Não têm a visibilidade dos enólogos, ainda que percorram caminhos semelhantes. Só que é o café que concentra as suas atenções. Não se assumem inteiramente como "provadores de café", mas o seu trabalho passa muito por isso. Provar, avaliar, escolher - e fazer cafés. Fomos a uma torrefacção seguir-lhes os passos que são também os do fruto a tornar-se bebida
Não é um exame, porque se o fosse teríamos falhado redondamente. É verdade que notamos um sabor forte, algo como mofo, pensamos, mas não estamos à espera da rasteira - e a verdade é que esse sabor não é novidade. O que nos põe a pensar na qualidade do café que andamos a beber. Porque esse café que nos dão a provar é intragável: é "café riado", explicam-nos, "parece velho e tem um aroma químico". Em suma, "é péssimo". Mais importante, "estraga um lote". Quem o diz sabe do que fala. Alexandre Almeida é o responsável pelo controlo de qualidade e processo da Torrié. A tentação será chamar-lhe "provador de café".
"Não é a minha profissão, mas também despendo muito tempo nisso", concede. O "resto" é passado entre outras tarefas que começam com a análise da matéria-prima, controlos de embarque e recepção, passam pela verificação do processo de moagens (a granulometria para o café moído e avaliação do produto acabado) e de torragem (definição dos perfis de torra, a sua implementação e acompanhamento) e detêm-se na investigação e desenvolvimento de novos produtos, novos processos, pesquisa de mercados de café verde ("A área é tão vasta que é necessário ir vendo constantemente o que cada origem de café tem para oferecer. Fazer testes, comparar, encontrar origens de café alternativas para nós", explica Alexandre).
Não é incomum, portanto, e não incomoda, assegura, o uso dessa espécie de sinédoque para definir o que Alexandre faz: afinal, o controlo de qualidade e de processo passa, e muito, pelas provas - são os tira-teimas e acontecem em várias fases do seu trabalho. "Para toda a gente que trabalha com café verde esta é uma parte do dia-a-dia." Aqui, nesta sala com janelas para a torrefacção (como se fosse o posto de comando, a ponte de um navio) cheia de máquinas, computadores, bancadas, e armários de dezenas gavetas, trabalham Alexandre e Pedro Ribeiro. Há dias em que fazem mais de 20 provas (o recorde foi cem numa tarde, num encontro internacional): "Temos muita coisa para provar, amostras de matéria-prima, lotes de café...". Café verde e café torrado sujeitos, então, a ensaios físico-químicos e sensoriais.
Não são provadores, são "também" provadores, preferem dizer. Em Portugal é difícil assumir o provador de café como um profissional per se, algo que não sucede, por exemplo, no Brasil, onde há cursos e especializações nesta área, o que tem uma justificação óbvia: o Brasil é um país produtor (ou melhor, é "o" país produtor) e a cultura do café está aí mais desenvolvida. Aqui, onde o café nos chega numa chávena sem qualquer história por detrás, a área dos provadores apenas se começou a desenvolver há dez anos e estamos longe de ver algo como o que fez, em 2009, Gennaro Pellicia: o gestor de moagem da cadeia Costa Coffee segurou a sua língua em 11 milhões de euros. Aqui, não ouviram falar disso.
Avaliação de sabores é o que se pretende na degustação. E, não há volta a dar, tal exige um paladar apurado - mas não capacidades sobre-humanas. É tudo uma questão de educação do palato, refere Alexandre Almeida, e essa implica um treino intenso, "uma rotina de provas", para conseguir avaliar as qualidades e identificar os defeitos dos produtos através de comparação de experiências, que resulta na construção de base de referências de características do produto. O único pré-requisito é não ter "defeitos", como rinites, sinusites e outras que tais, "De resto, qualquer pessoa pode tornar-se provador."
Alexandre e Pedro chegaram ao café por acasos profissionais, sem qualquer interesse prévio. Pedro, engenheiro biológico de formação, chegou à indústria cafeeira há cinco anos, depois de "pequenas experiências noutras indústrias". Quando entrou, as características ácidas de florais dos arábicos de topo surpreenderam-no negativamente - agora é apreciador entusiasta. Alexandre, bioquímico, lida há nove anos com cafés, depois de vários anos nos lacticínios. A experiência acaba por não ser muito diferente da do café, explica, é comum em toda a industria alimentar. "Eu provava queijo, para ver se correspondia ao standard", resume. E é de standards que também vive o café: de origem, de região, de torra...
