Fugas - Viagens

Nelson Garrido

O economista que acabou o mundo

Por Alexandra Couto

A João Paulo Peixoto, não falta nenhum carimbo no passaporte e, há pouco, em Israel, completou uma lista de 204 países, o que faz dele um dos mais viajados portugueses, se não o mais viajado. Já esteve preso em África, teve que pagar subornos para seguir viagem, escapou a um terramoto. Por estas e por outras, sabe que é "um homem de sorte".

"Ninguém me ouve dizer que sou o português mais viajado do mundo. Não uso desses rótulos, porque isto são coisas que os viajantes guardam para si e podem haver outros na mesma situação que eu, sem ninguém saber. O que eu digo é que acabei o mundo. Estabeleci uma meta, dediquei-me a ela vários anos e agora cumpri-a". É assim que João Paulo Peixoto explica a importância que atribui ao facto de, nos seus inúmeros passaportes, contabilizar carimbos relativos a 204 países - 193 reconhecidos pela Organização das Nações Unidas e 11 ditos independentes.

Se a sua primeira viagem foi a Vigo, para comprar caramelos e chocolates que não tinham importância maior do que adoçarem-lhe a infância, a última foi a Israel e selou esse projecto tardio, que começou a delinear-se apenas há oito anos, mas já se deu por cumprido agora em Agosto. Razão para querer conhecer todos os países do mundo? Mais do que a curiosidade natural de quem gosta de viajar, para João Paulo Peixoto tratou-se de uma manifestação de orgulho: "O meu primo Jorge Sequeira tinha viajado muito mais do que eu - devia ter visitado uns 80 países quando eu só tinha ido a 50 - e eu quis ter mais países do que ele. Disse-lhe 'Vais ver se não te ganho!' e a partir daí comecei a levar aquilo a sério."

A pressão foi sendo evitada com "metas pequeninas": primeiro, o objectivo era apenas superar o político Mário Soares, que tinha visitado 130 países; depois, a missão passou a ser a de ultrapassar o Papa João Paulo II, que na sua lista tinha 150; e apenas em 2006 é que não restava alternativa que não fosse "viajar pelo mundo todo" e avançar para "a escolha cirúrgica, chata, de escolher apenas os países que faltavam".

Aos 47 anos de idade, este economista e professor de Gestão não revela como geriu a sua vida pessoal, profissional e financeira para concretizar aquele que é um sonho inalcançável para a maioria das pessoas, mas garante que consegui-lo "não é tão difícil quanto se pensa" e recomenda sobretudo método e "interesse pelo outro". "É que eu não sou um turista", realça João Paulo Peixoto. "Sou uma pessoa que gosta de viajar, de contactar com os locais, de se inserir no seu mundo e de conhecer o ambiente real das coisas."

Em termos práticos, isso vem implicando rigor a vários níveis, começando pela "definição de um roteiro com base na pesquisa realizada não só em guias, mas também em conversas com pessoas que já estiveram nesses destinos, o que é decisivo no caso dos países mais complicados e ajuda muito na questão das burocracias".

O passo seguinte é a bagagem: "Leva-se o mínimo imprescindível, de acordo com a duração da viagem". A mais longa foi de seis semanas no Pacífico - com paragens em Tonga, Tuvalu, nas Ilhas Salomão, em Kola e em Futuna - e a mais curta foi de quatro dias na Guiné Equatorial - onde João Paulo Peixoto só conseguiu visto de entrada depois de uma empresa local lhe garantir contrato de trabalho. Mas qualquer que seja o prazo da estadia, o português tem sempre consigo uma câmara de fotografia e vídeo, roupa velha que não lamente estragar "se tiver que dormir no chão do aeroporto ou em sítios piores", e "folhas de papel soltas" em que possa escrever as suas impressões sobre a viagem.

