Esta escola que veio a ser chamada franco-belga e identificada por uma certa precisão de traço - que também lhe valeu a etiqueta de "linha clara" -, adoptou Bruxelas como principal centro criativo, mas também frequente fonte de inspiração. Ou seja, é uma relação que tem funcionado nos dois sentidos: a capital belga como musa da banda desenhada, a banda desenhada como mola da vida cultural da primeira. Daí os museus, os murais, as estátuas e demais intervenções urbanas que se vêm multiplicando um pouco por toda a parte na cidade. Bruxelas era já uma Meca para aficionados de BD e jovens alternativos, mas agora Tintin e os Schtroumpfs (Estrumpfes em português, Smurfs na versão inglesa) assomaram a Hollywood.
Há uma empena pintada na Rue de L"Étuve com Tintin, Milú e Capitão Haddock a descerem por uma escada de serviço, que reproduz um quadradinho do álbum O Caso Tournesol. Será o primeiro ou mesmo único fresco de banda desenhada que a maior parte dos turistas hoje vislumbram, uma vez que fica mesmo em frente do principal ícone da cidade, a célebre estatueta do Manneken Pis. Mas se As Aventuras de Tintin com a assinatura Steven Spielberg/Peter Jackson se tornar no previsível sucesso planetário, quem sabe se esse equilíbrio de forças não se irá inverter? "O Maneken Pis?", perguntarão os turistas. "Sim, é aquela estatueta engraçada do puto a mijar, que fica em frente ao espectacular mural de O Caso Tournesol."
Humor renovador
Percursos BD é um roteiro que integra meia centena de murais e intervenções similares no espaço público de Bruxelas e arredores. Está organizado como um itinerário turístico de descoberta da cidade e continua a crescer a uma média de dois novos frescos por ano, ao mesmo tempo que há trabalhos de conservação nos mais antigos. Na origem, porém, não tinha nada a ver com turismo. Assumido pela edilidade e idealizado em colaboração com o Centro Belga da Banda Desenhada, o programa arrancou há precisamente vinte anos com o propósito de homenagear personagens/autores nascidos na capital belga e ao mesmo tempo embelezar/dissimular vazios urbanos em pleno centro da cidade. Parêntesis: uma parte substancial do centro histórico de Bruxelas virou cidade-fantasma nos anos 70, uma situação de degenerescência urbana que ainda agora não está por completo resolvida.
Serve de aviso à navegação. Descobrir Bruxelas através dos murais BD também significa passear por bairros completamente marginais às excursões usuais (eles dizem pourris, ou seja, podres), urbanizações brutalistas onde há andares completos incendiados, vidros partidos e mantas no lugar de cortinas nas janelas. Refúgio de emigrantes do Terceiro Mundo, é nesses quarteirões mais frequente ouvir falar egípcio ou árabe sudanês do que francês. Compreende-se então a operação dos murais BD como um ensaio de renovação urbana, por isso também centrado nas empenas (eternos vazios horizontais), não tanto nas fachadas dos edifícios.
É nesses bairros geograficamente centrais, mas socialmente periféricos, que se encontram os frescos mais antigos, datando de uma época em que a filosofia da operação era dar a conhecer autores de banda desenhada belgas de gema, mas pouco conhecidos. Ou seja, tratou-se de empregar os murais como uma operação de charme urbano, mas também de promoção autoral. O primeiro a ser pintado em 1991 serve de exemplo: representa Broussaille na companhia da sua amiga Ragebol na Plattesteen, isto é, no próprio local que o mural foi aplicado, e é da autoria de Frank Pé.
Broussaille nunca foi um caso de popularidade e o mural que o representa é capaz de ser mais conhecido que os seus próprios livros. Tem, de resto, outros traços que o tornaram num guião para outros autores de murais: mistura ficção e realidade, uma vez que reproduz os prédios e a própria rua em que se encontra, mas nela faz correr o Senne, o rio da cidade entretanto canalizado e aterrado. Ao "desenterrar" o rio, por outro lado, Frank Pé está a fazer um comentário político, incompreensível para os de fora, mas muito óbvio para quem vive em Bruxelas.
Alguns murais mais conseguidos são, na realidade, estritamente belgas e requerem descodificador. É o caso por excelência do lindíssimo fresco de Monsieur Jean, que transplanta o personagem parisiense para as ruas de Bruxelas (Rue des Bogards), mas também do céu cheio de pecadores de Stuf e Janry (Rue des Minimes), ou de Poje, típico herói copofónico, nada por acaso pintado à entrada de uma loja de bebidas (Rue de L"Écuyer). São, em qualquer dos casos, heróis de uma BD "linha clara", quase sempre optimista e bem-humorada, na maior parte anterior à moda dos graffitis e tagsque vandalizam as empenas em que aqueles são pintados. A banda desenhada franco-belga, agora institucionalizada pelo percurso de murais, é certamente mais velha que a arte de rua, mais suja, inquietante e soturna, que paralelamente se multiplica por iniciativa privada em Bruxelas.
