Eu deixei o olhar vaguear um pouco, à volta do pátio interior, depois até à porta azul de ferro, por onde acabara de entrar, tentando perscrutar uma presença feminina. De seguida passei a mão pelo cabelo para confirmar se estaria assim tão longo. A senhora, com a sua saia comprida e uma blusa de uma cor alegre, indicou-me um quarto onde, à entrada, repousava um pequeno balde amarelo cheio de água. Eu transpus a porta e depositei os olhos na cama onde mal cabia o meu corpo, quanto mais o meu e o de uma mulher. Aquele espaço exíguo, com uma janela gradeada, com as suas paredes nuas, aqui e acolá órfãs de tinta, assemelhava-se a uma cela de uma prisão.
- São muçulmanos e, por isso, está proibida a entrada de mulheres na pensão -, explica-me um homem que, uns dias depois, para minha surpresa, haveria de viajar no mesmo autocarro que eu ao longo das estradas de terra batida e das paisagens imponentes das Montanhas Simien.
Uma hora antes, o Bombardier da Ethiopian Airlines fez-se à pista com brusquidão e alguns turistas, na sua maioria franceses, assustaram-se quando, subitamente, deixaram de ouvir o barulho das hélices. Sou o primeiro a entrar no edifício central do pequeno aeroporto e, contrariando o habitual, desta vez não há representantes dos hotéis à chegada. As placas que os publicitam, em cartão, estão todas deitadas, o que significa que terei alguma dificuldade em encontrar um quarto vago durante a minha permanência de dois dias em Axum, a mais antiga cidade da Etiópia.
Negoceio o preço de um táxi até ao centro por menos de um euro e tenho como companhia, além do motorista, uma senhora sorridente com várias pulseiras em ambos os braços cruzados no ventre, sempre mergulhada no silêncio enquanto atira olhares furtivos através da janela.
Sob a cúpula ampla do céu pintado de azul, as ruas fervilhavam de gente quando o carro, velho sem idade, me deixou à porta da Pensão Amir, com as suas paredes de um amarelo-beje-desmaiadas. O meu quarto, despojado de qualquer intimidade, convida-me a sair para a rua abrasadora à procura de um restaurante que descubro ao fim de menos de 100 metros a caminhar, depois de passar por uma senhora, envolta em farrapos e com os pés despidos, que me estende as mãos em concha, rogando uma esmola.
- Olhe que vai demorar um bocadinho!
Resignado, com todo o tempo para conceder ao destino, limito-me a sorrir para o empregado e peço um prato vegetariano. Nesta altura do ano, devido às celebrações religiosas, não se consomem produtos de origem animal.
- É servido?
Agradeço e troco um olhar cúmplice com a numerosa família sentada na mesa ao lado, no momento em que o rapaz, com um tufo de cabelo que lhe cai pela testa, deposita à minha frente uma tella, a cerveja local confeccionada à base de cevada. O restaurante, todo em madeira, com enormes vigas a sustentar o tecto, está cheio e os empregados correm de um lado para o outro como se fizessem parte de um formigueiro enlouquecido.
- Aqui está! Bom apetite.
O pequeno prato de legumes faz-se acompanhar de injera. À primeira vista, o mais desatento pode pensar que, pela forma como surge enrolado, se trata de um toalhete daqueles que, cada vez menos, recebemos nos aviões nos instantes que antecedem a refeição. Semelhante a uma panqueca, com um diâmetro de 50 centímetros, o pão é feito de uma massa de água e teff, um cereal que se cultiva em terras etíopes, e cuja mistura é deixada a fermentar durante três ou quatro dias até ficar pronta a ser assada num artefacto de barro.
- Gosta?
Por essa altura, já despejara o prato de legumes em cima da injera e, sempre com a mão direita, gozava dos prazeres do almoço no meio daquela explosão de alegria em que se transformara o restaurante.
A velha igreja
O sol parecia ter caído à terra quando me aproximei do mercado de cestos - para guardar a injera - com as suas cores em amarelo, em lilás, em rosa, em vermelho, em verde e em azul, contrastando com o branco ofuscante das roupas das mulheres, algumas abrigadas debaixo de uma árvore que parecia querer abraçar a praça, outras sob sombrinhas também de múltiplas cores.
