Aconteceu por acaso: calhou passar por lá, com tempo para gastar e sem nada para fazer. Pasmada, na dúvida, no passeio da 5.ª Avenida, em frente ao número 350, ousei entrar. Comigo, ao meu lado, à frente e atrás de mim, entram outras pessoas que circulam com passo atarefado, ar decidido, rostos cheios de propósito, alheios às toneladas de mármore e aos painéis de motivos Arte Nova. Óbvio, o Empire State Building é muito mais do que uma varanda para turistas; há milhares de pessoas a trabalhar nos escritórios abaixo do 86.º andar. Mas é para aí que eu vou.
Enquanto subia no elevador, concentrada em engolir em seco como instruía o ascensorista, prometi a mim própria desistir da iniciativa se a fila fosse impraticável. Tinha ouvido demasiadas histórias de horror, de pessoas em pé durante horas, ziguezagueando obedientemente por corredores demarcados, esperando a sua vez de passar no detector de metal (enfim, com 4000 visitantes por dia é normal que haja esperas). Mas nada disso, o caminho está livre e nem as meninas que simpaticamente oferecem um acesso facilitado mediante a compra de um "passe expresso", que custa o dobro do bilhete normal, se acercam para fazer publicidade ao seu produto.
Assim, sem dramas, sem mais, ali estava eu, quase no famoso balcão - o observatório, logo ali, depois de galgar os degraus da loja de souvenirs. Eu, de improviso, na varanda onde o Cary Grant esperou pela Deborah Kerr no celebradíssimo filme An Affair to Remember e onde mais recentemente a Meg Ryan ficou com o Tom Hanks no Sleepless in Seattle.
E ali estavam, ao fundo, os arranha-céus do distrito financeiro, cogumelos na ponta sul da ilha. E antes deles, compactos, os prédios que fazem o Lower East Side, e as duas Villages, East e West, e à esquerda os blocos de Alphabet City e à direita os cais de Tribeca e do Meat Packing... adivinho os bairros, as suas ruas, e lojas e restaurantes, daqui vê-se tudo tão pequenino, tão distante, como uma memória.
O Flatiron, esse, vê-se bem, um triângulo elegante, com o seu jardim de árvores ao lado, e a Broadway também tão clara, um ângulo de 45 graus perfeito, a cruzar as avenidas, a cortar a monotonia do quadriculado urbano.
Viro-me para a esquerda, há prédios até à bordinha do rio Hudson, e do outro lado Nova Jérsia é imensa, indistinta, esbate-se na linha do horizonte.
Como seria o cenário quando o Fidel Castro, e o Nikita Kruschev, o Mel Brooks, a Rainha de Inglaterra e o Pelé, algumas das figuras que lembro da galeria de visitantes notáveis, espreitaram por este mesmo balcão?
Aqui tão perto, ali em baixo, estão as letras e os toldos vermelhos do Macy"s, o armazém que cobre quase todo o quarteirão e no outro quarteirão ao lado está o Madison Square Garden. Vejo-o redondo e penso na sua estação de comboios por baixo, e a torre do New York Hotel e agora fazendo a curva, olhando para noroeste, começa a impressionante barreira de torres - é Midtown, e é uma loucura.
Lá está a Broadway, outra vez, e naquela miríade de prédios de Times Square (que pena, os néons são só uns flashes na luz matinal) a maior parte serão hotéis, mas eu sei que uma das torres é a sede do jornal The New York Times, e do outro lado do passeio, muito perto, fica a agência noticiosa Reuters, e que bom que era se conseguisse perceber qual é o prédio da bola - a bola, que cai a cada segundo que falta para o Ano Novo, já fiquei a vê-la cair, um ano, com doze uvas passas apertadas na mão, por baixo das luvas.
De repente, o carácter de improviso da minha ascensão começa a incomodar-me: à minha frente está o rectângulo que é o Central Park, e eu sou a única que não aponta a máquina fotográfica ao oásis verde, nem sequer a câmara do telemóvel. Que não compõe o sorriso para imortalizar o momento, como se fosse uma conquista; à minha volta não há quem não o faça, o braço esticado para a frente e a máquina voltada para si próprio, já me ofereci duas ou três vezes para servir de fotógrafa, com o cuidado de perguntar se o retrato satisfaz ou querem que tire outra?
Mas também não importa, o Central Park não é assim um rectângulo tão perfeito; daqui é mais uma silhueta que se reconhece ao longe, com simpatia. Vejo muito melhor o edifício da Pan-Am que agora é Met-Life, imenso na Park Avenue, e atrás dele a fachada oblíqua do prédio do Citigroup, na Lexington.Vou virando para o lado, agora sigo na direcção leste, e bingo, lá está ele, metalizado, o Chrysler Building, que bonito, enquadrado com as três chaminés brancas com riscas vermelhas do outro lado do rio, e tenho ideia que o East River é mais azul do que o Hudson. Será da luz, será da minha imaginação.
