Fugas - Viagens

  • O sorriso da recepcionista do restaurante Felix no hotel Peninsula.
    O sorriso da recepcionista do restaurante Felix no hotel Peninsula. Paulo Barata
  • Sob a benção de Bruce Lee
    Sob a benção de Bruce Lee Paulo Barata
  • Paulo Barata
  • No Hipódromo.
    No Hipódromo. Paulo Barata
  • No Hipódromo.
    No Hipódromo. Paulo Barata
  • Pelas ruas do centro financeiro.
    Pelas ruas do centro financeiro. Paulo Barata
  • No autocarro, com a moda como guia.
    No autocarro, com a moda como guia. Paulo Barata
  • O luxo do hotel The Peninsula
    O luxo do hotel The Peninsula Paulo Barata
  • Dentro do restaurante Felix, no hotel Peninsula.
    Dentro do restaurante Felix, no hotel Peninsula. Paulo Barata
  • Sinais de luxo, à sombra da Gucci
    Sinais de luxo, à sombra da Gucci Paulo Barata
  • Os arranha-céus marcam o horizonte do centro financeiro.
    Os arranha-céus marcam o horizonte do centro financeiro. Paulo Barata
  • No centro financeiro.
    No centro financeiro. Paulo Barata
  • No centro financeiro.
    No centro financeiro. Paulo Barata
  • Há quem opte por proteger-se melhor da poluição urbana.
    Há quem opte por proteger-se melhor da poluição urbana. Paulo Barata
  • No centro financeiro.
    No centro financeiro. Paulo Barata
  • Um fotógrafo com o seu cliente no Passeio das Estrelas.
    Um fotógrafo com o seu cliente no Passeio das Estrelas. Paulo Barata
  • No passeio marítimo.
    No passeio marítimo. Paulo Barata
  • A alegria de um par recém-casado.
    A alegria de um par recém-casado. Paulo Barata
  • Na Avenida das Estrelas.
    Na Avenida das Estrelas. Paulo Barata
  • Paulo Barata
  • A travessia por ferry, entre Hong Kong e Kowloon.
    A travessia por ferry, entre Hong Kong e Kowloon. Paulo Barata
  • Paulo Barata
  • Música e descontracção no parque.
    Música e descontracção no parque. Paulo Barata
  • Paulo Barata
  • Banda em actuação na zona dos bares em Lan Kwai Fong.
    Banda em actuação na zona dos bares em Lan Kwai Fong. Paulo Barata
  • Domingo no parque, em momento de festa da comunidade de  trabalhadores estrangeiros, vindos maioritariamente das Filipinas, Malásia ou Bangladesh.
    Domingo no parque, em momento de festa da comunidade de trabalhadores estrangeiros, vindos maioritariamente das Filipinas, Malásia ou Bangladesh. Paulo Barata
  • Um momento de pausa e da solidão possível, no centro financeiro.
    Um momento de pausa e da solidão possível, no centro financeiro. Paulo Barata
  • Vista a partir de Victoria Peak para prédios residenciais.
    Vista a partir de Victoria Peak para prédios residenciais. Paulo Barata
  • No passeio marítimo.
    No passeio marítimo. Paulo Barata
  • Dois executivos em pausa para o cigarro.
    Dois executivos em pausa para o cigarro. Paulo Barata
  • Um comprador escuta os pássaros no único mercado do género em Mong Kok.
    Um comprador escuta os pássaros no único mercado do género em Mong Kok. Paulo Barata
  • Paulo Barata
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  • Travessia por ferry entre a ilha de Hong Kong e a península de Kwaloon.
    Travessia por ferry entre a ilha de Hong Kong e a península de Kwaloon. Paulo Barata
  • Vista nocturna a partir de Victoria Peak, do alto dos seus 552 metros, para Hong Kong.
    Vista nocturna a partir de Victoria Peak, do alto dos seus 552 metros, para Hong Kong. Paulo Barata