- Foto?
O menino, com a sua camisa puída, sandálias de plástico e dentes brancos como o leite, fita-me com uma expressão carregada de veneração, corresponde ao meu sorriso e, soerguendo-se, ajeita os colarinhos, assumindo uma pose hierática. Uma mulher, com as orelhas muito grandes, como se alguém lhas tivesse colado, com uma argola dourada na esquerda e um brinco prateado com uma pedra azul em cada uma delas, olha-me com uns olhos mudos sob umas sobrancelhas pouco espessas e uma testa comprida onde se destaca uma tatuagem da cruz ortodoxa. Uma trança fina corre de um lado ao outro da fronte e, ao meio daquela, nasce uma outra que se estende pelo crânio também cheio de tranças, até à nuca, de onde parte uma longa e abundante cabeleira, tão negra como um melro, que lhe preenche os ombros como se fosse um ninho ou as golas de um casaco de peles.
Os meus pés conduzem-me para a frente, ao longo da Denver Street, mas de quando em quando a cabeça vira-se para trás, para observar, até se perderem no horizonte, aqueles homens e aquelas mulheres vivendo as suas vidas. Na rua asfaltada, por estes dias cortada ao trânsito, no meio daquele ar quente e imóvel, vende-se de tudo um pouco. Ao fim de uns metros, virando à direita, a terra seca, fustigada pelo sol, vence o alcatrão e, de um lado e do outro, protegidos pelas fachadas das casas de adobe ou pelos muros de pedra que lançam sombras, os cegos, sentados no chão, alguns deles com a cabeça afundada nos joelhos, estendem as mãos à caridade.
A mulher, com a sua kemiss branca onde se destacam coloridos desenhos geométricos, ergue as mãos e os olhos humedecidos ao céu mesmo em frente à grossa porta de madeira. Uma outra, também de branco, não larga o chapéu-de-sol amarelo quando, depois de fazer a genuflexão, beija o chão plantado de pedras e de fragmentos de palha. As duas nem precisam de ler a placa afixada no muro para saberem que têm a entrada vedada - e o mesmo se aplica, nos mosteiros e lugares sagrados, a qualquer animal do sexo feminino.
Por momentos voltei a passar a mão ao de leve pelo cabelo e, determinado, franqueei a porta e subi as escadas de pedra irregular que o tempo se encarregou de alisar até quase tocar numa das paredes laterais do mais importante santuário sagrado de toda a Etiópia, onde centenas de homens, de costas para mim, rezavam num murmúrio imperceptível. Abraçada naquele dia por uma longa tarja com as cores da bandeira nacional - verde, amarelo e vermelho - , reza a história, sempre envolta nas brumas da dúvida, que a capela original terá sido fundada, no século IV d.C., por Ezana, primeiro imperador cristão deste país milenar que durante o reinado mítico de Preste João seduziu o Portugal renascentista.
No ano de 1805, o aventureiro inglês e egiptólogo Henry Salt descobriu entre as ruínas de Axum inscrições talhadas numa pedra, escritas em ge'ez, língua que remonta àquela época, e também em grego. Nelas se dava conta das proezas de Ezana e do seu vasto império que contemplava uma grande extensão de África, bem como das suas riquezas provenientes do comércio do ouro, madeiras nobres, especiarias e marfim, entre outros produtos exóticos procedentes da Ásia.
Nessa altura, palácios e casas com seis pisos ocupavam as ruas de um reino cuja imponência encontrava paralelo em outros importantes, como Roma, China ou a Pérsia. O apogeu prolongou-se até ao século VII, quando os muçulmanos conquistaram o Médio Oriente e ocuparam todo o litoral do Mar Vermelho, isolando Axum e cortando as rotas comerciais com a Europa e a antiga Constantinopla.
- Todos os anos aqui se reúnem, nesta altura do ano, mais de 20 mil peregrinos. Você tem motivos para se sentir um privilegiado por poder assistir à maior manifestação de fé de toda a comunidade cristã ortodoxa da Etiópia.