Se não incomoda a designação de "provador de café", tão-pouco aborrece a comparação (óbvia, atrevemo-nos) com os enólogos. Há uma alquimia comum - a criação de bebidas - e há um paralelismo iniludível nos universos, ainda que com vocabulários distintos: as castas correspondem às origens do café (dentro destas há ainda que incluir na equação a região e a altitude) e a vinificação tem o seu equivalente na torra. As provas propriamente ditas são "muito similares", nota Alexandre Almeida, com uma ressalva importante: a de café pode ser "mais cansativa", quando existem "gorduras de café, películas e creme" que cansam mais as pupilas gustativas.
A prova dos nove
É um ritual, a prova de café. Nós assistimos a uma versão informal da chamada "prova brasileira" à espera de uma revelação dos sentidos. A mesa de provas está num dos cantos do laboratório, alta, redonda de granito, tampo giratório com quatro cuspideiras de inox acopladas. São colocadas quatro pequenas taças com café em pó sobre o qual se despeja a água a ferver (há uma outra prova, a "expresso", a do produto final tal como chega e é experienciado pelo consumidor).
Fica a repousar durante uns minutos para libertar as características dos grãos, esta mistura dividida em quatro para maior fiabilidade da prova. Cada expresso tem 50 grãos de café: se um dos grãos tem defeito afecta a taça. Se aparece apenas numa taça, quer dizer que "não é grave"; se aparece em duas, já é um sinal de alarme e obriga à reavaliação dos lotes, colher amostras em maior número e repetir as provas.
Os rostos aproximam-se das chávenas como se para melhor absorver os aromas e observar a cor. Mas a acção começa a seguir: a colher que repousa na mesa, uma espécie de miniconcha, mergulha três vezes em cada chávena - de cada vez é levada ao nariz e "inalada". Analisar o aroma "é uma forma muito rápida, básica e eficiente", explica Alexandre, de "aferir defeitos", como o "grão velho, fermentado".
A capa formada pelo contacto da água quente com o café é então retirada - "parte do lixo", assinala Pedro Ribeiro - para libertar plenamente os aromas. Pode parecer estranho uma prova dar tanto valor aos cheiros, mas este é um "aspecto fundamental" - o ser humano detecta muito poucos sabores (cerca de uma centena), logo o que sobra são os aromas (milhares conseguem ser diferenciados). Se fosse a sério, haveria um bloco de notas, onde todas as impressões seriam registadas, aos parâmetros seriam atribuídas cotações.
O passo seguinte, a degustação em sentido estrito, é precedido de um aviso bem-humorado. "Não se assustem." Não, não nos assustamos quando a colher é cheia de café, levada à boca e "aspirada". "Quanto mais ruidoso, melhor", assinalam. Sugar e cuspir - por norma, o café não é engolido, embora às vezes se faça para se "obter uma resposta mais fiel". "O café envolve todas as partes da boca ao mesmo tempo", explica Alexandre Almeida, o que permite "sentir sabores e, sobretudo, aromas" (quando mastigamos, paladar e cheiro são simultaneamente activados). Na degustação a acidez é uma "qualidade preponderante", assim como a "intensidade de sabor", combinadas com o "volume e textura". Palavras que não se querem ouvir são "adstringência" ou "aspereza", entre outras - substituam-se por "encorpado", "achocolatado" ou "arredondado", por exemplo, e saber-se-á que o café é bom.
A tarde já está a caminhar para o seu fim quando nos detemos no laboratório para a prova. "Idealmente", diz Alexandre, "fazemos de manhã, estamos mais frescos, descansados" - além disso, como se trata de produto com cafeína que por vezes se tem de engolir (e, na verdade, quando se aspira, confessa, "entra sempre um bocadinho"), pode causar distúrbios com o sono. A ele causa, daí a rotina instituída aqui no laboratório. É uma opção; o que não pode ser opção é o tabaco, as chicletes e o perfume - são interditos, uma vez que podem comprometer a avaliação de sabores, mais ou menos aceites por todos que entram na zona de provas, que também deve ser ela "limpa de aromas".