Hong Kong, o futuro como não o imaginamos

Por Tiago Bartolomeu Costa

Hong Kong é um buraco no tempo e a sua história não se conta nem de uma forma linear nem muito menos com olhos postos no passado. Futuro é a palavra que mais nos repetem. E em cada rua, por entre a arquitectura futurista ou a memória de ex-colónia, perdemo-nos como se vivêssemos num filme.
São três da manhã de uma noite quente e húmida de Maio e parece hora de ponta na Lan Kwai Fong. Não que alguma vez pareça outra coisa em Hong Kong, em qualquer sítio, não tem que ser no centro. A qualquer hora do dia ou da noite, como em qualquer metrópole que se queira digna desse nome, é mais do que normal esperar horas para fazer a curva numa avenida, para entrar num restaurante, para conseguir lugar na carruagem do metro. Mas às três da manhã na Lan Kwai Fong a hora de ponta é também o futuro da cidade. É lá que se cruzam os que o querem construir e aqueles que o querem combater. Ainda que usem as mesmas armas, iPads e iPhones de uma geração que ainda não vem nos manuais ocidentais mas que se pode comprar em qualquer loja que nós diríamos, na gíria, "dos chineses" mas que para "eles" são a banalidade em forma de consumo.

Às três da manhã de uma noite quente e húmida de Maio, Hong Kong é uma cidade que, em vez de planear o futuro, "é o futuro". Não o futuro de si mesma, não o futuro da China, mas, simplesmente, o futuro do mundo. É isso que impressiona em Hong Kong. O pragmatismo anglo-saxónico combinado, como se fosse uma receita certa e mágica, com a assertividade asiática. Olhamos à volta, ofuscados pelas luzes de néon dos diferentes bares, surdos pela música que grita das colunas, esgotados pelo calor, a humidade e o declive das ruas, e o que vemos são enxames de pessoas que desaguam numa rua que é demasiado estreita para nos convencer de que ali cabe o mundo. E, no entanto, repetem, "aquilo que vês é o futuro do mundo".

Quem nos diz isto, boca colada ao ouvido e olhos pousados no copo de cerveja americana, é um executivo inglês que não terá mais do que 30 anos e que vive em Hong Kong desde o final de 2010. "Ainda mais desde que deixámos de ser uma colónia britânica", diz-nos o rapaz que trabalha no edifício da HSBC, ruas abaixo, no centro financeiro. Tem uma dessas profissões, como ele não se cansa de repetir, "de futuro" mas, o que ele quer mesmo explicar é outra coisa. Ele é, como tantos outros ali, no fim da semana, o resultado directo de uma chuva de contratações originada pelo que uns chamam deslocalizações e outros chamam de faro estratégico para os mercados em expansão. "Desde que deixámos de ser uma colónia britânica" - o rapaz usa o plural majestático como só os ingleses o sabem fazer - "a cidade só tem crescido e daqui para frente Hong Kong vai continuar a marcar o ritmo da evolução do Oriente em direcção ao Ocidente".

Apple e skyline

Esta viagem, do passado para o futuro e do futuro para uma outra coisa que não corresponde a nada que possamos ter imaginado é o que mais nos impressiona em Hong Kong, cidade roubada a uma floresta que, a cada momento, a cada nesga entrevista por entre os prédios, parece que a vai engolir. A ideia de que nunca a vemos por inteiro e, por isso mesmo, nunca a vamos compreender, é constante. Não são ideias que tenham que ver nem com a noção romântica de controlo sobre uma ilha, onde se imagina possível ver sempre o mar, ou com a estranheza da língua, sempre cantada, em voz miúda. Hong Kong fala uma língua franca, entre o inglês prático e praticabilidade dos gestos. E isso, essa clareza, essa noção de espaço que se constrói à medida das nossas possibilidades surge, estranhamente, como se a cidade fosse um protótipo desenhado num laboratório secreto que só imaginamos possível nos filmes de ficção científica. Mas tudo isto ampliado cem vezes. Como se fosse, é a única imagem que nos ocorre o tempo todo, Los Angeles imaginada em 2019 no filme Blade Runner. Nós, os que não compreendemos a cidade, somos os humanos, aqueles que serão abatidos porque os replicantes tomaram conta de tudo.