O padre Wondiyfraw, com as suas vestes brancas por onde lhe cai uma cruz, a meskel em amárico, tem razão. Eu permito que o olhar percorra livremente o espaço à minha volta e não encontro um único turista. A luz do sol derrama-se nos rostos de um grupo de homens que, encostados a um muro, seguram nas mãos a metaf kiduss e o mekuteria, a bíblia e o rosário de madeira, enquanto lançam olhares à igreja que parece ter penetrado nos seus sonhos.
- Portugal desempenhou um papel relevante na história deste país.
O padre, com os seus olhos mortiços num rosto benevolente, espera uma reacção da minha parte. Com a chegada do islão, a Etiópia viveu 500 anos marcados por conflitos religiosos; apenas no século XVI, com a ajuda dos portugueses, numa altura em que se intensificavam as lutas, os muçulmanos foram derrotados. Nos dias de hoje, o número de cristãos ortodoxos na antiga Abissínia ascende a 45 milhões de almas, o que corresponde a 60 por cento do total da população etíope.
- Santa Maria de Sião está para os ortodoxos como o Vaticano está para os católicos ou Meca para os muçulmanos - murmura, quase ao meu ouvido, o padre.
Construída em 1665, Santa Maria de Sião foi destruída e de novo erguida duas vezes mas permanece como um dos mais belos exemplos de arquitectura tradicional dos tempos do Imperador Fasiladas, fundador da cidade de Gonder, a sul de Axum e já às portas do lago Tana.
Wondiyfraw invade agora, com alguma dificuldade, o interior daquele lugar de culto, o maior centro de peregrinação de toda a Etiópia. No meio da penumbra destaca-se um conjunto de murais, entre eles uma pintura dos Nove Santos que eterniza a presença, no final do século V, de um grupo de missionários que, além de converterem os locais ao cristianismo, fundaram alguns dos mosteiros mais proeminentes no norte do país.
A Arca da Aliança
- E a arca, padre?
Ele olha-me com uma intensidade desconcertante e, com a ligeireza de uma onda e gestos incomensuravelmente delicados, deixa que as palavras lhe subam aos lábios crestados.
- A Arca da Aliança não pode ser vista por ninguém. Ela é vigiada, dia e noite, por um guardião que está impedido de falar deste assunto até à sua morte. Mas esta não é a única condição para se tornar guardião.
Ao nosso lado, um rapaz sacode as moscas com a sua chira, que se assemelha, em parte, à cauda de um animal. O padre parece escutar os raros e fracos sons antes de prosseguir.
- É obrigatório que tenha vivido durante 20 anos em Axum e que, durante o mesmo período, se tenha dedicado ao sacerdócio.
Uma mulher, com o rosto cheio de rugas que se ramificam em sulcos, cabeceava um sono e resplandecia sob os raios do sol. Na mão direita, um terço de grossas contas de madeira e, ao seu lado, o butr, que tem a forma de uma bengala.
- Já me esquecia - diz Wondiyfraw -, o guardião tem de renunciar definitivamente ao álcool. É provável, com um pouco de sorte, que os seus olhos se cruzem com os dele. Mas é de todo improvável que obtenha qualquer palavra a respeito da arca. De acordo com o Antigo Testamento, o nascimento da Etiópia remonta ao ano 1000 a.C., à história de amor entre a rainha de Sabá e o rei Salomão. Nessa época, o reino de Sabá controlava uma extensa região de África que englobava o Iémen, a região do Tigrai e todo o território da actual Etiópia, um poderio económico que resultava do monopólio que detinha sobre o comércio das grandes caravanas que transitavam entre a Ásia e o resto do mundo.
Fortemente atraída pelas histórias que andavam de boca em boca sobre a sabedoria, o sentido de justiça e as grandes riquezas do Rei Salomão, Makeda, rainha de Sabá, tomou a decisão de ir conhecê-lo pessoalmente durante uma visita oficial. Diz a lenda que ambos se apaixonaram perdidamente no momento em que se viram pela primeira vez e, no regresso, Makeda já carregava nas suas entranhas um filho de Salomão.
