É um pequeno espaço, entre o acolhedor e íntimo, num cotovelo da alfacinha e legislativa Rua de São Bento. Mas, nos seus cerca de cem metros quadrados, esta novíssima livraria de viagens, inaugurada há semana e meia e com o papel ainda a cheirar a novo, abarca o mundo todo. Por sala e meia, perfilam-se estantes de guias, mapas, literatura de viagens, todo o tipo de roteiros, alguns acessórios para o bom viajante. No conjunto, soma Ana Coelho, uma das sócias — juntamente com a amiga Dulce Gomes, propõem-se “umas centenas de referências”. "Mas o stock vive em contínuo crescimento", assegura.
A Palavra de Viajante (cujo nome nasce de um pilar fundamental da casa: a viagem contada na primeira pessoa) quer ser um portal amigável para todas as odisseias possíveis, as reais e as da imaginação. Além dos clássicos e novos guias, resume Ana Coelho, adopta "um conceito mais abrangente, com literatura de viagem, relatos de jornalistas ou embaixadores que deixaram a sua narração do que viram e viveram". Aos livros, juntam-se as comidas e bebidas no Café do Viajante, uma salinha com direito a janela para minijardim e que propõe uma ementa simples onde se conjuga a literatura com pratos e criações nascidas sob influência dos mais diversos cantos do mundo, nomeadamente dos destinos que estejam em destaque na livraria.
O rumo da palavra
Para muitos, abrir hoje uma livraria, e logo destinada ao nicho de viagens, poderia não ser a primeira ideia de negócio a ocorrer. Até há alguns meses, o Centro Comercial da Portela tinha uma livraria similar, a FXS, que entretanto mudou os seus livros para um espaço perto de Sintra, na empresa Touratech, especializada em equipamentos e acessórios para motociclos. Mas as duas amigas, sem relação profissional com as viagens — Ana trabalhava em produção de espectáculos, Dulce é professora de estatística —, decidiram não desistir deste "sonho muito antigo", resultado “da conjugação de duas paixões, naturalmente pelos livros e pelas viagens" e, "sobretudo, por livros que despertam o interesse por viajar". "Tínhamos agora condições para apostar nesta… às vezes não sei se é loucura", confessa-nos Ana.
Uma "loucura" semelhante ao início de muitas viagens: se não fosse agora, "então quando seria a altura certa?". E foi assim que partiram para esta aventura, não sem pensar "mais que duas vezes… umas três ou quatro…". Na génese do projecto, um grande livro, o Danúbio de Claudio Magris, "o historial da Europa no final do século XIX e pelo século XX aproveitando a 'desculpa' do rio". Depois de percorrerem as páginas do livro, as duas sócias realizaram, de facto, a viagem que, aliás, foram relatando num blogue — e é assim que o Danúbio acaba por tomar forma de Palavra de Viajante e desaguar em São Bento. É "uma forma muito interessante de conhecer os povos e as culturas, viajando com o livro e depois podendo fazer a viagem física", resume Ana: "Para mim, é a melhor forma de viajar". Outra viagem marcaria o nascimento da livraria e deixaria marcas decisivas: a concretização de parte do lendário transiberiano.
Em várias outras viagens, foram conhecendo modelos de livrarias e analisando as ideias de algumas "apaixonantes", como as Altair espanholas, ou a maior do mundo, a londrina Stanfords (e assinale-se também a carismática Ulysse parisiense). "Esses espaços grandes inspiraram-nos um pouco". Claro que a dimensão destas referências é outra mas o "espírito" é o mesmo.
Encontrado o local, curiosamente uma antiga loja de guarda-chuvas que foi também uma farmácia num edifício do século XIX, dedicaram-se a pesquisar o "imenso e complexo" mundo das viagens e suas escritas. "A pesquisa de novos guias e livros é contínua e a dificuldade está na escolha, todos os dias há surpresas, autores fascinantes, viagens interessantíssimas", diz Ana. "Ainda agora descobri um autor espanhol que desconhecia por completo, um jornalista do El País que foi correspondente em vários pontos do mundo, Enric González, e que escreveu uma série de livros sobre as cidades por onde passou e que são absolutamente fascinantes, com um sentido de humor extraordinário" (uma colecção de Histórias de Roma, Londres ou Nova Iorque).