Ainda não chegámos lá, mesmo que haja quem se vista de alien e ocupe o átrio do mesmo edifício da HSBC para denunciar o peso da máquina capitalista - que diga, e dizem mesmo, com cartazes, que fomos, foram, "invadidos" - numa cidade que não poderia funcionar de outra forma. Hong Kong não é só uma ilha na sua formologia. É também uma ilha que ninguém sabe como explicar, do Ocidente no Oriente. Ou, visto do outro lado, como nos dizem na imensa loja da Apple no International Finance Center Mall, "a melhor forma de o Oriente dizer ao Ocidente que quer ser igual a ele." E depois, corrige outro executivo a quem interrompemos o almoço, comido apressadamente nas mesmas casas de comida rápida que temos em todo o lado: "Melhores".

Visitar a loja da Apple tornou-se um dos pontos-chave dos circuitos de turismo. Não é apenas porque se podem experimentar as novas tecnologias, perder horas a experimentar o que a Apple ainda só está a ensaiar, e servir-se de chá e de café enquanto se espera pelo download de uma aplicação (que é quase nenhum). É também porque a partir do edifício, uma complexa construção em altura, feita de torres cilíndricas de um cinzento metalizado, com muitos vidros e amplos corredores, se pode perceber melhor a partir de que ponto, e de que momento, Hong Kong deixou de ser um porto de chegada para os ingleses e passou a ser o ponto de partida para os chineses.

Já não vemos dali a antiga construção que foi montada, em madeira e bronze, para receber os dignatários ingleses, o Blake Pier, há anos transferido para a Stanley Island, uma baía a vinte quilómetros do centro, antiga colónia de abrigo dos ingleses, depois de séculos a servir de porto de defesa contra os piratas. A deslocalização desse pontão, de uma elegância inclassificável, deu origem a um conjunto de edificações que desenharam uma nova geografia para o skyline da cidade. Hong Kong supera, em muito, não apenas em altura, mas também em imaginação, os desenhos de Nova Iorque, de Londres ou São Paulo. E só se distingue dos novos centros económicos no Médio Oriente porque a sua relação de interdependência com as montanhas, o diálogo intenso entre a pouca largura do sopé e o declive coberto de verde, sugere que cada avanço foi pensado de modo a eternizar-se. À nossa frente, da imensa janela, do tamanho de quatro andares, da loja da Apple, o que vemos por debaixo de um céu cinza prata que guarda para si a luz do sol e ao longe ameaça chuva, é uma cidade que vai roubando ao mar, um mar carpado, de ondas que se fingem pequenas mas conseguem virar barcos, cada vez mais espaço. Há a promessa de novos centros comerciais, uns que fiquem, como ficam sempre na Ásia, abertos durante 24 horas, com novas funcionalidades, "para o homem do futuro", lê-se num dos cartazes de uma agência imobiliária. "Apartamentos com vista para o seu futuro."

Esse homem do futuro conviverá bem com esta cidade que se atravessa por entre túneis e viadutos e que a cada passagem subterrânea, ou a cada ponte, se esconde da outra China, a secular, a tradicional, a mística. E então lembra-nos de um poema revolucionário do final dos anos 1940 que falava da força do povo chinês.

Kan! A floresta ruge com o vento!
Das montanhas ao oceano
O Nosso Povo, de um só ímpeto
Ergue-se ao sol!
Hai! A nossa Pátria acorda,
Marchamos em frente!
Jardineiros do futuro
Semeemos a colheita de amanhã.
A China é como um grande navio
Que se lança ao largo e apresta.
Hai! A nossa Pátria ergue-se
Do nascer ao deitar!