Ao meu lado, um jovem, com um sorriso bondoso, pergunta-me qual é a minha religião.
- Católico. Mas não frequento a igreja...
- Então não és católico!
Um cão, magro e com uns olhos submissos, fareja as minhas pernas. O fluxo das palavras do bispo raramente é interrompido. Recortando-se de pé contra as paredes de uma capela contígua à igreja, numa quietude sonhadora, alguns homens folheiam bíblias que parecem existir desde que o mundo é mundo.
- Mas a minha mãe vai quase todos os dias à missa...
Ele fita-me com uma expressão sombria, mantendo os olhos fixos nos meus olhos.
- E depois? Isso não faz de ti católico.
A tese é razoavelmente sensata mas não me desvia da bonita história de amor entre Makeda e Salomão.
Quando o filho de ambos, já um adolescente, resolve empreender uma viagem a Jerusalém para conhecer o pai, este nomeia-o seu sucessor, ignorando que já estava predestinado a ser o futuro rei da Etiópia. De início relutante, Salomão acaba por deixar partir Menelik, presenteando-o com uma réplica da Arca da Aliança. Mas uma noite, momentos antes de iniciar a sua viagem de regresso, troca a arca pela autêntica e foge com ela rumo a Axum. Quando, horas depois, os sacerdotes dão conta do furto, começam a persegui-lo para o matarem. Salomão, conhecido pela sua bondade, acaba por perdoar o filho e oferece-lhe a arca que, tudo indica, estará agora a escassos metros de mim e daquele mar de gente à minha volta que a conhece por Tabot.
- Você conhece a lenda da arca mas sabe, por acaso, que significado tem, de que é feita, o que contém? Não sabe, pois não?
O padre, cujos olhos brilhavam como espelhos, limpou a fronte com as costas da mão e observou um pássaro que rodopiava no céu claro. Eu mantive-me em silêncio, limitando-me a acompanhar os seus gestos.
- Sabe ou não?
De acordo com o livro do Êxodo, que relata a errância dos hebreus, em fuga do Egipto, pelo deserto ao longo de 40 anos, Deus terá dado instruções precisas a Moisés, durante a sua permanência de 40 dias no Monte Sinai, para orientar a construção de uma arca onde deveriam ser guardadas as tábuas de pedra dos Dez Mandamentos, a vara de Aarão e um vaso de Maná. A arca, em madeira de acácia, teria de obedecer a um comprimento de dois côvados e meio, a uma largura e a uma altura de um côvado e meio, toda coberta de ouro puro, por dentro e por fora. Em redor do baú rectangular, uma coroa, quatro argolas laterais, tudo em ouro, e varas de madeira de acácia revestidas com o mesmo metal e que permitiriam o transporte da caixa que também é conhecida como a Arca do Testemunho.
Mas Deus não se ficou por aqui. A Moisés foi ainda pedido que a arca deveria comportar, numa única peça, um propiciatório em ouro puro e dois querubins de ouro batido, um em cada extremidade, com as suas asas para cima, cobrindo a tampa, e as faces uma defronte da outra mas voltadas para o propiciatório.
O trabalho estaria, assim, terminado mas Deus tinha ainda mais uma exigência a fazer, como se pode ler no Livro do Êxodo (Ex 25:10-22). "E porás o propiciatório em cima da arca, depois que houveres posto na arca o testemunho que eu te darei. E ali virei a ti, e falarei contigo de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins, tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel."
Representando Deus na Terra e a aliança com o povo de Israel, a relíquia que inspirou Steven Spielberg em Os Salteadores da Arca Perdida era colocada num tabernáculo sempre que os hebreus acampavam no deserto. Quando, a caminho da Terra Prometida, chegou às margens do Jordão, o rio secou no momento em que os padres levitas, carregando a arca, sempre coberta com um véu (significava a separação entre Deus e o homem e apenas o sumo-sacerdote lhe podia tocar), colocaram os pés na água - e seco se manteve até todo o povo que a seguia passar para o outro lado.
Quase me apetecia perguntar:
- Está contente, padre?