Alquimia dos grãos
Lá em baixo vemos a sala de torra, aqui, no laboratório, luz branca intensa é apropriada a testes; lá em baixo a maquinaria é tamanho XL, aqui reduz o tamanho e ganha aparência mais sofisticada - há balanças de precisão, moinhos, torradores de amostras, provetas e termómetros calibrados, aquecedores de água, máquinas de expresso. Aqui faz-se o trabalho alquímico que lá em baixo se massifica.
Por aqui não se avalia somente a qualidade dos grãos que chegam constantemente ao armazém, aqui constroem-se os lotes e os blends. "Vemos o que vai encaixar bem", explica Alexandre Almeida, "e vemos experimentando". Cabe-lhes, portanto, definir a composição e o grau de torra ideal: tirar de um lado, pôr do outro, torra clara, torra escura - trabalho meticuloso que tem a prova dos nove quando se prova. "Só nessa altura se avalia", afirma, "um produto pode ter as mesmas características físico-químicas e um acabado sensorial diferente".
E tudo começa com as amostras que chegam regularmente à fábrica: nas mais de quatrocentas caixas-gavetas que cobrem parte das paredes do laboratório estão mais de mil. Primeiro chegam as amostras de venda: é necessário aferir a qualidade do grão, comparar com os standards da origem, avaliar se encaixa no perfil da marca e, evidentemente, verificar preços. Depois chegam as de pré-embarque, e nova bateria de análises; quando finalmente chegam os contentores com a mercadoria repete-se tudo. "Não é desconfiança, mas o café vem, normalmente, de países económica e socialmente instáveis", afirma Alexandre.
Há várias espécies de café, mas apenas duas são comercializadas e cada uma tem a sua bolsa - o café arábica, em Nova Iorque, e o café robusta, em Londres. O arábica é o mais comercializado; o robusta o "mais adequado ao conhecimento do perfil português". Há uma explicação histórica para tal: até ao 25 de Abril era proibido importar café e era de Angola, onde o robusta domina, que vinha 99 por cento do que aqui era consumido (o restante vinha de São Tomé e Príncipe e Timor Leste). "Era extraordinário e nós [Portugal] demos um grande contributo para o seu desenvolvimento", considera Alexandre Almeida.
Em traços gerais, o arábica tem um aroma e um sabor mais persistentes, apresentando níveis de acidez e amargor equilibrados, o robusta é mais encorpado e amargo; o primeiro vem, sobretudo, da América do Sul e Central, gosta de grande altitude e clima temperado; o segundo de África, floresce em regiões húmidas e baixas. "No caso dos blends, o desafio é encontrar a melhor forma de os combinar", sublinha Alexandre, tendo em conta as diversas origens e, dentro destas, as regiões - o resultado desta mistura normalmente são cafés encorpados, de gosto intenso e definido e aroma de chocolate.
Para os varietais o importante é manter a "homogeneidade" do lote e "realçar as características da origem" e aqui trabalha-se com Colômbia, Guatemala, Nicarágua, Brasil e Angola. E depois há novos produtos, que respondem a um público "cada vez mais desperto e com ânsias de experimentar", que reivindicam um trabalho mais apurado para potenciar determinadas propriedades do café e combiná-las - por vezes, em "híbridos".
Das gavetas de amostras saem três saquinhos transparentes com grãos que são dispostos em três taças diferentes, quase como aperitivos prontos a trincar. Uma tem grãos de robusta cherry da Guatemala, a outra arábico natural do Brasil e a terceira volta à Guatemala, arábica lavado - cherry é uma subespécie; natural e lavado são termos que designam os tipos de processamento.
No natural, os grãos são separados com peneiras e os maduros, uma espécie de "cereja vermelha", são secos ao sol, para depois se remover a polpa e a semente que é o grão; no lavado, os frutos são passados por uma corrente de água, aos maduros é removida a polpa e o grão é levado para secar (há outro lavado, não natural, em que os frutos, depois de descascados, são mantidos em compartimentos na presença de microorganismos ocorrendo a fermentação da polpa - só depois desta o grãos são lavados e colocados a secar). Como a composição química do café cru é uma das condições cruciais na definição do sabor e o aroma após a torra, questões como o processamento, juntamente com o clima, a altitude e o tratamento, terão influência no café que bebemos - do mesmo modo que sucede com os vinhos.
