No porto de Amesterdão, há um marinheiro que canta os sonhos que traz do alto-mar. No porto de Amesterdão, há um marinheiro que dorme enquanto as margens do rio choram ao velho salgueiro.
Porque nos lembramos desta canção de Jacques Brel, mas em versão da voz grave e ácida de David Bowie, como se a língua inglesa corresse dolente pela velocidade, e a ferocidade, do grito de Brel, em francês?
Talvez porque olhemos para um porto que já mal existe, que é já sombra carregada de uma nostalgia à qual não é alheio o cinzento do céu, o riso alarve das gaivotas que assaltam um caixote do lixo, confundido com outro, mais alarve, mais exposto, ainda mais animal se tal fosse possível, das raparigas que, de manhã cedo ainda, não sabem que o dia é já outro e não o mesmo que terminou em noite ébria nas noites de estudante do Dansen Bij Dansen. Talvez porque olhemos em volta e não reconheçamos nas fachadas de casas que nos parecem de uma assepsia enternecedora, a sujidade, no fundo, a vida, que Dante Ferretti recriou no filme Gangs of New York, de Martin Scorcese, passado no bairro de New Amsterdam, que se queria distinguir desse velho mundo que deixavam e de um novo que ainda tinham que conquistar.
Olhamos em volta, para o porto onde acostaram casas-barcaça que ignoram o que serão regras básicas de privacidade e estendem roupa ao lado de mesas que ainda têm vasos de plantas e um jornal colado no vidro e socorremo-nos das imagens que guardámos, meses antes, nos estúdios da Cinecittà, em Roma, onde o filme de Scorcese foi rodado e onde os cenários ainda guardam uma piedosa memória de um tempo que já não existe.
É nesse hiato entre a história que querem contar, como se a ficção sujeitasse a realidade a uma narrativa mais conveniente, e a realidade, que se tornou já passível de ficção, que vive uma cidade sobre a qual se projectaram sempre mitos de liberdade, liberdade, tanta liberdade que por vezes reina a liberdade histórica.
A cidade e o contraditório
Não é fácil não se gostar de Amesterdão. Não é por mais nada senão uma enorme expectativa e a sensação de termos chegado depois de todos os tempos, depois da invasão das proibições, das regras que agora impedem, e impõem, uma norma para o Red Light District, para as casas de fumo, para os bares abertos até tarde, para os jongleurs na rua que tentam animar quem passa, para as drogas que se vendiam a céu aberto, para todo o tipo de transgressões que não olhavam nem para a proximidade de uma igreja nem para a vigilância da polícia.
“Mudou muita coisa e vai tudo ficar na mesma”, diz-nos Bart, um dos DJ do Aknathon, um bar-discoteca que tenta dar novo sentido ao multicultural numa cidade que nunca se quis preocupar com as regras e agora as tem por todo o lado. “Inventam novas drogas, é tudo o que vão conseguir com isto.” Na pista, não sabemos se o entusiasmo com que se dança é fruto do contágio da energia imposta pela beat reggae ou por efeito de substâncias que, vemos, correm, ligeiras, pelas mãos, e os beijos de quem ocupa a pista. Olham-nos de lado e perguntam-nos se estamos a gostar da cidade. Perguntam-nos pelas cofee-shops? Não fumamos. E pelos canais? Todos iguais. E pelas casas? Aquelas fachadas que parecem revisitações dos interiores vitorianos? Não. E o Red Light District? Dá-nos pena, mesmo que não o consigamos evitar até sermos alertados por uma das raparigas: “Mais um minuto a olhares sem entrar e cobramos-te mesmo sem teres despido as calças.” Não é fácil não se gostar de Amesterdão.