Fantasia a cada esquina
À medida que Percursos BD se popularizou e cresceu foi-se naturalmente expandindo para fora da cintura do Pentágono, vindo a ganhar uma série de empenas e mesmo de fachadas em bairros de Laeken, decoradas com imagens de heróis como O Pequeno Spirou e Titeuf, e de Audeghem, onde as estrelas são os desconhecidos noutros lados Gil Jourdan e Le Scrameustache. Outra consequência da expansão do projecto foi a admissão de figuras da BD nascidas noutros países, mas que por uma razão ou por outra mantém afinidades com a escola belga. O supracitado Titeuf pintado em Laeken é de naturalidade suíça. Mas há também o italiano Corto Maltese à beira do Senne e o francês Asterix numa escola secundária da Rue de la Buanderie.
Já noutro espírito, mais próximo do turismo do que da renovação urbana, as empenas nas proximidades da Grand Place têm vindo a ser ocupadas pelos maiores sucessos da banda desenhada belga. Além do supracitado Tintin na Rue de L"Étuve, há Gaston Lagaffe na Rue de L"Écuyer, Olivier Rameau na Rue du Chêne e as visões das Cidades Obscuras de François Schuitten na Rue du Marche au Charbon. Essas mesmas ruas do centro histórico têm agora também duas placas identificadoras: a azul com o nome verdadeiro e a branca com o nome e o boneco de uma personagem BD.
Um aspecto em que o projecto se mantém inalterado é na metodologia de trabalho: cada mural começa com uma encomenda a um autor, ao qual são propostas uma série de empenas como suporte para essa criação. No caso de autores já desaparecidos, uma prancha já publicada é escolhida para o mesmo efeito, inclusive retocada com a prestação de colaboradores, como a do jovem marinheiro Cori Le Moussaillon, concluída pelo filho de Bob de Moor, desenhador tal como ele (Rue des Fabriques).
A imagem é então projectada na empena escolhida pela companhia Art Mural, que depois se encarrega de a pintar em acrílico. No final aplica-lhe um verniz protector contra as intempéries e os tags, que não impermeabiliza totalmente, mas pelo menos facilita a limpeza dos mesmos.
Especial Hergé
Além de Tintin frente ao Manneken Pis, há outro fresco com a assinatura Hergé no centro de Bruxelas: são os miúdos traquinas Quick & Flupke (em português Quim e Filipe), invocados na esquina da Rue Capucins com a Rue Haute, no velho bairro de Marolles. Em comum com muitos outros pólos da promenade BD, os murais Hergé apostam no efeito teatral - no tromp l"oeil que faz a fantasia irromper na realidade. Um efeito especialmente conseguido em Marolles com os miúdos pintados numa das paredes da esquina a espreitarem o polícia que os persegue na outra - polícia que por sua vez parece andar à pergunta deles, espreitando para o interior do edifício.
As criações de Hergé fazem parte de Percursos BD, mas também é possível fazer um itinerário de descoberta da capital belga exclusivamente dedicado ao mais célebre autor belga. A diferença é que já não é um roteiro oficial, nem apontado a uma clientela generalista, mas um programa mais especializado para os turistas da Nona Arte. Algumas moradas funcionam como uma extensão do roteiro de murais, sobretudo quando se trata de espaços públicos, como estações de comboio ou de metro.
É o caso do fresco junto da porta Horta da Gare du Midi, que representa um quadradinho do álbum Tintin na América na versão a preto e branco. Foi ampliado ao ponto de ocupar 64m2, o que o certifica como um dos maiores espaços públicos no mundo ocupados por um personagem BD.
Igualmente impressionante, ou mesmo delirante, é a estação de metro Stockel, terminal da Linha 1, com as suas duas paredes de 135 metros de comprimento pintadas com 140 personagens das aventuras de Tintin. Foi o próprio Hergé quem realizou os esboços, trabalho depois concluído por Bob de Moor para a inauguração da estação, em 1988. Há também um Hergé na estação de metro Luxemburg, interessante quando ilustra a sua faceta menos conhecida de ilustrador, neste caso a soldo de um grande armazém da cidade. Trata-se de uma cerimónia de boas-vindas em honra de São Nicolau, integrando uma fanfarra de sopros com Quim e Filipe na assistência.
Outras marcas de Hergé em Bruxelas são para aficionados de BD ou mesmo só para fãs hardcore do desenhador. Há sítios que faz sentido visitar pelas conotações biográficas, como as célebres Galerias Saint-Hubert, onde Hergé conheceu Edgar "Black e Mortimer" Jacobs, ou o Museu da África Central de Tervuren, onde o autor se inspirou para o polémico Tintin no Congo. Há depois uma longa lista de lugares em Bruxelas que serviram de cenário às aventuras do seu herói mais famoso. Sítios como a Place du Jeu de Balle, feira da ladra onde decorre a sequência inicial de O Segredo do Licorne, ou o Parque de Bruxelas (frente ao Palácio Real), onde Tintin encontra a mala na base da intriga de O Ceptro de Ottokar.