São grãos verdes e com traços identitários os que temos diante de nós e que os provadores colhem nas mãos para levar ao nariz. Inspirar. É um dos passos da análise a que se submetem os grãos antes de serem moídos. Há ainda o exame visual, que detecta defeitos, inertes e compara com os padrões. O robusta, descrevem-nos, é arredondado, esférico, de cor amarelada e acastanhada - na mão vemos um grão com defeito, está furado; o arábica natural é mais comprido, achatado, com um filamento interno em forma de "s" e cor mais esverdeada mas com película de notas acastanhadas; o arábica lavado é quase igual, mas com tonalidades que balançam entre o verde e o azul, sem película. Colocados num crivo - caixa com várias peneiras, abanada como uma matraca - determina-se o seu tamanho (aqui, o tamanho é importante: quanto maior melhor, porém, o padrão é o de cada região, não um valor universal); há análises químicas que são feitas - e um computador onde todos os parâmetros de cada amostra são inseridos para a classificação. "Conferimos os parâmetros físico-químicos", explica Alexandre, "mas a prova de taça é que interessa".
Do verde ao torrado
A longa fachada branca que nos recebe não esconde a antiguidade: brilha como nova mas tem a aparência venerável dos edifícios industriais antigos, com enormes janelões e sóbrios motivos decorativos. Data de 1920 e é património classificado pelo IGESPAR. Já foi uma tecelagem, agora alberga a sede da empresa que detém a Torrié. Para chegar à torrefacção, contornamo-lo, entre aroma de café que paira intenso, até outro edifício nas traseiras. É aqui que se armazenam, desenvolvem e produzem os cafés da Torrié.
Fazemos o percurso do café quando chega e vamos directos ao armazém de café verde. Há um aroma intenso - herbáceos, esclarece Pedro Ribeiro, mas as alergias já haviam dado o alerta - que nos envolve quando entramos nos amplos espaços de pé direito imponente onde se amontoam sacos de café (em juta natural, que não interfere com o aroma), separados como ilhas, que vão de cima a baixo amparados por vigas de madeira, e com pequenas lousas com os dados de café escritos a giz.
"Pode parecer arcaico mas é a melhor maneira de acondicionar o café." Tem a humidade certa, permite trocas gasosas - "num silo podia ter problemas". É aqui que se recolhem as amostras do café que chega em contentores e que é necessário comparar com a matéria-prima encomendada várias semanas antes: com um colhedor de amostras, algo tipo picador de gelo, com que se fura e fecha novamente o saco.
Não duram muito tempo aqui os grãos, que chegam de várias partes do mundo. "Estamos sempre à procura de novas origens", avança Alexandre Almeida. E a verdade é que o mercado dos cafés está em evolução e aos produtores clássicos se têm juntado "países não tão visíveis há uns anos". Aos produtores tradicionais da América Central (de boa qualidade geral: "os tipos de árvores e as plantações são interessantes, estão mais rotinados, os standards são bons e a técnica predominante [processamento lavado] faz com que a probabilidade de defeitos seja menor"), juntam-se um punhado de africanos (incluindo Angola, com o robusta, e Quénia, Etiópia e Ruanda, com o arábica) e asiáticos (Indonésia, Papua Nova Guiné), que agora têm a companhia (concorrência) do Laos e Vietname, por exemplo. E não se detêm muito tempo no armazém os grãos, dizíamos, porque, por regra, "depois de dois meses começam a perder lentamente qualidade" - depois da torrefacção, "aos seis meses está muito bom", mas este é um aspecto que varia "com a origem e o modo de torrar".
Ainda não é a torra, o destino do café quando sai do armazém. Primeiro passa por uma separadora densimétrica, cuja função é descartar os inertes, como pedras, por exemplo - "este é um produto natural, seco em eiras, por isso não é anormal a presença destes". Dessa máquina, de tampo transparente onde se vê o bailado dos grãos, o café é enviado finalmente para a torrefacção, por tubagem interna. Normalmente, 300 quilos de cada vez.