Cidade de viva cultura, mais de rua que de museus, mais de cafés e de conversas, de algum modo como Berlim, também uma cidade que impressiona pelo modo como de pouco parece fazer tanto. Não tira o fôlego mas não embaraça ninguém. E como o poderia fazer? É cidade rica, onde o dinheiro circula, apesar da crise, onde todos os dias abrem novos negócios porque aos 23 anos já se pode começar uma empresa, como conta Mary, que abriu um cabeleireiro em Leidsestraat, que cuida como se recebesse em casa. “Amesterdão pode ser muito acolhedora, mas o turismo invadiu tudo o que era calmo”, diz, enquanto maneja com precisão as tesouras na cabeça de uma cliente. Esperamos a nossa vez no conforto de uma decoração que foi feita a partir das memórias da própria cidade. Mary diz que os habitantes da cidade se encontram nas manhãs de sábado no passeio que se entende ao longo do canal, sob a égide de Spinoza, que ali nasceu, no mercado de Waterloopleinmarkt. “A cidade oferece-se completamente em todo o seu contraditório.”
Mary tem razão. Como em tantas cidades, é possível encontrar uma memorabilia desconfortável, que coloca ao lado de trastes que já ninguém quer outros objectos que ninguém deveria ter querido: símbolos militares da ofensiva alemã, máscaras de gás, águias em latão e bronze e, garantem, banho a ouro, sacos onde cunharam as siglas dos movimentos radicais, muitos casacos dos diferentes braços militares. Mas o que este mercado tem de especial, como terão, na verdade, todas as feiras da ladra, é a sua disposição que permite entradas e saídas das tendas improvisadas, como se fossem pequenas casas que resguardam as compras que se fazem.
Há bancas que misturam tudo — livros, casacos, bibelots, sapatos — e depois há aquelas mais dedicadas, com cabides cuidados e espelhos onde podemos experimentar a roupa. “Fica-lhe muito bem. Estou a ver daqui”, diz-nos a dona quando escolhemos um casaco que só custa dez euros e “estava à [sua] espera”. Rosalind tem esta banca há trinta anos, os casacos vai-os encontrando ou muitas vezes há quem deixe ali o que já não quer. “Lavo-os, arranjo-os, puxo-lhes o brilho e nem uma manhã aqui ficam.” As regras de venda ambulante também estão a mudar. “Agora temos que ter licenças para tudo, até para receber os produtos que as pessoas já não querem. Achava que era esse o princípio da segunda mão”, arremata, enfiando o blazer no saco.
A história dos outros
Não muito longe do mercado fica a Sinagoga Portuguesa, uma das primeiras na Europa Ocidental e um milagre de sobrevivência da destruição a que a cidade foi sujeita durante a Segunda Guerra Mundial. Lá dentro conta-se a história das relações pessoais à margem das relações políticas. Porque no século XV a Holanda estava em guerra com Espanha, os judeus que haviam fugido para Amesterdão apelidaram-se de portugueses e criaram a maior, e mais resistente, comunidade judaica na Europa. Seguir a sua presença, ou a presença de diferentes comunidades numa cidade que parece acolher tudo e todos sem perguntar porquê, é encontrar elementos complementares de uma História que vive rarefeita, muitas vezes escondida ou fragmentada.
Há que fugir do circuito dos postais ilustrados, sem, no entanto, deixar de mostrar como a cidade foi, efectivamente, um laboratório que cruzou convulsões políticas, sociais, religiosas e filosófias. As casas, entretanto tornadas museus, Willet Holthuysen (Herengracht, 605), Van Loon (Keizersgracht, 672) e Geelvink Hinlopen (Keizersgracht, 633) são exemplos que guardam o estilo do período em que foram concebidas, no século XVI, e sugerem um outro percurso pela cidade. Relativamente próximas umas das outras, mostram um fausto, uma ordem, e vários conflitos, até estéticos, que fizeram de Amesterdão uma cidade que, ainda hoje, precisa de viver atrás de uma lógica que imponha a sua visão do mundo ao próprio mundo.
2013 será ano da cidade. Quando visitámos Amesterdão, faltavam ainda algumas semanas para a abertura de um dos mais importantes monumentos à história da Holanda, o Rijksmuseum (entretanto inaugurado, após dez anos em obras), a par de um plano de renovação de fachadas das casas, de organização do trânsito, de novas regras para o consumo de álcool, de drogas livres, até para a comercialização de tulipas, diz-nos o vendedor do Museu das Tulipas (Prinsengracht, 116), enquanto nos ensaca um bolbo de Amarylis Benfica que promete “estar enorme, vivaça, florida” no dealbar da Primavera. Que a primeira grande crise económica tenha começado na Holanda, e por causa do aumento do preço da tulipa, parece uma memória distante. “A Holanda é um exemplo. Amesterdão é a sua melhor prova.”