Convém acrescentar que Hergé não é o único autor de BD chamado a decorar o metro de Bruxelas. Fernand Flaush introduz o universo dos comics americanos na estação de Ribaucourt, enquanto na Porte de Hal cabe a Schuitten projectar a três dimensões algumas das mais inquietantes visões futuristas das suas Cidades Obscuras.
Museus aos quadradinhos
O roteiro Percursos BD pede por complemento directo uma visita ao Centro Belga da Banda Desenhada. É também uma etapa natural para os amantes de Tintin que, no entanto, não terão completado a peregrinação sem rumar ao novo museu dedicado a Hergé.
O Centro é uma associação não lucrativa dedicada à divulgação da Nona Arte. Fundado em 1984, tem desde então sido dirigido por autores de tanto prestígio quanto Bob De Moor e Jean Van Hamme. Está, desde 1989, sediado nos antigos armazéns Waucquez, inaugurados em 1904 e desenhados por Victor Horta, o nome mais emblemático da escola Arte Nova de Bruxelas. O edifício é, de facto, soberbo e a sua arquitectura feérica funciona como uma perfeita moldura para o recheio BD.
O hall de entrada só por si vale a visita, com os seus bolbos luminosos, grelhas de ferro forjado e escadarias sinuosas, típicas do vocabulário Arte Nova, a contracenar com bustos de heróis animados, um super Citroën 2CVe uma fantástica réplica do foguetão em que Tintin foi à lua. O museu propriamente dito fica no piso superior. Explica todo o processo criativo das bandas desenhadas e resume a sua história desde a publicação de comics nos jornais norte-americanos de finais do século XIX, para depois se concentrar nas revistas belgas de BD e na sua galeria de heróis clássicos. Uma parte substancial dos 4000 metros quadrados de espaço disponível é reservada a exposições temporárias, que vão de retrospectivas de autores belgas a colectivas de autores manga. A biblioteca conta com mais de 7000 publicações.
Se o Centro Belga da Banda Desenhada é bastante consensual, já o Museu Hergé não faz o gosto de toda a gente. Para começar, não fica em Bruxelas, mas em Louvain-La-Neuve, cidade universitária cerca de 30 quilómetros a sudeste da capital. É incómodo para os visitantes sem carro, que para lá chegar devem apanhar o comboio na Gare du Nord e depois fazer quase uma hora de trajecto em composições quase sempre lotadas de estudantes. Desagrada seguramente a muitos "tintinófilos" de Bruxelas, que se sentem de algum modo defraudados pela fuga para o subúrbio do que, para todo o efeito, consideram seu património. Uma certa má vontade que tem muito a ver com o que tem sido a gestão da viúva Fanny Rodwell, criticada por excesso de zelo na defesa dos direitos autorais e pela gestão estritamente mercantil do legado Hergé.
Sejam ou não fundadas as censuras, a verdade é que o museu, que custou 15 milhões de euros e foi desenhado pelo francês Cristian de Portzamparc, é mesmo espectacular. Implantado num pequeno bosque, o edifício assume a forma enigmática de um prisma, rasgado por grandes janelas, que se alinham à maneira de tiras de banda desenhada. No interior, o enigma resolve-se quando se percebe que o prisma abriga quatro torres organizadas em torno de um vasto espaço de circulação: essas torres integram as oito salas de exposição, entre si ligadas por pontes suspensas sobre o hall. Toda a composição sugere o universo lúdico da BD, mas evita estritamente a tentação figurativa, solução de uma enorme depuração que abona tanto a favor da arquitectura de Portzamparc como deve irritar os fãs que vão à espera de um parque temático Hergé.
Na fachada principal há uma imagem gigante de Tintin contemplando o mar, mas de costas, olhando na mesma direcção que o público. A imagem dá o tom à visita, proposta num tom de cumplicidade, de experiência de partilha do universo Hergé. Arranca com a juventude do desenhador realmente chamado George Remi, que se estreou a desenhar "Totor", herói que, tal como ele era escuteiro, documenta depois os seus inícios profissionais como desenhador publicitário, antes de apresentar Tintin e toda a sua galeria de heróis.
Há uma sala tão reveladora como divertida sobre as influências cinematográficas de Hergé, demonstrando acima de qualquer dúvida que várias sequências dos seus livros foram tiradas de filmes como King Kong, Capitão Blood e Uma Noite na Ópera, dos irmãos Marx. O melhor fica, no entanto, reservado para o final, com a exploração da ligação de Hergé ao mundo das viagens, das culturas do mundo e sobretudo da investigação científica. Pelo meio há um documentário em que o filósofo Michel Serres classifica Hergé como uma das maiores figuras das letras e das artes do século XX. É nessa qualidade que o museu de Louvain-La-Neuve lhe presta inteira justiça.