Nunca nos chegamos a recompor do aroma a café que se entranha na sala de torra. É como se mil expressos quentes tivessem explodido entre as máquinas enormes e ruidosas. "Há 12 silos a trabalhar, cada um com uma origem", vai explicando Alexandre. Quando o café, já torrado, cai numa "frigideira" giratória gigante, passou meia hora a sofrer os efeitos do calor (chega até aos 200 graus, entre altos e baixos de temperatura, definidos por parâmetros de torra individuais), aumentou de tamanho em 50% e perdeu 20% de peso. Ganhou 850 novos compostos químicos, responsáveis pelo sabor e aroma - parece que os sentimos todos nesta overdose de cafeína, volátil como os gases que se estão a libertar da estrutura cavernosa onde estavam aprisionados. A cor agora está uniforme, mas passou por várias fases, do verde ao amarelo, ao acastanhado até à definitiva.
Depois da torra, o café passa ainda por uma nova etapa de limpeza, repousa pelo menos 24 horas até chegar à moagem e embalamento do produto final. O café em grão é sobretudo canalizado para hotéis, restaurantes e cafés (o chamado "canal horeca", na gíria do meio) enquanto o moído tem no mercado doméstico os seus consumidores preferenciais - algo que vai mudando, uma vez que as pastilhas estão a conquistar espaço.
Palavra aos baristas
Se há quem se esforce por criar o lote perfeito, há quem faça de tudo para transformar esse lote numa bebida que reflita a qualidade original dos grãos- são os baristas. E se em Portugal a função de barista ainda está em processo de se entranhar, por Espanha ou Itália já conquistou um lugar de destaque.
"Vai um cafezinho?" Quantas vezes não se ouve, ou mesmo se diz, tal tirada? E se é certo que um café cai sempre bem, também é verdade que a bebida serve como desculpa para um encontro, para dois dedos de conversa, para uma pausa. Por estas razões, Rui Gomes, barista no Hotel Vila Batalha, na localidade homónima, e também campeão nacional de baristas - no encontro internacional ficou em segundo lugar, tendo conquistado o primeiro prémio do melhor cappuccino da Península Ibérica - descreve o café como "um elemento de união" na cultura portuguesa.
"É à volta do café que se desenrolam conversas do dia-a-dia, desabafos vários. E é muitas vezes à volta de um café que se fazem amigos." Mas nem sempre o café está à altura de tais momentos. Rui, de 31 anos, diz mesmo que o que o levou a procurar a Escola de Baristas Delta de Campo Maior foi o facto de "achar que a maioria dos cafés que se toma não tem a qualidade devida". Não se pense, porém, que a origem de um fraco expresso está na má qualidade do grão que lhe deu origem ou mesmo da sua proveniência - embora esta influencie muito o sabor final: mais aguerrido ou mais adocicado; menos ou mais forte. Pode acontecer, mas é raro, uma vez que, antes de chegar ao consumidor, o grão ou o pó, exiba ele o rótulo que exibir, passa por vários processos de verificação (e até de prova, como a Fugas assistiu na Torrié - ver texto nestas páginas - e que também testemunhou na Delta).
Os bons e os maus grãos de café vêem-se, em último caso, no laboratório, é verdade. Mas, garantem-nos na Delta, em Campo Maior, durante uma visita à fábrica, todas as sacas "que chegam e não passam" nos testes "são devolvidas". A comprovar, uma sala com todas as sacas prontas a devolver ao produtor. Noutra ala estão as boas sacas, prontas para seguirem para a torrefacção após testes e provas (de cada saca é retirada uma pequena quantidade que representará o todo e que será testada primeiro em laboratório e por fim em prova.
Entre os amontoados de sacas que nos ladeiam, pelo meio de aromas de outras paragens mas também dos que nos aquecem diariamente logo pela manhã, existe uma ou outra que poderia estragar todo um lote. E por isso nenhuma pode passar sem verificação. Trocando por miúdos, só seguem para a torrefacção os melhores grãos de café.
A torra faz-se na sala ao lado, com temperaturas e tempos diferentes para cada uma das origens: "O mesmo tempo e temperatura podem resultar numa torra perfeita para os grãos de uma determinada proveniência e estragar os grãos de outra", explicam-nos, ao mesmo tempo que sai de enxurrada uma leva de grãos acabados de torrar que invadem todo o espaço com o seu cheiro intenso. Só depois disto é que se decide quanto de cada origem levará um determinado lote.