Amesterdão vive destes mitos, ou de histórias que ninguém sabe como começaram a ser contadas ou quando começaram a ser inventadas. Antes de se chegar a Leidesplein há uma pequena estátua, que passa imperceptível a quem não lhe prestar atenção, de tão entretida que está a fazer o que a puseram a fazer. O homem corta lenha, um enorme e vigoroso ramo, dos poucos que não se deixam abanar pelo vento. Curvado sobre si mesmo, olhos escondidos, arrumados no machado que desapareceu já, minúsculo, nos nós do ramo, sugere que tudo possa ruir.
Há quem diga que foi a Rainha Beatriz, que entretanto resignou, que mandou instalar a pequena estátua, para lembrar que a Holanda se fez a partir da relação intensa com a natureza, conta Hans, o empregado do Café Americano, uns metros ao lado, debaixo do sumptuoso lustre que, sozinho, enche a sala de luz. “Há quem diga que é mentira. Nós, holandeses, gostamos de contar a história como nos convém.”
Assim é, de facto, para quem vem de fora e encontra, na entrada do Rijksmuseum, uma inscrição que procura compensar o prolongado período de renovação, reformulando a exposição permanente, com uma “discreta” selecção de 300 obras, entre elas A Ronda da Noite, de Rembrandt, pintada entre 1640 e 1642, obra de tirar o fôlego e a pedir que cancelemos todas as reservas que temos. Pausa para respirar. Não há, em todas as linhas de movimento deste quadro, uma só ideia sobre a construção do mundo que não se reflicta, depois, em todo o resto da colecção. Mesmo que nessa inscrição na entrada a História esteja a tentar explicar-se de um modo algo enviesado. A conquista dos mares, como os holandeses gostam de contar, coloca os espanhóis, os ingleses e, claro, os portugueses, num segundo plano. Cada país contará, o melhor que sabe, a sua história, mesmo que a sua, seja, também, a história dos outros.
À procura dos mitos
Felipe tem 23 anos, nasceu na Colômbia e desde Setembro que estuda clarinete em Amesterdão. Foi um dos mais de mil que concorreram às audições do Conservatório de Música, abertas em vários países. Diz que, entretanto, se apercebeu que “na Holanda interessa mais o modo como [se] convence quando [se] está a contar uma história”. “É como a hierarquia na estrada”, explica. “Há o eléctrico, a bicicleta, os automóveis e, depois, as pessoas. O eléctrico leva tudo à frente, a bicicleta finge que é dócil, os automóveis são olhados de lado e as pessoas são só peões. Tens que escolher que veículo queres ser.” Felipe conta-nos tudo isto enquanto seguimos empoleirados na traseira da sua bicicleta. Já dribla bem as curvas da estrada, conhece bem os atalhos e sabe como esquivar-se aos sinais. Enquanto conversa vai apontando para uma cidade onde, de facto, vista à velocidade das pedaladas, expõe a sua falsa organicidade. “Os canais são o que maior equívoco existe. São mínimos mas a sua estrutura labiríntica sugere que escondem mais do que aquilo que mostram.”
A rede de canais, ou os anéis que formam os canais, foram declarados Património da Humanidade em 2010. Apenas a parte central está protegida, e mesmo essa nem sempre da melhor forma. Há paraísos, como Bgijnhof, o melhor e mais antigo hofje (espécie de pátio) de Amesterdão, comunidade de jardins de tulipas reunidas por cores em torno de uma pequena igreja, a de Begijnenken, pertença das Beginen, uma comunidade de mulheres religiosas que não se queriam tornar freiras, constituída em 1346.
No interior, e apesar de terem visto ser transformada a igreja em armazém e depois em igreja inglesa, conserva painés de Piet Mondrian que parecem ser espelho da profusão de cores das flores que, mesmo no Inverno, resistem no jardim. Muitas dessas plantas vêm de perto, do Bloemenmarkt, uma feira a céu aberto onde o perfume das tulipas e dos lírios inebria quem passa. Mas esta paisagem viva, diz-nos Felipe, não é o melhor de Amesterdão. “Não é o seu verdadeiro mito.”