As águas do rio desapareceram mas é de água que está à espera, recolhido à sombra das árvores, um grupo de crentes, uns de pé, outros sentados, uns atentos, outros indolentes. Uma longa fila de garrafas e de bidões de plástico, como se de uma serpente se tratasse, estende-se na terra sob o sol inclemente e aproxima-se do muro com grades que protege a capela onde, presumivelmente, se encontra a arca.
- Estão à espera da água benta -, esclarece Wondiyfraw, percebendo que eu cravava o meu olhar naquele ponto.
O padre convida-me a segui-lo.
Uma questão de fé
À esquerda, sobe aos céus um monumento de betão encimado com um sino de onde cai uma bandeira da Etiópia e cujo reflexo se observa nas águas castanhas de um lago artificial apenas parcialmente coberto. Na parte seca, há dezenas de cadeiras mais ou menos alinhadas e vazias. O povo, sob as árvores ou recebendo os raios hostis do sol, mantém-se de pé ou sentado no chão. A cerimónia, que se iniciara ao romper da manhã com a presença das mais altas patentes da Igreja Ortodoxa, com as suas roupas de cores vivas, eterniza-se pela tarde dentro. A missa começara há três horas e há, entre a multidão onde o branco se destaca mais do que nunca, quem se deixe vencer pelo sono.
A mão velha de uma velha sentada num muro agita-se no ar de forma ameaçadora impedindo, como um polícia numa fronteira, a passagem de uma mulher na direcção da basílica. Deste lado, onde agora me encontro, é território feminino mas nada impede os homens de se juntarem à volta daquele edifício ou mesmo de penetrarem no interior. A nova igreja de Santa Maria de Sião foi mandada construir em 1950 por Haile Selassie e reflecte o habitual mau gosto do antigo imperador etíope.
De repente, um grito ecoa nos céus: a mulher, vestida de rosa, projecta o corpo para a frente e para trás e ameaça desmembrar-se a qualquer altura. Eu, virado para uma das portas laterais tapada com uma cortina e com o museu nas minhas costas, não percebo a indiferença das pessoas perante aquele brado cada vez mais estridente que não deixa ouvir as palavras do bispo.
- É o diabo!
Os meus olhos resvalaram para um homem que apoiava o cotovelo no muro de pedra e que, perante o meu silêncio e ar incrédulo, deve ter pensado que a minha compreensão era igual à de uma mula.
- Ela está possuída pelo diabo.
Em redor, as mulheres, levantando as palmas das mãos e os olhos para o céu azul, vestem as suas habeshas e tapam a cabeça com o sash, tudo tão branco que se assemelha a um manto de neve.
- Esta é a décima vez que visito Santa Maria de Sião. É uma questão de fé mas também me sinto atraído pela cor e por tudo o que rodeia este dia tão especial para a igreja ortodoxa.
Getachew Haymanat está ao lado da mulher, em cujo rosto assoma um sorriso dócil.
- Temos de fazer grandes poupanças para virmos desde Adis Abeba até Axum. Felizmente, temos família aqui, pelo que não precisamos de gastar dinheiro em comida ou em alojamento -, releva Miheret Ashanafi, em Axum pela terceira vez.
Se Getachew Haymanat e Miheret Ashanafi gastaram quase 200 euros (4300 birrs) para comprar bilhetes de avião, a maior parte viaja durante dois ou três dias, em autocarro, ao longo das estradas poeirentas dos planaltos, para chegar a esta cidade que parece despertar de um sono profundo no final de cada mês de Novembro.
- Para mim já se tornou quase uma rotina mas para ti seria algo de memorável. As pessoas são solidárias, há cânticos dentro do autocarro, faz-se uma colecta de quando em vez para depositar nas mãos dos eremitas que se encontram ao longo do trajecto. Vale a pena, acredita que vale a pena.
Abaynshe Tsexes, com o cabelo pintado de castanho tocando-lhe os ombros e uns olhos negros, viajou desde Bahir Dar, nas margens do lago Tana, e estará de regresso no dia seguinte.
- As avarias ou os furos nos autocarros são frequentes. No mínimo, devo demorar três dias a chegar a casa, seguramente cheia de pó. Mas é a minha fé que me move.