As grandes obras de arte

Agora, na Hong Kong onde as três da manhã já passaram há muito, voltamos a olhar à volta para tentar perceber se o espírito revolucionário que desenhou a China aos olhos do Ocidente tem algum espaço nos olhos dos que ali vivem. E o que vemos são os mesmos aliens que protestavam por um mundo melhor debaixo do edifício da HSBC, ao lado das estátuas dos leões que guardam nas patas de bronze as balas da Segunda Guerra Mundial e que não há quem passe por eles sem as afagar, para dar sorte, dizem, a beber cerveja americana. Dizem-nos que em Hong Kong as melhores gerações são aquelas que protestam e são aquelas que vivem no centro ou em South Horizons, um complexo de prédios no fim da linha, na ponta da cidade, onde um extenso passeio circunda uma aldeia auto-sustentada de centros comerciais, equipamentos prioritários, vários ginásios de janelas viradas para a rua e um mar imenso, sem fim à vista, que todos os dias serve de cenário a quem quer fazer jogging, aprender a manejar sabre, passear os cães ou simplesmente, adormecer a ouvir todos estes barulhos de uma humanidade tão anónima como reconfortante.

"Achas que isto é futuro?", pergunta-nos uma rapariga que havíamos encontrado horas antes e que nos reconhece porque, antes, nos tinha dito que não falava mais connosco por sermos jornalistas. E nós, a quem esta palavra futuro parece algo tão distante, não sabemos o que responder. São estes, os mesmos que foram educados nas melhores escolas privadas britânicas da ilha, os filhos dos baby boomers que souberam dobrar o cabo do fim da colonização britânica e bateram o pé à integração na península, aqueles que comparam os seus iPads e os seus iPhones com os outros, são estes que nos perguntam se "isto" que têm "é algum futuro". "E se não é, é o quê?", perguntamos nós, vindos de um país onde isso deixou de existir. Quando a encontráramos horas antes, sentada num dos sofás postos como numa feira de exposições de móveis, disse-nos que estava ali a protestar por um mundo melhor. Perguntámos como e ela respondeu, desarmante: "Todos os dias um bocadinho mais, vivemos num mundo cheio de gadgets por todo o lado, já não comunicamos, as grandes empresas roubaram-nos o futuro." Perguntamos-lhe se trabalhava, respondeu que, mais importante do que trabalhar, "que isso é quererem calar-nos com a escravidão de um salário", era mostrar "que os senhores que acham que controlam o mundo têm que saber que um dia vão cair".

Hong Kong está cheia de jovens destes, iguais e contraditórios como em qualquer cidade, mas aqui vivem a uma outra velocidade. Eles são o futuro de Hong Kong. Atravessam a Central, a Statue Square, a Queensroad e entram em edifícios cobertos por anúncios do tamanho de monumentos desenhados por arquitectos de renome. É como se as grandes obras de arte fossem não aquelas que se vendem na Hollywood Boulevard, uma labiríntica rua de curvas e contracurvas cheia de galerias de arte onde, ao mesmo tempo, se celebra o jubileu da rainha - e a rainha aqui é, e será sempre, diz-nos o concierge do hotel, sempre, a de Inglaterra -, se mostra a origem deste glamour em fotografias de Annie Leibovitz a estrelas do business norte-americano e pintores de rua tentam a sua sorte com hai-kus feitos a tinta, que nós chamaríamos de tinta da china, mas que para "eles", lá, aqui, é só a mais delicada das tintas negras, que a chuva vai ajudando a compor. As grandes obras de arte, para voltarmos ao centro financeiro, porque nunca de lá se sai, são, afinal, os anúncios da Gucci, da Prada, da Louis Vuitton, que atraem, o dia todo, a noite toda, os dólares de quem paga a pronto, longe de querer imaginar que a especulação financeira lhes vai um dia bater à porta.

E então lembramo-nos do que o filósofo francês Gilles Lipovetsky nos disse em entrevista, feita dias antes da partida: "O mercado do luxo está em expansão. Deslocou-se da Europa para outras partes do mundo. Talvez possam querer copiar os modelos ocidentais, os seus valores, mas sobretudo querem uma outra qualidade e um outro nível de vida."