O melhor exemplo do mito de Amesterdão, perguntamos-lhe então. “Leste o Diário de Anne Frank?”, devolve-nos Felipe. Levar-nos-iam a mal se disséssemos que nunca tivemos o diário de Anne Frank na cabeceira enquanto crescíamos. Ficam indignados porque parece que incorremos num discurso anti-semita quando, na verdade, o que é embaraçoso são os sorrisos e os dedos em V com a língua de fora que os adolescentes tiram à porta do número 267 da Prinsengracht. As filas começam cedo e a espera faz estragos na relação que quem visita quer estabelecer com o que vai ver.
É uma espécie de fetiche o que ali leva as pessoas. Não somos nós que o dizemos. Margareta, vinda da Suécia, 25 anos, nunca leu o livro mas viu um filme. Não se lembra de qual. “Claro que tínhamos que vir aqui. É tão importante.” O quê, perguntamos. “Isto, ela, foi…” O quê, insistimos. “A memória dela.” Não leu o livro, viu um filme qualquer, como as amigas, Julia, Sonja, Annabel. “É a primeira vez que vimos a Amesterdão, sempre ouvimos falar da Anne Frank, do que fez… As raparigas da nossa idade… Ela não viveu tanto… Acho eu...” Com quantos anos morreu? “Não sei.”
Anne Frank foi capturada em 1944 e morreu aos 15 anos. Dois anos antes, a família escondera-se numa casa com vista para o canal e foi aí que Anne, que queria ser jornalista, deixou um diário onde contava o que via, ouvia e imaginava enquanto lá fora o exército nazi, que ocupava a cidade, avançava, com a cumplicidade de muitos judeus holandeses (em 2006 Paul Verhoeven realizou The Black Book que retrata, tão assustadora quanto fielmente possível, esse período que os holandeses querem esquecer). “Não sabia”, diz Margareta, prestes a entrar, depois de três horas de espera. A casa tem mais de meio milhão de visitantes por ano. Quase todos tiram fotografias à porta de uma casa que se tornou rosto-mártir de uma perseguição sem piedade. Quase todos sorriem. Como se pode sorrir em frente a esta porta?
Emmanuel, padre na igreja que fica ao lado, e onde descansam muitos dos visitantes, diz que já ninguém visita a casa pelo que ela é “mas pelo que ela se transformou”: “Um postal turístico.” Numa cesta à porta há um conjunto de panfletos que explicam a história daquela casa e a importância de gestos como os de Anne Frank não poderem cair no “fetichismo”, palavras do padre, “de quem vem fazer turismo com a miséria dos outros”. Ninguém os leva. Uma placa à porta da casa, anunciando o tempo de espera, faz também um pedido: “O tempo de espera pode ser um tempo de reflexão.” O que sentiu, perguntamos ao grupo sueco. Uma delas chora, Annabel. “Era tão pequeno atrás do armário onde estavam.” E não diz mais nada. E depois é puxada pelas amigas.
Próxima paragem, a fila de espera da Abercrombie & Fitch, a marca de roupa americana que recebe, sem problemas de fetichismo mas a pedir outro tipo de reflexão, as mesmas adolescentes com rapazes de abdominais cinzelados que posam, a troco de beijos, para as objectivas dos telemóveis. Numa e noutra fila, os mesmos risos, as mesmas gargalhadas, os mesmos dedos em V e as mesmas línguas de fora.
Luxo, luxúria, culpa, prazer, dor. Vive assim a cidade. Claro que Brel surge, em notas roufenhas saídas de um acordeão escondido no nevoeiro que já comeu os canais. Só não temos a letra da música mas sabemos o que diz quando nos damos conta — porque andamos tanto que nos esquecemos que Amesterdão é do tamanho da palma da mão — que chegamos a Rosse Buurt, o Bairro Vermelho, ou num inglês que ninguém se preocupa em traduzir o Red Light District. O marinheiro, cantava Brel, brindava “à saúde das putas de Amesterdão, que deram os seus corpos a centenas de outros homens” e que “desbarataram a sua virtude, todo o bem que traziam, por um punhado de moedas sujas”.