Uma certeza, porém: um café é um mundo, contendo sempre mais do que uma proveniência, excepto quando se trata de um blend de origem. Neste caso são escolhidos os melhores grãos que poderão representar o sabor de um ponto do globo. No caso da Delta, os mais conhecidos são compostos de grãos de arábicas de Manaus ou de Timor. Há ainda os blends internacionais, compostos por apenas grãos de arábicas que por sua vez chegam um pouco de todo o lado: Brasil, Colômbia, Costa Rica, Quénia, Havai, Timor Leste, entre muitos outros.
Decididos os lotes, segue parte para a moagem e embaladeira e outra parte vai directamente para dentro das embalagens, ainda em grão.
É a partir deste momento que, por melhor que seja o café, a fábrica perde controlo sobre o que o consumidor final bebe. É que, por mais verificações de laboratório e mais provas sensoriais que se façam, é já em chávena (ou copo de vidro, como muitos apreciadores de café aconselham) que ele vai provar o que de facto vale. E, dependendo da forma como é transformado em bebida, é que quem o bebe poderá, ou não, vislumbrar a sua verdadeira alma.
Do pó ao líquido
É nesta altura, em que o café já saiu de fábrica, que entra a arte do barista: extrair todas as qualidades que o pó esconde. Mas, a maior parte das vezes, isso nem sempre acontece. Algo que "se torna ainda mais grave no ramo da restauração", considera Rui Gomes, que trabalha há 15 ou 16 anos no sector. A escolha profissional foi consciente: "Bem receber é uma arte (...) e faço-o com gosto e muito, mesmo muito, orgulho", sublinha. "Servir bem é uma honra", resume.
Mas, a dada altura, Rui começou a perceber que a sua arte poderia ser posta em causa por uma comum bica. "É que a comida até pode ser de excelente qualidade, a confecção irrepreensível, o serviço impecável, mas o último paladar que fica, aquele com que o cliente sai ainda a saborear, é precisamente o do café servido no fim de tudo." E "um único café", por sair "queimado", "pouco cremoso" ou até mesmo deslavado, "pode arruinar toda uma refeição" e, consequentemente, "todo um serviço". Pelo contrário, é o café que pode servir de "chave de ouro" e, como tal, fechar com "excelência" um momento que se quer "memorável".
Com essa certeza, e por ser "um grande apreciador de café", há cerca de dois anos começou a "vasculhar informação" e, entre as pesquisas "googlistas", acabou por encontrar a Escola de Baristas. "Aprendi muito e continuo a aprender", garante. O ponto do creme, a densidade, o aroma: tudo isto pode ser extraído de um lote. Mas para isso é preciso dominar as tais técnicas de extracção.
O facto é que, mesmo finda a formação, a escola "continua a dar assistência". Os formadores passaram a amigos; os concorrentes a colegas. E os clientes agradecem: "Há quem passe pelo hotel só para beber um cappuccino feito por mim", refere, com um misto de orgulho e humildade q.b.. "Sempre que o trabalho o permite, faço questão de o fazer, passo a passo, à frente do cliente: o café de um lado, o leite do outro, o casamento entre ambos."
O prazer máximo tem quando alguém lhe diz que o "seu" cappuccino "está tão bonito que nem apetece beber para não desmanchar". Mas também retira prazer do facto de o "cliente ver a crescer algo na bebida: seja uma roseta ou outra coisa qualquer".
Dúvida não tem quanto ao facto de esta ser uma tendência com futuro: "Não fosse a conjuntura presente e diria que seria um bom negócio abrir algo à volta das bebidas criadas a partir do café." Porque nem só de expressos vive um barista: além dos cappuccinos, há bebidas frias e quentes a criar, mais ou menos alcoólicas, mas entre os quais os cocktails com o café por base fazem furor. "Mas", ressalva, "não uma coisa tipo Starbucks, que serve um excelente café, justiça lhe seja feita." Antes algo "de charme"; um sítio onde haja tempo para tomar um café e onde este tenha espaço para revelar a sua "personalidade tão, mas tão forte que dispensa companhia".
