamente bucólica.

Regressamos ao centro e num pequeníssimo quintal aberto à povoação Aurora Gonçalves e o marido Armando Martins, ambos com 68 anos, afadigam-se em torno de umas poucas oliveiras. "É o trabalho de Novembro, as azeitonas", declara Aurora. E este é ano de apanha "está boa, não está picada" porque com as oliveiras é ano sim, ano não. As poucas oliveiras que ali têm não fazem esquecer o passado todos os socalcos em volta da aldeia estavam carregados de oliveiras, era trabalho até Fevereiro. Agora há menos, mas o azeite continua a ser de alta qualidade; agora, os pinheiros abafam tudo e os incêndios queimam o que sobra.

Reformados, Aurora e Armando regressaram de Lisboa e vão "dando continuidade ao que os velhotes faziam". Mas já não dependem da agricultura, "é por carolice", reconhecem. "Os filhos da Foz têm muito gosto pela terra", lembra Joaquim. E sabem qual é a sua maior riqueza. A água. Da ribeira de Cobrão e do rio Ocreza, do outro lado. "Vem da serra da Gardunha, chega a ficar como o Tejo", garantem-nos, e "até 78 havia um barqueiro e barca para irmos para o outro lado. Burros, cabras, tudo de barca".

Fajão, um conto de fadas

Estamos no cimo do mundo e o mundo é só serra que se repete no horizonte para onde quer que se olhe. Serra com torres eólicas, com tríplices que rodam hipnoticamente. O Parque Eólico de Pampilhosa da Serra encontranos no nosso caminho para Fajão: agora estamos no topo, mas já vamos descer novamente entre o verde escuro do Outono na serra do Açor.

Fajão está encolhida num vale, a crescer do sopé da encosta, rodeada de fragas rugosas (Penedos de Fajão), muralhas inexpugnáveis deste vale profundo. E é xisto que vemos erguer-se, para terminar já colorido nas "últimas" casas da povoação. Deixamos o carro no estacionamento da igreja paroquial, branca, linhas sóbrias e com a torre sineira unida ao edifício por um arco, cercada por grandes árvores agora totalmente despidas, murinhos de xisto, bancos com vista privilegiada para o casario depois desta, uma ponte estreita leva ao núcleo de Fajão.

Entramos na parte "velha"e o passo desacelera, porque os olhos não conseguem descolar das construções madeiras brilhantes e amarelos vivos em contraste com o xisto, os telhados de lousa como ondas negras, as janelas de vidros inteiros, tão rigorosamente típicas e tão originalmente heterodoxas nos pormenores que as tornam únicas: as varandas de madeira, as aldrabas, as cimalhas, as padieiras das portas (por vezes com postigo de vidro). Os passos soam fortes nestas ruas onde não é incomum depararmos com paredes curvas ou outras volumetrias caprichosas, pequenos largos, fontes, misteriosas escadarias, candeeiros de ferro forjado que escapam das paredes. As pedras têm cores diferentes e não é a magia da luz: algumas, mais claras, são uma mistura, que inclui a pedra dos penedos que rodeiam a aldeia. É quase um museu construído para simular uma ideia de passado típico.

Chegamos ao Largo do Museu e estamos num conto de fadas. A praceta é pequenina, desnivelase em escadinhas, tudo em piso de lousa (com água escorrega), as casas são quase miniatura, na varanda-entrada do museu as hortênsias (que se repetem em muitas outras varandas competindo com as sardinheiras) são um mini-arco-íris neste pedaço pétreo. Na ampla Praça Dr. José Maria Cardoso, repete-se o piso mas a esquadria é mais severa, tutelada pela Residencial Cadeia, três andares sólidos que começam numa varanda o nome é herança: já foi cadeia e já foi câmara, porque Fajão já foi concelho (recebeu foral em 1233) e agora arrisca-se a deixar de ser freguesia.

E há pessoas que vivem aqui, nestas ruelas quase perfeitas há casas ainda em ruínas, há casas em recuperação, mas de algum modo parecem não interferir com cenário do "centro". Encontramo-las, juntamente com funcionários do Parque Eólico distinguíveis pelos fatos, no restaurante, o Juiz de Fajão, decorado com xisto gravado, onde o tema das conversas é apenas um: futebol, entre Cristiano Ronaldo e o derby Sporting-Benfica. Antes de acabarmos de almoçar doses generosas já sabemos que o porteiro do museu da aldeia, o Museu Monsenhor Nunes Pereira, não está. "Foi à Pampilhosa", diz alguém. "Ah, ele realmente estava com roupa diferente". Mas rapidamente ali se arranja alternativa: o funcionário da junta vem abrir o museu.

Vítor Pereira, funcionário da junta há alguns anos (já foi presidente da assembleia de freguesia e secretário da junta), chega com a chave e histórias para contar. O museu "está sempre fechado", explica, "mas temos um senhor reformado que tem as chaves, normalmente está no restaurante e vem aqui".