O mundo ao qual querem ascender cria, contudo, outras classes que depois, inevitavelmente, o vão querer conquistar também. A classe média em Hong Kong vive em prosperidade, consciente, como se escrevia na Time Out Hong Kong na semana em que lá estivemos, que tudo vai mudar quando acabar o período transitório entre a saída dos ingleses e a entrada definitiva no sistema chinês. Mas até lá, se pararmos, por exemplo, no bairro de Wan Chai, onde se misturam as cores dos fumos das comidas de rua com os saltos altos e os sacos de compras dos turistas, percebemos que o exotismo de Hong Kong continua intocável e alimenta-se disso mesmo. Nos dias em que lá estivemos, por todo o lado se viam cartazes a dizer Welcome USNavy. A Marinha estava na cidade, e elas vestiam-se com as suas roupas curtas, as suas jóias mais brilhantes, os seus decotes mais generosos, os seus dentes pagos a encontros, as suas unhas desenhadas ao mais complexo gel.

Elas, mais tailandesas do que chinesas, mais indianas do que taiwanesas, mais japonesas do que ocidentais, à porta dos bares, a convidar a entrar e eles, qual filme, de farda guardada, impecável no navio de guerra que ficou ao largo para todos verem, a rir, a saber, dizia um alto para quem o quisesse ouvir, que a namorada, em casa, sabia que um homem, do outro lado do mundo, tem que saber divertir-se. E, na nossa cabeça, os versos, óbvios, da canção de David Bowie, China Girl: And when I get excited/ My little china girl says/ Oh baby just you shut your mouth/ She says ... sh/ She says/ She says...

Nunca sabemos se as imagens que vemos, as que guardamos, pertencem a um livro de Don DeLillo, a um filme de Cronenberg dos bons tempos ou a uma fantasia gore que nos divertira numa cidade europeia em snob sessão de domingo à noite. Mas o que sabemos é que Hong Kong apela a uma dispersão.

Maneki-nekos e Confúcio

E é verdade, a nossa atenção dispersa-se por entre esse estado perfeito das coisas, essa realidade por vezes asséptica dos anúncios, dos edifícios de design em linhas rectas que iludem a sensação de desconforto e vertigem, e a outra, aquela sobre a qual essa se construiu, feita de lojas atulhadas de ervas, de peixe e de carne seca, de legumes fritos, de velas, de especiarias, de aves vivas e de tecidos, tantos tecidos, muitos pintados à mão, muitos tão caros ao metro que nunca os poderíamos levar. Um outro tipo de consumo, feito paredes meias com esses enormes edifícios e que fazem do bairro de Sheung Wan um emaranhado de pequenas ruas que pareceriam medievais se não fossem, de vez em quando, cortadas por avenidas largas.

É nestas ruas que descobrimos os mercados improvisados que vendem as relíquias, os resquícios, aquilo a que chamaríamos despojos de uma utopia que teve em Mao Tsé Tung o líder supremo e hoje parece uma anedota desse mesmo regime, dessa mesma utopia. O que pensar quando encontramos um Mao de punho erguido que balança, como os Maneki-nekos, os gatos que compramos por graça e curiosidade e colocamos nas alçadas das portas para nos proteger? Terão sido, de facto, preparadas refeições em tachos decorados com a efígie de Mao, servidas essas refeições em pratos de sopa que, à última colher nos mostravam o Grande Líder a sorrir, pedindo-nos que devolvêssemos agora, ao "nosso país", a força equivalente ao prato de sopa? Terão de facto acordado, no campo e na cidade, as pessoas com despertadores onde é o hino do Partido Comunista que toca, com Mao novamente a saudar-nos? Ou será já só uma derrisão apenas permitida pela distância do tempo e a distância do continente, logo, do poder institucional?