A cortina abre-se agora e deixa ver os milhares de crentes, uns carregados de sombras, outros com a luz dançando-lhe nos sashs, como um cenário bíblico. Ao fim de três horas, o bispo dá por terminada a missa e a multidão, como o tumulto de uma onda, enche a moldura da porta e precipita-se para o exterior, recebendo nos olhos aquela imponderável luminosidade na forma de uma bofetada violenta. À minha volta tudo é branco, parece que uma mortalha cobre a terra ou que todas as noivas decidiram casar no mesmo dia.
- Ainda por aqui?
Reencontro o padre e com ele caminho para a saída, passando de novo ao lado da capela onde está guardada a Arca da Aliança e onde os homens, do lado de fora das grades, estendem as garrafas a outros homens que as enchem de água.
- Sente-se ou não um privilegiado? Boa viagem e que Deus o ajude!
Despeço-me de Wondiyfraw e caminho, com espasmos de emoção e os olhos vagamente lacrimejantes, ao longo da Denver Street, onde esvoaçam os sons festivos. Já no centro da cidade, assisto, mortalmente cansado, ao cerimonial do café, bura em amárico, pelo qual espero quase meia hora, e sento-me na esplanada a ver o mundo correr à minha frente. O calor começava a abrandar quando entrei num bar banhado por uma luz ténue que adensa a minha melancolia.
Aos poucos, as sombras nocturnas espalmam o chão e o sol é agora substituído pela lua que sobe no céu cheio de estrelas. Sentada numa mesa do St. George Draft House está uma mulher com uma pele cor de chocolate, uns olhos pequenos e um nariz delicado, com uns lindos cabelos castanhos que lhe caem em anéis soltos pelas costas e que me olha como se eu fosse um animal em vias de extinção. No exterior, uma luz moribunda ilumina homens e mulheres que parecem errar sem destino.
- Posso-me sentar?
O brilho fulgurava-lhe nos olhos escuros sob as sobrancelhas bem tratadas. Articulava muitas palavras em inglês e sorria por tudo e por nada. Juntos, bebemos cerveja e os copos erguiam-se a uma velocidade superior à da lua no céu.
- Em que hotel estás instalado?
A minha memória quase já não tinha memórias daquele quarto tão pequeno, tão despido e que agora se desenhava na minha imaginação e provavelmente na dela.
- Os donos são muçulmanos? Sabias que em Axum não há mesquitas? E que os muçulmanos se queixam de alguma discriminação?
Eu respondi:
- Estou a ver!
Mas não estava a ver nada.
Ela atirou os bonitos olhos na direcção do empregado, pediu mais duas cervejas e perguntou:
- Posso, então, oferecer-te uma coisa?
Eu hesitei mas acedi.
Ela lançou as mãos atrás do pescoço e desapertou um fio com uma cruz ortodoxa em madeira que segurou na mão direita. Levantou-se e colocou-o no meu pescoço.
- Fica-te bem. Assim levas uma recordação de Axum.
Eu levantei-me e pedi licença para me retirar. Caminhei uns metros, atravessei a rua, escutei os sons da noite, o ladrar distante dos cães e ali estava, em frente à Pensão Amir, entregue ao seu silêncio.
Passei a mão pelo cabelo e, logo de seguida, simulando uma alergia no pescoço, atravessei a porta azul de ferro com a mão direita sobre a cruz ortodoxa, rezando para que a mulher não se cruzasse no meu caminho e dissesse:
- Aqui não podem entrar mulheres nem cruzes ortodoxas.
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Quando ir
A época das chuvas ocorre entre meados de Março e finais de Setembro mas mesmo durante este período são muitos os dias de sol. Em Outubro, os campos estão verdes e o número de turistas é escasso, pelo que se afigura como um dos meses recomendados para visitar a Etiópia. Para quem desejar assistir às celebrações em Axum, em finais de Novembro, o melhor é reservar com grande antecedência, tanto hotéis como ligações aéreas.