Também obrigatório é que metade da mala parta vazia. "Preciso desse espaço para as coisas que trago sempre, de todos os sítios onde vou", explica. "Quero sempre um CD ou DVD com música tradicional, um livro de receitas culinárias, um ou mais livros de fotografia sobre o país, uma ou mais peças de artesanato, às vezes uma t-shirt engraçada com referência ao local e ainda a colecção completa de todas as notas e moedas que lá têm em circulação."

"Se há viagens em que se quer companhia, há outras em que se gosta de ir sozinho". As preferidas são as "viagens épicas", como a Rota da Seda, o comboio Transiberiano e todos os grandes percursos que se possam fazer de carro, mas, na maioria das vezes, "metade do tempo passa-se a pensar no trabalho que fica à espera em Portugal", pelo que a volta se quer sempre às sextas-feiras, para "dois dias de descanso a sério antes do regresso à vida normal".

Já em casa, João Paulo Peixoto admite que fica desanimado se lhe faltam os mimos de boas-vindas. Gosta de acompanhá-los com "grandes jantaradas entre amigos" e, porque a maior parte dos CD e DVD que traz consigo raramente chegavam a ser ouvidos, os seus filhos têm agora direito a "dias temáticos, em que ficam a conhecer tudo o que exista lá em casa sobre determinado país".

Acabado o mundo, resta ao professor descobrir novos detalhes ao hemisfério e partilhar com os outros aqueles que já conhece. Para isso, a tarefa que tem em mãos é escrever um livro sobre as coisas que "Só sabe quem lá vai" e dá-las a ler numa edição multimédia, em que as imagens que recolheu por esse mundo fora passem a ter mais sorte do que até aqui. Afinal, o economista diz não notar a inveja natural que as suas viagens possam despertar em quem o rodeia, mas é ao considerar a hipótese que parece descobrir a explicação para uma tristeza recorrente: "Será por isso que os meus amigos nunca querem ver os meus vídeos?"

Esse é, no entanto, um desgosto menor. João Paulo Peixoto já esteve preso em África, viu-se obrigado a pagar cinco subornos consecutivos para prosseguir viagem pelo Congo e receou o pior nas Seychelles, quando o obrigaram a despir-se integralmente perante polícias com luvas de látex. Mas o facto é que deixou as Ilhas Salomão "dois dias antes de um terramoto enorme"; saiu do Hotel Intercontinental, no Iraque, "seis meses antes de os talibãs lá terem ido chamar os hóspedes estrangeiros para os matarem a todos"; e abandonou um autocarro marroquino onde não tinha lugar vago, pouco antes de o ver despistar-se numa ravina, provocando 39 feridos e a morte de nove portugueses.

"Sei que sou um homem com sorte", reconhece o viajante. "Se às vezes não reparava nisso, depois de Marrocos não me esqueço mais."

As viagens de eleição

Índia, 2002
"Se alguém quiser verificar se tem realmente espírito de viajante, é pela Índia que deve começar." Não foi o caso de João Paulo Peixoto, que só aí chegou em 2002, mas ele esclarece: "Quem tem filhos, sabe que eles despertam o melhor que há em nós. A Índia funciona da mesma forma - desperta o melhor de cada viajante. Pela forma de estar na vida dos indianos, pela forma como se relacionam e pela sinceridade com que o fazem, comprovam que Rousseau tinha razão quando dizia que todo o Homem nasce naturalmente bom".

Irão, 2005
Se a ideia que se tem do Irão é de "violência, perigo e mulheres maltratadas", o mais viajado português garante que "a realidade não é nada disso". Em 2005, rendeu-se à simpatia e hospitalidade dos iranianos, que, "embora ostracizados, não sentem ódio nenhum pelos americanos ou europeus", denunciando "elevação de espírito" suficiente para "distinguirem entre os políticos e os povos".