Chego ao edifício das Nações Unidas, e aquela torre Trump, acastanhada, não consigo decidir se medonha ou não. Acho que já dei a volta toda porque mais à direita estão as pontes que ligam Manhattan a Brooklyn e nem preciso de virar a cabeça para perceber outra vez as torres, lá ao fundo, onde fica Wall Street.
Vejo o cume das torres olhando em frente; aliás vejo tudo, a cidade inteira de cima, com a precisão e a estranha sensação de estar suspensa no céu com os pés bem assentes na terra. Aqui estou eu, na varanda mais alta de Nova Iorque, no Empire State Building, de 80 anos, outra vez o edifício mais comprido de Nova Iorque, 443 metros desde o chão até à ponta (da antena) - e não, não vejo, mas sei onde está a ferida aberta das Torres Gémeas, ausentes, bem lá no fundo.
Construído precisamente durante um ano e 45 dias, o Empire State Building abriu as portas a 1 de Maio de 1931. John Jakob Raskob, o promotor imobiliário, batera toda a concorrência: com os seus 102 andares, 1860 degraus, 73 elevadores, 6500 janelas, o Empire State Building (baptizado com o acrónimo de Nova Iorque) foi feito para dominar para sempre o horizonte da cidade.
E domina, é verdade. Não há nenhum ponto na ilha que o iluda, ele é constante, omnipresente. Mais do que o ex-libris da cidade, o edifício tornou-se a peça de arquitectura mais celebrada nos Estados Unidos, o prédio favorito dos americanos, segunda uma sondagem do Instituto Americano de Arquitectos. A Sociedade Americana de Engenheiros Civis designou-o como uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno.
O Empire pode não ter o estilo nem a elegância, o arrojo ou até o excesso de outros dos seus parceiros nova-iorquinos, mas isso é menos do que um pormenor porque, de certa maneira, o Empire é muito mais do que apenas um edifício, é todos os edifícios de Nova Iorque, os que aspiram a tocar as nuvens e os que não se afastam muito do alcatrão da rua - ele tem, condensada no panorama do seu balcão, toda a cidade de Nova Iorque.
Sem querer desvalorizar o génio do seu desenho de traço limpo, tão eminentemente moderno; sem menosprezar o detalhadíssimo e sofisticado desenho do interior; sem pretender iludir a proeza que é manter 15 mil pessoas a trabalhar num mesmo edifício, arrisco dizer que o que realmente interessa no Empire é aquela varanda, da Deborah Kerr e da Meg Ryan, do Fidel e do Pelé, e minha e de todos os turistas e de todos os que se rendem ao feitiço de Nova Iorque.
E subir ao topo é a mais sincera homenagem que se pode prestar à cidade. Esperar algum tempo na fila pelo privilégio de ter Nova Iorque aos pés, de bandeja, nem é um sacrifício tão insuportável, é apenas uma ligeira inconveniência, uma etapa que rapidamente se esquece quando nos vemos lá em cima, testemunhas de uma escala que é "estranha", simultaneamente íntima e monumental, que desafia o equilíbrio e a compreensão.
Na corrida pelos céus de Nova Iorque, o tiro de partida foi dado em 1909 quando abriu a Metropolitan Life Tower, de 50 andares, e depois, em 1913, o Woolworth Building, esse tratado gótico, com 57 pisos e mais tarde, em 1929, o prédio do Bank of Manhattan subia a fasquia para os 71 andares. Walter Chrysler recusava dizer qual seria a altura do edifício que começou a construir em 1928 (77 andares), o que poderá explicar a megalomania de Raskob - o seu prédio seria mais alto.
O edifício - que pesa 365 mil toneladas (57 mil toneladas são o aço do esqueleto) - custou 40.948.900 dólares a construir, abaixo dos 50 milhões orçamentados. O desenho fora entregue à empresa de arquitectura Shreve, Lamb & Harmon. Alegadamente, Raskob entregou o trabalho depois de perguntar a William Lamb: "Bill, até que altura és capaz de desenhar um edifício sem ele cair?"
A cerimónia de abertura foi de pompa e circunstância. As luzes do topo foram ligadas, à distância, pelo Presidente Herbert Hoover, num interruptor na Casa Branca.
Hoje em dia, a iluminação é um dos muitos "negócios" do Empire State Building, que aluga a luz que pinta o topo em diferentes cores para assinalar eventos, homenagear indivíduos ou organizações e celebrar os feriados americanos - no dia da Independência, tem as três cores da bandeira: vermelho, azul e branco. Só por uma vez o Empire ficou às escuras. Foi em 2004, no dia em que morreu Fay Wray, a actriz que King Kong levou para o mesmo balcão que eu percorri, no épico filme de 1933. E foi só por 15 minutos.
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No céu de Nova Iorque mas com os pés bem assentes na terra