Como ir
A Lufthansa e a Air France viajam para Adis Abeba com preços a rondar os 900 euros. A partir da capital etíope, a Ethiopian Ailines, uma das melhores companhias africanas, membro da Star Alliance, voa para Axum, efectuando uma escala, duas vezes por dia. É importante ter em atenção que nem sempre há voos que permitam o regresso a Adis Abeba sem ter de pernoitar numa outra cidade, geralmente Gonder. O preço para um bilhete de ida e volta anda à volta dos 270 euros. O aeroporto de Axum fica a apenas sete quilómetros do centro da cidade. De autocarro, muito em conta, através de cenários de cortar a respiração, prepare-se para demorar dois a três dias para chegar a Axum a partir de Adis Abeba.
Onde comer
O restaurante do Hotel Abinet, situado no primeiro andar, atrai turistas e locais, com uma variedade de pratos, na sua maioria de cozinha de italiana, que nem sempre encontra correspondência na qualidade. Mas é, ainda assim, a par do Remhai, um dos melhores em Axum.
Onde dormir
O Hotel Yeha, com uma vista soberba sobre as igrejas, surge como a melhor opção. Em alternativa, poderá alojar-se no Remhai, com quartos menos confortáveis e com uma piscina que raramente está cheia - nas cidades mais pequenas, a indústria hoteleira está longe de corresponder aos padrões europeus. Entre as opções mais baratas encontram-se o Hotel Lalibela, o África e o Tropicana, todos com quartos básicos e em alguns casos a necessitar de obras urgentes. Em qualquer um destes não deverá pagar mais de 10 euros por um duplo, quantia que terá de multiplicar por quatro ou cinco no final de Novembro.
O que fazer
A curta distância da igreja de Santa Maria de Sião, pode admirar mais de duas centenas de estelas, as maiores do mundo, divididas por três parques. Alguns destes obeliscos, talhados num único bloco de granito, funcionavam como marcos de túmulos de reis e imperadores, contendo portas falsas na base e uma decoração que, à distância, se assemelha a janelas. Enquanto a Grande Estela, com uma altura de 33 metros, permanece fragmentada no solo, alegadamente por ter caído durante um terramoto - Axum está situada numa zona sísmica -, a Estela de Roma, com 1700 anos, 160 toneladas e 24 metros, ergue-se no Parque Principal e atrai, pela sua história e imponência, todos os olhares. Descoberta por soldados italianos em 1935, pouco depois de Benito Mussolini ter conquistado a Etiópia, foi transportada para Roma dois anos mais tarde e erguida na Praça Porta Capena, onde se manteve até 2005, altura em que foram finalmente concluídas as negociações que haviam determinado o seu regresso a Axum.
A pouco mais de dois quilómetros do centro da cidade, quase em frente a outro grupo de estelas, na estrada para Gonder, poderá visitar a estrutura de Dungur, popularmente conhecida como o Palácio da Rainha de Sabá, com os seus banhos privados, a cozinha com dois fornos e as suas pedras graciosas, um bonito complexo emoldurado por uma silenciosa paisagem rural. A não perder de vista, também, um pouco dispersos nos arredores da cidade, alguns túmulos e mosteiros, sendo que estes últimos apenas permitem o acesso aos homens. Finalmente, para melhor compreender a história de um reino mítico, impõe-se uma incursão ao Museu Arqueológico e, a outro nível, aos diferentes mercados que enchem de vida a cidade.
Informações
Para entrar na Etiópia necessita de um passaporte com validade de pelo menos três meses e terá de obter um visto, à chegada, no aeroporto, por 20 dólares, aproximadamente 15 euros, substancialmente menos do que numa embaixada ou num consulado. A língua oficial do país é o amárico mas existem múltiplos dialectos que correspondem às diferentes etnias. A diferença horária entre Portugal e a Etiópia é de quatro horas. Um euro equivale a mais ou menos 24 birrs, a moeda local, sendo aconselhável recorrer a um banco para cambiar. O mercado negro, embora existente, é ilegal e punido com multa ou mesmo pena de prisão. Existem máquinas de multibanco um pouco por todo o país mas nem todos os cartões são aceites. Na Etiópia, um pouco como em muitos países africanos, o dólar americano é mais desejado do que o euro e alguns hotéis e agências de viagem têm mesmo os preços em dólares e não em birr.