Iémen, 2011
João Paulo Peixoto esteve este ano preso no Iémen, onde as autoridades desconfiaram da extensa lista de carimbos do seu passaporte, mas a situação resolveu-se após uma noite de cárcere e o que "na altura não tinha graça nenhuma" é agora "uma boa história para contar". A essa há que acrescentar, contudo, vários relatos sobre a arquitectura local, as ilhas do país, a "fantástica simpatia árabe", a "comida fabulosa" e até a Kalashnikov que o português aprendeu a manusear para participar na salva de tiros de um casamento iemenita.

Birmânia, 2009
"Temos a mania que nos países autocráticos toda a gente vive infeliz, mas na Birmânia as coisas são ainda piores do que no Irão e as pessoas estão bem, tranquilas e seguras", garante João Paulo Peixoto, que lá esteve em 2009, quando se rendeu à cultura e monumentalidade do país, e também à vivência "tradicional e pura" das suas gentes.

Paquistão, 2010
"Muito parecido com a Índia", o Paquistão de João Paulo Peixoto é o das cheias de 2010, o que lhe permitiu um contacto mais profundo com a comunidade local. Ajudou os refugiados com trabalho físico, apoiou algumas famílias com dinheiro que um ancião distribuiu por quem mais precisava e gravou e fotografou "tudo, como se fosse um jornalista". "Com 50 euros eles sobreviviam um mês", recorda, "e foi a intensidade daqueles dias que me marcou".


Carimbo mais desejado

"Não há." Depois de visitados os 193 países reconhecidos pela ONU e ainda os 11 considerados independentes, João Paulo Peixoto quer apenas "repetir os carimbos" daqueles em que já esteve, mas onde ainda tem "muito mais para conhecer".

Bilhete de identidade

João Paulo Seara Sequeira do Vale Peixoto nasceu em Braga, a 23 de Março de 1964. Muitos conhecem-no como o português mais viajado; alguns chamam-lhe "A Besta" - desde que, há uns anos, enviou do Montenegro uma mensagem de telemóvel em que dizia isto aos amigos: "Hoje sinto-me como uma besta e vou dar cabo desta cidade." Pai de duas meninas de 16 e 13 anos, tem também um rapaz com 15 e outro mais novo, com cinco, que, em homenagem ao país onde foi "concebido", esteve quase para chamar-se "Pedro de Brunei", não fossem as "esquisitices selectivas" do Registo Civil.

A sua primeira viagem foi a Vigo, para compras; depois muitas a França, para onde  o seu tio se mudara depois  de "fugir à tropa"; e daí seguiu-se a Bélgica, onde o mesmo tio acabou por casar. Só depois é que os destinos começaram a diversificar-se, de forma que, aos 30 e poucos anos, João Paulo Peixoto acumulava já a visita a uns 50 países, entre os quais os Estados Unidos e a China ressaltam como os mais frequentados.

Alegrias em viagem, o economista diz ter duas: ser convidado para casamentos e rebentarem-lhe os sapatos ao caminho - "porque isso é sinal de que os levei até ao fim", explica. Mas também gosta de arranjar tempo para conhecer animais e o seu favorito é o dragão de Komodo, "que só se encontra em duas ilhas da Indonésia e faz lembrar o tempo dos dinossauros". Ainda assim, também fala com carinho dos ursos polares brancos do Canadá, dos pandas da China, do diabo da Tasmânia, "que existe mesmo e não é só nos desenhos animados", e dos gorilas do Ruanda, "que se aproximam para tocar nas pessoas, sem medo, e um dia destes deixam de existir".

De paladar, gosta de experimentar tudo e nas comunidades árabes aprendeu até a seguir o regime de "pureza" do Ramadão, que agora diz cumprir todos os anos, onde quer que esteja, "porque tem razão de ser e faz bem ao corpo". Os muçulmanos são, aliás, o seu povo de eleição. "Há muitas ideias erradas sobre eles, mas são quem melhor sabe distinguir entre o bem e o mal."

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