É destas pequenas grandes descobertas que se farão os dias da livraria, apostada em enfrentar a concorrência das lojas online ou das grandes cadeias com "simpatia e boa disposição", sorri, prometendo um "atendimento próximo" que passa por "conhecer bem o cliente, por poder aconselhar". Não há ilusões: "Claro que a Amazon também faz isso automaticamente mas nós [fazemo-lo] em carne e osso e de forma realmente personalizada", adiantando, porém que no site também irão possibilitar a compra online. O futuro passa por "apostar muito no espaço como um sítio de convívio entre as pessoas", incluindo eventos e tertúlias, apresentação de livros ou encontros de grupos de viajantes que queiram mostrar fotografias e conversar sobre as viagens. Para breve, deverão mesmo surgir Leituras-Aperitivo, sessão que deverá inter-relacionar os destinos em destaque com a gastronomia.
A vida é uma viagem
Pelas estantes, o mundo. Há Histórias Etíopes a descansarem perto de Marraquexe. A Índia de Preste João encara Deus, o Diabo e a Aventura de Reverte. África Minha surge como uma moldura de um ente querido e aninha-se entre outras Áfricas. No centro do mundo, isto é, no centro da loja, avistava-se uma mesa turca com a Istambul de Pamuk como epicentro, rodeado de guias ou de monumentos bizantinos da cidade. O Douro mostrava-se em vinhos escritos ou num Porto Iluminado. As Memórias do Vinho harmonizavam-se com o Vale Abraão. Já Gonçalo Cadilhe descansa os seus Encontros Marcados no ombro da Odisseia de Homero. Livros de cozinha de proveniências várias cruzam-se com Ecological Hotels, o Atlas do Viajante move-se entre novas e clássicas referências da Lonely Planet ou Rough Guide, entre mapas de linhas de ferro ou de destinos menos acessíveis, como o Cazaquistão ou Camboja.
Os mais pequenos têm direito a um cantinho próprio, numa sala onde uma velha mala de viagem vive uma reforma de rotas agora só lidas e o antigo balcão-vitrina da loja de guarda-chuvas ganha vida nova como mostruário. Por aqui, há o recanto das viagens em família ou mesmo obras só para miúdos curiosos, incluindo guias adaptados, aventuras de Tintin ou imaginações de Júlio Verne. A parte ainda menos desenvolvida é a de acessórios (carteirinhas, etiquetas, blocos de apontamentos, bolsas, etc.) mas prometem enriquecer brevemente esta secção. No centro da agenda viajante, haverá todos os meses destinos nacionais e internacionais em destaque, com uma série de obras seleccionadas e com a ementa do café a ser adaptada a essas geografias.
E, apesar de a casa ser de tamanho “íntimo”, até a localização parece abençoar a sua própria viagem, tendo garantida uma vizinhança com muitos mundos, o que inclui o contínuo desfilar de turistas que vivenciam a rota do lendário eléctrico 28, cuja linha passa mesmo aqui à porta. Ao lado, temos o Café Spock, que evoca o personagem da série de grandes aventuras espaciais Caminho das Estrelas. À frente, uma casa onde viveu Fernando Pessoa, esse outro viajante espacial e o homem que escreveu "Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, / Por a alma não ter raízes / De viver de ver somente!...". Em tempos de crises várias, remata Ana Coelho, “se não pudermos viajar fisicamente, se calhar podemos viajar através dos livros”.
