Fugas - Viagens

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Um périplo horripilante, de crimes e fantasmas, pelas ruas de Lisboa

Por Catarina Durão Machado

Uma empresa de animação dá a conhecer uma capital diferente. Em vez de guias, são actores que se encarregam de liderar o caminho por entre histórias de uma Lisboa de outros tempos.

Arco da Rua Augusta, 21h30. Ouvem-se as solas dos sapatos marcando a calçada. Mas a cidade está quase silenciosa, é a imaginação que compõe um cenário de suspense: os efeitos dos focos de luz vindos do chão, junto ao arco, iluminam os queixos dos transeuntes e há quem passe com a gola do sobretudo virada para cima. O vento não sopra, o frio suporta-se. São as sombras e os silêncios que incomodam quem não está habituado a observar este tipo de noite, em Lisboa.

Esta é uma história de fantasmas, para quem acredita neles. Para quem não acredita, então esta é uma história de teatro, onde o palco são as ruas inclinadas do centro histórico da capital, os espectadores são os clientes e os transeuntes ocasionais. Há um actor principal, vestido de capa preta com capuz e lanterna na mão. Os actores secundários, esses são os fantasmas.

O contador de capa preta tem como função fazer ressuscitar os mortos de que fala, com o foco da lanterna na cara ou apontando-o para os edifícios onde eles, os mortos, terão vivido. "Foi aqui que viveu uma assassina", conta o narrador do passeio nocturno, dirigindo a luz à janela de um prédio devoluto. A história assume contornos de filme policial e os caminhantes escutam com atenção. Finda a narrativa, o périplo é percorrido de um fôlego, sem parar. E no fim, o contador grita ou sussurra um "sigam-me". E o grupo segue-o, pois claro.


Crimes e lendas


É assim que a Ghost Tours trabalha. À noite, para portugueses ou estrangeiros, fugindo da confusão do dia, onde turistas e lisboetas se atropelam numa cidade cada vez mais concorrida. De Inverno, o cenário fica mais carregado, o frio aguça a imaginação, e até em dias de chuva Lisboa parece ficar mais assustadora. O motivo do passeio são crimes e criminosos, lendas e acontecimentos horripilantes da História de Lisboa.

O contador leva o grupo pela colina do Castelo acima e, na Sé, não obstante os gritos incomodados de um sem-abrigo, a atmosfera de macabro adensa-se. O céu está mesmo preto e a catedral profundamente amarela, a lua cheia a um canto.

O contador está entusiasmado e lembra o dia em que um bispo foi lançado da torre da Sé, em pleno século XIV. "Conta-se que os seus restos mortais foram arrastados pela cidade e comidos pelos cães", vocifera. Os impropérios do sem-abrigo persistem, mas o contador não desmancha o seu papel. A sua voz é colocada e parece ecoar no silêncio da rua. Não admira que incomode os que já dormem, apesar de não passar das dez da noite.

A subida acentua-se, desfilam fantasmas de assassinos, há muito falecidos, e das suas vítimas. E é no Pátio do Carrasco, a caminho de Santa Luzia, que o ambiente chega a gelar. De repente, o grupo transporta-se para um átrio quadrangular do século XIX, com casinhas baixas e janelas pequenas, carreiros intermináveis de plantas e vasos, roupa estendida nos varais, capachos à porta e gente que, embora ali viva, não vem espreitar, mas respira do outro lado da parede. A história é a de Luís Negro e o nome do pátio diz tudo. Adiante.


Sangue, suor e gargalhadas

O contador segue agora o fantasma de Manuela de Zamora, uma ladra, pelas Escadinhas de São Crispim. Mais uma vez, ninguém vem à janela por mais que o contador berre os feitos da mulher. O grupo arfa da subida, mas constata, com surpresa, que não conhecia aquele trajecto que desemboca à porta do Chapitô. A ladra ficou para trás, mas, uns minutos à frente, encontra-se uma outra, Giraldinha, agora nas Escadinhas de São Cristóvão.

As pinturas murais alusivas ao fado acompanham a narrativa, enquanto um grupo de raparigas passa e estaca, olhando o contador com curiosidade. Querem seguir as palavras que captaram no ar, mas o mensageiro já voa pela Rua de Santa Justa, com a capa a ondular.

Com a Praça da Figueira no horizonte, o grupo de caminhantes exibe alguma expectativa, agora que começa a entrar em território mais conhecido. Com o Castelo de São Jorge pendurado no céu, numa faixa amarelada de muralhas, o contador aproveita para lembrar que Lisboa tem lendas fundadoras, e que Ulisses protagonizou uma delas.

A história perde dramatismo, mas ganha romance e fantasia, para contrabalançar a sílaba tónica dada aos crimes e assassinatos. Em torno, vislumbram-se rostos da noite, habituados, porventura, a homens de capa preta. Rapazes deslizando emskates, aos pés do mestre de Avis. O contador persiste no fito de aterrorizar transeuntes: senhoras e casais a passear, ou à espera de qualquer coisa no carro, turistas deambulantes. Os sustos são genuínos e parece que o contador já terá mesmo provocado gritos de pavor que terão acordado meia Baixa Pombalina. No entanto, a maioria destes sustos acaba por transformar-se em gargalhadas bem-dispostas.

Tempo para aterrorizar um pouco mais os caminhantes, com os fantasmas dos cristãos-novos massacrados no Rossio. A luz da lanterna incide sobre a porta fechada da Igreja de São Domingos. Os pormenores violentos das mortes provocam esgares de reprovação nos rostos. Já houve quem tivesse reclamado contra o sadismo que o contador emprega ao relatar o Massacre dos Judeus de 1506, mas é esse o propósito, afirmará, mais tarde, o narrador.

O périplo termina da pior maneira. Junto à estátua de D. Pedro, no Rossio, o contador apresenta a escrava Catarina Maria, que foi acusada de ser bruxa pela Inquisição. A imaginação dos espectadores arde com o relato da sua tortura e da sua morte, em auto-de-fé, numa fogueira anormalmente lenta. Histórias de outros tempos, mas que se tornam reais quando se olha para uma das fontes da praça e, em vez dela, se distingue claramente uma pira ardente e uma mulher que morre sufocada com o fumo e o pânico.

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