Olhos que bebem
Paulo Grifo é um mestre entre baristas e encontra-se precisamente atrás de um bar com uma máquina de café a postos para nos receber. É ele um dos formadores da Escola de Baristas de Campo Maior e no currículo já ostenta títulos tão importantes quanto o segundo lugar na I Barista Cup em Milão - o primeiro lugar, nesse ano, foi entregue ao Líbano e o terceiro foi conquistado por um italiano.
Tudo começou pela formação dentro da própria empresa, a Delta, onde também é provador, que o levou a ir mais longe e a buscar conhecimento entre os gurus do café expresso: os italianos. A razão era a mesma de Rui: "Para a marca era frustrante fazer um café cujas características poucos consumidores usufruíam." Seguiram-se mais prémios e agora dedica-se a passar conhecimentos.
Enquanto falamos, e antes de passar a pormenores mais técnicos, tira um expresso perfeito para que possamos saber do que estamos a falar. Num dia que começou cedo e em que já perdemos conta aos cafés bebidos, este é diferente: a temperatura é a ideal, o creme é persistente, na boca vão-se abrindo vários aromas - achamos nós. Paulo explica as exigências técnicas que um bom café, como aquele que vamos saboreando, tem de revelar: uma cor de creme avelã avermelhada, de preferência tigrada, e uma consistência de creme de três a quatro milímetros de espessura, com malhas finas uniformes, cuja persistência deverá andar entre os dois e os três minutos. Já a análise olfacto-gustativa, tem de observar um corpo arredondado, um sabor e aroma equilibrados e um gosto muito persistente.
O segredo para se conseguir todas estas características, usadas para avaliar a apresentação dos candidatos nos campeonatos nacionais e internacionais, revela Paulo à Fugas, está em vários factores. Antes de mais nada, é preciso ter uma boa máquina expresso, com controlo da temperatura (0,9 a 1,1 bar) e pressão (9 bar). Também a quantidade de café (entre seis a sete gramas) colocada no depósito do manípulo - impecavelmente limpo, note-se - irá ser um factor de peso para o produto final. Mas, antes ainda de carregar no botão da máquina (ou, em vários aparelhos, puxar o punho) é necessário comprimir o pó. Nem com pouca força, o que levaria a água a passar depressa de mais não levando consigo todas as características que constroem o desejável sabor; nem com demasiada energia, razão que leva a que muitas vezes o café seja acusado de "andar a sair queimado".
Aplicar a força certa pode ser instintivo, mas também pode ser um acto consciente e executado com a técnica devida. A pressão exacta corresponde a uma força de 20kg e o tempo de extracção não pode exceder os 30 segundos. Parecem preceitos fáceis, mas depende deles poder apreciar um bom café ou engoli-lo de uma virada quase que para não se sentir o sabor.
Enquanto vamos falando com Paulo, Pedro, um estudante da Escola Superior de Hotelaria e um dos melhores alunos baristas do formador da Delta, esgrime com agilidade todos os instrumentos necessários para nos surpreender com um cappuccino. Todos os passos são meticulosos e, sabemos, cronometrados (na prova que, por altura da visita da Fugas, se realizaria daí a umas semanas, o tempo de execução é quase tão importante quanto o produto final). À medida que deitamos o olho, a bebida vai crescendo até ao toque final: o despejar da espuma de leite que, com o jeito certo, origina uma decoração personalizada.
E, finda a tarefa, não sabemos muito bem se havemos de beber ou apenas admirar. Percebemos melhor o que defende Paulo Grifo: "A decoração é tão importante quanto o sabor". É que se é verdade que os olhos também comem, é certo que também bebem.
Museu do Café
Do mapa-múndi dos grãos às chávenas em pau-preto
É verdade que Portugal não é produtor de grãos de café, mas o seu consumo está enraizado entre nós. Arriscaríamos dizer que é um dos países com mais consumidores por metro quadrado, mas a verdade é que essa é uma ilusão - o consumo português per capita, em 2010, foi de 3,5kg, longe, por exemplo do finlandês, 12 kg (em termos absolutos, os EUA têm a dianteira, mas estima-se que este ano o Brasil já ultrapasse). Resta o consolo de o café nesses países ser consumido geralmente diluído, algo quase impensável por aqui: café em Portugal é, principalmente, expresso, saído directamente da tradição italiana. Ainda assim, não há quem despreze o de saco ou mesmo o de borra a acompanhar torradas no fogão.