O Museu Monsenhor Nunes Pereira é o típico museu de província, tudo ali está intimamente ligada à história e modo de vida de Fajão e à própria produção artística de quem lhe deu nome e doou a maioria das peças, Monsenhor Nunes Pereira, um filho da terra que foi padre, jornalista, artista e responsável, por exemplo, pela compilação dos "Contos de Fajão", publicados em 1989. A personagem principal destes contos, muitos de origem medieval, é o juiz de Fajão quem foi o juiz?, queremos saber. Não existiu "um" juiz, mas não nos desiludimos, o juiz é um símbolo e os contos, dizem-nos, engraçados, na sua moral brejeira.

Entramos para o "cocão", a cozinha das casas tradicionais, mais funda do que o resto da residência. Está completa, tem fumeiro, forno, tabuão (onde as pessoas se sentavam)... Fora da cozinha, a "oficina" de carpintaria do padre, seguem-se pinturas, peças religiosas, pedras da mina da Panasqueira, máquinas de costura antigas, retábulos de madeira com motivos religiosos muitas das obras são da autoria de Monsenhor Nunes Pereira, que se destacou no desenho, aguarela, escultura, xilogravura. Entre tudo, um retrato do monsenhor, da autoria de um pintor local, Guilherme Filipe. Numa parede, o edital do antigo concelho do Fajão (século XIX), extinto em 1855. "Com a evolução vai deixar de ser freguesia", nota Vítor Pereira. "Aqui, nas serras, não há nada e vão tirando o que temos".

Subimos ao primeiro andar para entrarmos na intimidade de um quarto típico cama de ferro (coberta com um xaile de Merino "quem não tivesse xaile não se sentia bem"), dois penicos, lavatório e pouco mais.

Nas paredes, fotografi as uma do rancho folclórico, de 1957, "havia dez vezes mais gente do que hoje". "Na minha povoação havia 40 miúdos, agora não há um. Em Fajão há dois", lamenta Vítor Pereira. E para mostrar que esta é uma terra de festa, instrumentos musicais enchem o outro lado do espaço: adufe, guitarra, bombo, gaita-defoles, bandolim, flautas.

Ainda há outra sala no museu, na "loja": um fole gigantesco, linho e peças para o trabalhar, instrumentos da resina "uma das coisas que há muitos anos nos deu muito jeito. Vivíamos da resina dos pinheiros, antes de estes arderem". O museu prolonga-se no edifício fronteiro, para uma sala de exposições temporárias, vazia por estes dias.

Em Fajão, diz-nos Vítor Pereira, a maioria das casas estão habitadas, ainda que algumas só no Verão. Por isso, concede, o dinheiro aqui investido na recuperação "valeu a pena" "em algumas aldeias [do xisto] nem sequer vive ninguém, não sei se justifica". Antes as pessoas vinham por causa do restaurante, "almoçavam e iam embora", agora "vêemse a passear e a fotografar". No Verão, a residencial está "quase sempre lotada" e ninguém nega que a piscina, no topo da aldeia, atravessando uma parte de casas novas, foi um bom investimento. Pena é a loja oficial da rede de aldeias de xisto estar fechada - abriu em Setembro de 2008, mas "não chegou a ser conhecida".

Pena, cenário telúrico

Não é fácil chegar a Pena. A estrada é estreita, sinuosa e esburacada; a iluminação, descobriremos depois, escasseia. Mas ainda é dia e o cenário é incrivelmente telúrico: ora atravessamos bosques de pinheiros e eucaliptos ora miramos rudes escarpas, num sobe e desce por nenhures. Temos um primeiro vislumbre dos telhados vermelhos num amontoado escuro, e é depois de uma curva (é sempre assim nestas estradas imprevisíveis) que surge o deslumbramento, a aldeia (contraste de pedra e branco) a trepar de um lado, do outro paredes de rocha, em frente a explosão de amarelos e castanhos que é a natureza outonal bem lá em baixo, uma ribeira brava, saltando de cascata em cascata, de rochedo em rochedo.

Atravessamos a pequeníssima ponte de pedra para paralelos novíssimos e duas placas a indicar, cada uma para o seu lado, Aigra Velha e Comareira também aldeias de xisto que se encontram subindo a serra dispostas como pequenos ninhos de águias. Parece que estamos sós nós e uma pequena matilha de cães que nos recebe, numa espécie de estacionamento virado para os campos e que segue numa rua à "margem" da aldeia (quase uma fortaleza, fechada dentro de si) até se tornar terra e pedra e embrenhar-se no pinhal. Uma porta bate ao longe, uma mulher segue apressada e fecha-se em casa de resto, só o barulho constante de águas e pássaros nesta terra conhecida pelos seus castanheiros, centenários, asseguram-nos.

Seguimos, portanto, que o horizonte é curto: no topo da ruelazinha que penetra na "muralha", uma casa de xisto desprende-se de um rochedo e é fácil ver que uma reabilitação passou por ali. Chama a atenção pelo varandim de madeira negra, de formas retorcidas, em cima da rocha que é a entrada. À esquerda entramos definitivamente no "castelo" (e aqui o termo medieval não parece de todo descabido), na Rua do Quelho (as placas parecem de um parque temático), por uma arcada comprida que é casa de lado e por cima e está restaurada (mantém-se o xisto e a madeira negra). Emergimos da arcada e voltamos os olhos para trás para um momento de postal turístico: por cima do arco, varandinha impecável, do lado, uma escada íngreme que desemboca sob uma mini-pérgola na entrada da casa.