O café do viajante
No Café do Viajante — que tem por mote "cozinha internacional" e que sugere que se "… conheça o mundo na ponta da língua … —, as propostas conversam sempre com os livros. Por exemplo, com o Douro em destaque na casa, não faltam, naturalmente, vinhos da região (sugeriam-se Burmester DOC, Bajancas ou Quinta do Soque, moscatel do Douro ou, claro, vinho do Porto). E com Istambul como destino internacional de referência, a ementa por estes dias fazia-se de pratos com influências turcas ou de áreas culturais próximas — há pouco, havia uns ovos Sultanahmet ou uma salada Constantinopla, com gelado de açafrão com pistácios como proposta de sobremesa. Novembro, prometem, será, "gastronomicamente, um mês em cheio", com influências da Terra do Fogo, Antárctida ou Úmbria e, a nível nacional, com sabores de Óbidos ou Marvão.
Sugestões de Ana Coelho/Palavra de Viajante
Railway Maps of the World, de Mark Ovenden (Viking, 2011, 138 p., 25,48€)
Um guia essencial dos caminhos-de-ferro mais emblemáticos, históricos e ambiciosos de todo o mundo. Uma preciosidade tanto para amantes dos comboios como para coleccionadores de mapas.
Travels With My Aunt, de Graham Greene ((Vintage, 1999, 262 p., 12,31€)
Um verdadeiro clássico da literatura e um dos mais divertidos relatos de viagem alguma vez escritos.
A Ponte sobre o Drina, de Ivo Andrić (Cavalo de Ferro, 3.ª tiragem, 2009, 407 p., 20,04€)
História sobre uma ponte, local de passagem, de encontros, de conversas e de conspirações, numa cidade fronteiriça entre a Sérvia e a Bósnia. Escrito de forma exímia pelo Nobel da Literatura Ivo Andrić, A Ponte sobre o Drina, é um tratado sobre as relações humanas, sobre as pequenas histórias e a grande História, num cenário que tanto marcou a Europa no século XX.
Silk Road - Monks, Warriors & Merchants, de Luce Boulnois (Odyssey, 2005, 575 p., 28,54€)
Traduzido do original francês, este livro explora o encontro entre Oriente e Ocidente numa das mais importantes rotas comerciais da História da Humanidade, que permitiu a troca de ideias, de crenças, de técnicas e de obras de arte, entre tantas outras.
Viva México, de Alexandra Lucas Coelho (Tinta-da-China, 2010, 369 p., 17,90€)
Um retrato actual e muito sentido de um país enorme e diverso, que poucos portugueses conhecerão aprofundadamente, escrito pela jornalista do Público.
Deus, o Diabo e a Aventura, de Javier Reverte (Quetzal, 2010, 253 p., 18,13€)
Uma espécie de biografia do jesuíta Pedro Páez (1564-1622), que foi missionário na Etiópia e que terá descoberto o Nilo Azul. Para complemento, a História da Etiópia, escrita pelo próprio e editada em Portugal pela Assírio & Alvim.
LeCool Lisboa (Le Cool, 2008, 263 p., 19,99€).
Este "estranho e maravilhoso guia sobre Lisboa", como se refere na contracapa, mostra uma cidade menos vista pelos turistas. Trendy em absoluto, tradicional q.b.
Isto é Londres, Isto é Nova Iorque, Isto é Paris, Isto é Roma
Quatro livros maravilhosos, com texto e ilustrações Miroslav Sasek, e originalmente editados em 1960, que a Civilização Editora considerou - e muito bem - traduzir para português. Para público mais jovem, é certo, mas nós adultos ficamos igualmente deliciados.
Constantinople. City of World's Desire, 1453-1924, de Philip Mansel (John Murray, 1995, 528 p., 18,35€).
A muito aclamada história de Philip Mansel revela a interacção entre a vibrante e cosmopolita Constantinopla e os seus regentes.
Timor-Leste (East Timor) (Lonely Planet, 2011, 168 p., 21,50€)
Editado em Julho deste ano, o guia revela-nos um Timor Leste algo desconhecido e particularmente apetecível: de mergulho e trekking a vastos areais desertos. Para além, claro, de uma secção sobre a herança portuguesa.
Palavra de Viajante
Rua de São Bento, n.º 30
1200 Lisboa
Tel.: 211956340
www.palavra-de-viajante.pt
Horário: de terça a quinta, das 10h às 19h; sexta e sábado das 10h às 20h30