Talvez por isso o país entre nas rotas dos exportadores e até da história do café que começou por Kaffa, na Etiópia, de onde os árabes importaram a planta e, depois de a transformarem em qahwa (que significa "vinho da Arábia"), foram espalhando a bebida pelo mundo, tendo chegado à Europa no século XIV. Mas ainda não era o café que conhecemos: o processo da torra só foi experimentado na Pérsia, dois séculos depois, e depressa se tornou num negócio estratégico para a Arábia, que o levou consigo para fora de portas como uma bebida civilizacional, sendo que até muito tarde apenas estes possuíam o segredo do líquido negro e energético.
É por um pouco da sua história que pode começar uma visita ao Museu do Café, a dois passos da fábrica da Delta e a receber desde 1994, às portas de Campo Maior e com vista para o edifício projectado pelo arquitecto Siza Vieira para a Adega Mayor.
Feita a introdução, é tempo de identificar no mapa-múndi as origens dos grãos que, depois de serem aqui transformados, chegam às nossas casas. Sem qualquer aroma e de cor clara, nada nesta cesta cheiinha de grãos leva a crer que seja café. Mas para ter a certeza nada como uma incursão a uma mini-estufa onde se encontram as várias espécies de plantas que dão origem ao fruto cujo caroço dá todos os dias a volta ao mundo. Basta entrar e quase logo voltar a sair para perceber por que razão as transformadoras de café se vêem obrigadas a trazê-los de tão longe. A contrastar com o tempo frio e seco que se faz sentir no exterior, dentro da estufa a pele fica instantaneamente pegajosa e quem usa óculos vê-se forçado a retirá-los de imediato, tal a rapidez com que ficam embaciados.
Feita uma primeira apresentação ao meio de onde ele vem, é tempo de conhecer como os grãos se apresentam antes e após a intervenção da fábrica. Numa mesa alta com tampo em vidro, quatro divisórias mostram os grãos de características robustas e outros de características arábicas; torrados e por torrar. Distintos na cor e no tamanho, tornam-se facilmente identificáveis. A pergunta que salta de imediato é "Então qual deles dá melhor café?". Ambos e em conjunto, uma vez que se complementam, com as qualidades de um a neutralizar os defeito do outro e vice-versa.
Explicado e identificado o que origina o café, segue-se para uma incursão pela história de Rui Nabeiro que, nos séculos XX e XXI, anda de mãos dadas com a história do produto em Portugal. Tudo começou por uma pequena máquina de torrefacção, à manivela, e acabou num império que tem o seu nome espalhado por todo o país e um pouco por todos os continentes. A pequena torradeira acabaria por crescer e, com o tamanho, ganhou um motor. Assim não só se admitia um maior número de grãos de cada vez, como o processo era mais rápido, permitindo a sua repetição em menos tempo.
De máquina em máquina, o negócio foi florescendo. E, pelo museu, é possível ver como tudo começou, testemunhando a primeira "letra" de dívida, amarelada do tempo, mas suficientemente preservada para ser exibida numa vitrina e fazer parte de um espólio que inclui ainda o primeiro carro de distribuição da Delta - que o próprio conduziu em tempos. Finda a distribuição, era tempo de transformar o grão em pó e mais tarde em líquido. Por mil e uma maneiras e tantos outros engenhos. Não estarão todos aqui, mas uma boa parte das processadoras de café podem ser apreciadas: desde as de origem árabe, desenhadas e recortadas, até às máquinas que encontramos actualmente um pouco por todos os cafés, pastelarias, restaurantes...
Para o beber, a chávena é à escolha: em pau-preto, pinho, latão, porcelana ou vidro, são várias as dezenas de conjuntos de chávenas que formam uma gigantesca vitrina da exposição permanente. Por fim, como a melhor maneira de o beber é sentados, avançamos para os conjuntos de cadeiras que compõem um dos últimos núcleos da exposição e onde não falta um conjunto do mítico Majestic do Porto.
A cereja no bolo fica para a saída: a oportunidade de beber um café. Mas não um café qualquer; um extraído com a sapiência dos baristas.
Herdade das Argamassas
Estrada de Campo Maior
Campo Maior
GPS:N 39º 0'36.17", W 7º 4'5.64"