Nas ruas de Sheung Wan, invadidas pelo cheiro a incenso, ou atravessando a Man Wan Lane, onde os nossos nomes podem ser desenhados a partir de auspiciosos mergulhos de uma pedra de jade em tinta - como se o nosso futuro pudesse ficar escrito nas indecifráveis linhas de um papel amarelado - o que encontramos é uma China que não se define e que não tolera o olhar exótico, mesmo que tenham já colocado em todos os templos explicações em várias línguas e garantam que as velas que acendemos no templo Man Mo, ou os nomes que escrevemos num papel que seria de bíblia se eles a tivessem e que colocamos numa caixa pertencente ao deus protector desse ano, têm um efeito garantido - "ok sir, ok, good, sir, good", diz a velha que guarda as velas - a milhares de quilómetros de distância. "Gods everywhere, sir, everywhere", diz, agitando os braços e desenhando o mundo.

Um mundo desenhado a traços largos, como o pensou Confúcio, o grande pensador religioso chinês, cujos princípios não eram nem de lisonjeio ou de submissão, mas sim o de ajudar a cultivar a virtude. Quem nos explica, acompanhado de um chá que queima a língua mas que a educação nos faz mentir, é o zelador do templo Kwun Yam, na península de Stanley, o porto onde chegámos depois de uma hora de autocarro por entre mais túneis, mais viadutos, por cima do bairro das prostitutas de Wan Chai, ao longo das praias escondidas no fim das ravinas, ao abrigo das imensas árvores cujos ramos pararam o autocarro em pequena inclinação inusitada.

Diz-se que o templo guarda a pele de um tigre que pesava mais de 100 quilos e quase dois metros de comprimento e um de altura. Diz-se que a pele foi arrancada ali mesmo em frente à polícia há mais de 60 anos, guardando assim este lado permanentemente selvagem que Hong Kong não se cansa de mostrar. E diz-nos o zelador, que estudou em Inglaterra "o diálogo entre as religiões", que apesar de se dizer hoje que "o humanismo confuciano ignorava o princípio da igualdade dos direitos", foi com a religião, no seu sentido mais amplo e místico, mais espiritual e menos concreto, que Confúcio inspirou os chineses: "Um homem sem um refúgio espiritual é como um cão sem lar."

Encontrar um zelador que nos ensina as palavras de Confúcio num cemitério que é dos maiores da Ásia e que guarda os corpos dos que morreram pelo país - "os seus olhos guiam-nos" - parece demasiado irreal. E é ele quem nos explica o que andávamos à procura: como definir o equilíbrio no qual se sustenta Hong Kong? "Olhe para os andaimes em bambú, repare como o homem encontra a sua natureza em tão frágil estrutura." Efectivamente, e ao contrário do que acontece no Ocidente, na China os andaimes das obras são feitos à mão, agarrados com tiras de plástico, organizados como se fossem uma teia que enreda os prédios. "Veja, mas veja realmente, o mundo a partir daquele aparente desequilíbrio. Vai perceber."

No meio da feira de vaidades que é Hong Kong, por entre a diversão e os horrores que imaginamos mas não vemos, porque a honra esconde o que o pudor não mostra, a cidade apresenta-se como o cenário ainda por escrever de um filme que se anuncia como o nosso. O mundo ali ampliado, no excesso dos prédios altos, na cumplicidade das pequenas lojas, na incompreensão das línguas, no potencial de mudança, na possibilidade de um mundo que não pára. E nesse vai-e-vem de escolhas, perceber, lentamente, que de Hong Kong se leva a estranha sensação de vazio, de um tempo que não se agarrou. Como se fosse uma interminável viagem de autocarro, a realidade lá fora, muda, que nunca poderemos chamar de nossa porque não pertence a lado nem a tempo nenhum.

Não há o desejo de uma história linear, como na América, onde até os museus se constroem cronologicamente, ou de uma reflexão permanente, que é mais impeditiva que evolutiva, como na Europa. Há um desejo de futuro porque, afinal, o tempo não é, ali, uma construção e, ao contrário da Europa, onde o desejo de futuro se faz através de um desejo pelo novo, ali, estranhamente ali, é onde as palavras do Príncipe de Salina, o protagonista de O Leopardo, de Tommasio de Lampedusa, preso na viragem do século XIX para o século XX, fazem mais sentido: "As novidades só nos atraem quando as sentimos defuntas."

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