Estamos em território serrano e na Pena esse ambiente respira-se plenamente. As ruas não passam de ruazinhas, que desembocam em larguinhos (parecem pátios comunitários, alguns com bancos e fontes), descem e sobem em escadarias inusitadas (e apertadas). O xisto está presente e talvez domine as construções em namoro com a madeira, mas defi nitivamente não está sozinho no cimo e nas "margens", são as casas modernas que dominam, são o invólucro que preserva o núcleo de pedra. Nem está todo recuperado. Entre os edifícios que foram (estão a ser) restaurados com mais ou menos marcas contemporâneas, há outros que continuam "velhos", alguns abandonados. Entre estes, alguns são apenas currais o que, aliás, nem sequer é novidade, na tradição destas construções, o rés-do-chão seria para o gado. É o que nos diz Lurdes Miguel, 39 anos, a única pessoa com quem nos cruzamos (o resto está a trabalhar no campo, diz-nos), que vem dar comida às ovelhas que se abrigam num destes edifícios, bem no centro de Pena. Ela mora mais acima, numa casa "mista": "metade era de xisto e parte ainda está em xisto, para cima reconstruirmos". Sem xisto. "Os apoios eram só para metade. Quem é que pode pagar?", pergunta sem esperar resposta. Diz, aliás, que a maior parte dos habitantes permanentes não vive nas casas de xisto. Essas são só para os fins-de-semana, altura em que há mais gente na aldeia. Não tem dúvidas de que com o xisto a aldeia "está mais bonita" e este "trouxe mais movimento, até pessoas a passear" e, enquanto não for de mais, Lurdes aprecia essa nova vida ("isto é bom, mas às vezes sossegado de mais").

No entanto, de resto, e apesar da mudança ("as casas estavam no chão e agora não"), tudo continua igual, "não promovem nada". "Não há jornais, casas de banho públicas também não há e fazem falta". E não há loja, nem café. Mas o que Lurdes queria mesmo era uma piscina, "à beira da ponte". Claro que no Verão há sempre mais movimento e é normal verem pessoas a escalar o Penedo da Abelha, que mira de cima a aldeia. "Mete aflição vê-los pendurados".

O Penedo da Abelha faz parte dos imponentes Penedos de Góis que chegam aos 1040 metros de altitude e são a protecção natural da zona, escalam-se, é certo, mas há trilhos (com vários graus de dificuldade) que os percorrem e permitem usufruir do panorama agreste que se abre aqui no extremo oriental da serra da Lousã e pode levar os nossos olhos até ao seu ponto mais alto, Trevim, à serra do Açor e, mais longe, à serra da Estrela. E são parte da prodigalidade com que a natureza presenteou a aldeia, que cresceu alimentada pela ribeira da Pena, leito rochoso e caudal abundante, desfazendo-se em cascatas e serenando em pequenos lagos e no Verão proporciona inesquecíveis banhos.

Onde dormir

Casa da Meia
Encosta Foz do Cobrão
Tel.: 228 305 157; 966 504 149; 228 305 158
E-mail: casadameiaencosta@gmail.com
http://www.casadameiaencosta.blogspot.com/

A Casa da Moita
Rua César Vicente da Silva
Fajão
Tel.: 239 438 074; 933 422 047
E-mail: casadamoita@gmail.com
www.branco.org/casadamoita

Casa da Cerejinha
Pena
Tel.: 239 704 089; 914 009 194
E-mail: info@cerejinha.com
http://www.cerejinha.com/

Onde comer

Vale Mourão
Rua da Alfandega nº 65
Foz do Cobrão
Tel.: 272 543 012; 966 504 149
E-mail: valemourao@gmail.com
http://www.valemourao.blogspot.com/

O Juíz de Fajão
Fajão
Tel: 235 751 219; 963 012 659

Como chegar

Foz do Cobrão
Na A1 sair em direcção a Abrantes/ Torres Novas. Apanhar a A23 até à saída Vila Velha de Ródão/ Alvaiade. Na rotunda, seguir à direita pela EM 545 para Alvaiade e depois para Sarnadinhas. Em Sarnadinhas continuar para Chão das Servas, onde há indicação para Foz do Cobrão.

Fajão
Na A1, sair em Coimbra e seguir a N17. Sair na N342 em direcção à Lousã e continuar no sentido de Góis. Antes de Góis, na rotunda do Cimo do Alvém, virar à direita na N2 para Pampilhosa da Serra. Depois, seguir a N112 até encontrar a placa Fajão/Colmeal.

Pena
Na A1 sair em Coimbra e seguir pela N17. Sair na N342 em direcção à Lousã e continuar para Góis até encontrar as placas indicativas da aldeia.

A Fugas deslocou-se a convite da ADXTUR -Agência Para o Desenvolvimento Turístico das Aldeias do Xisto

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