Flora tem 52 anos, há mais de trinta que ali está, na Damstraat, uma das ruas a sul, já quase a fechar, na mesma casa onde por cima existe um infantário. Usa uma lingerie que lhe desaparece por entre carnes, deixando apenas a luz reflectora, daquelas que brilham no escuro, indicar que ainda guarda alguma roupa. “Pudor, claro que tenho pudor. É um trabalho, não é prazer. Não é só prazer.” Flora atraiu-nos e nem sabemos se é o seu nome verdadeiro. Flora, diz ela, porque decorou a colcha da cama com flores, iguais à que tatuou no cimo das costas quando ali chegou. A casa onde o fez já não existe. “Já não existe muito do que havia quando aqui cheguei.” Já nem as raparigas são, na sua maioria, holandesas.
É muito fácil encontrar algum tipo de contorno romanesco numa prostituta que não deixa de se exibir enquanto fala connosco. Sobretudo quando parece estar com muito mais resistência do que o rapaz que acabara de sair da sua pequena casa, tão estreita que dificilmente mais de dois braços esticados poderiam medir a largura de uma casa onde, para além da cama, tem um lavatório e um pequeno móvel. “É maior lá atrás. Queres entrar?” Perguntamos se temos que pagar. “És tu que estás a trabalhar, querido.” Flora sabe, porque lhe dissemos, e pedimos, que estaríamos a gravar toda a conversa. Não se copia, nem se imita, nem se consegue recriar este ambiente. O bruáá das ruas, que a essa hora, já depois das duas da manhã, quase desaparece quando entramos. “É calmo, não é. Senta-te.” Sentamo-nos, a medo. Elas sabem sempre muito mais do que nós. Ter visto nessa noite, por coincidência, Belle du Jour, de Luis Buñuel, o filme em que uma enfadada e falsamente inocente Catherine Deneuve se descobre dona de casa de noite e prostituta para todos os fetiches de dia, ajuda a perceber que há em tudo o que naquele momento nos envolve uma dimensão extra-real. Flora tem tempo porque, revela, é das poucas que trabalha por conta própria. “Até a casa é minha”, diz. “Hoje isto está muito diferente. São mais os turistas que nos vêem ver, como se fôssemos macacas, do que aqueles que entram. Tive clientes fixos, homens que se divertiam comigo e eu com eles.” Flora faz sinal a um dos homens que passa na rua, que vê um rapaz sentado na cama, na ponta da cama, e a mulher de pé. Flora faz-lhe sinal e ele percebe que pode esperar. E saímos, agradecidos. O homem não nos olha de frente e a cortina é corrida. Lá dentro acende-se uma luz ténue que nos devolve à distância o que este falso e fascinante interdito nos sugere.
Amesterdão transformou-se, ao longo dos anos, num equívoco. “Visitam-nos pelas razões erradas”, diz-nos Clara, a guia do Stedeljik Museum (Roznstraat, 59) que, escondido na sombra do Hermitage, que entretanto exibe as obras de Van Gogh, guarda obras de Cézanne, Picasso ou Chagall mas que é um oásis para a criação contemporânea. “As pessoas chegam para cumprir rituais, para fazerem parte de uma movida que é construída pela imprensa, nem se preocupam em olhar para o que se esconde atrás dessa folia.”
Novamente os versos de Brel enquanto procuramos pelo bêbado que, disseram-nos, corre nu no Vondelpark, batida a meia-noite: “No porto de Amesterdão há um marinheiro que morre, cheio de cerveja, cheio de choro, de uma rixa numa cidade bêbeda.” Não sabemos se os risos que ouvimos, vindos do fundo do parque, são desse homem. Sabemos que a voz que procuramos ressoa à versão que Scott Walker fez da canção em 1967, como se anunciasse todas as esperanças. Há uma rapariga que corre à frente de um rapaz, que finge querer apanhá-la. Há um grupo de homens que se esconde debaixo de uns cobertores em cima do cimento, porque a relva está molhada da chuva. Ouvem-se patos que saem da água que já começa a congelar. Mas não se vê o homem.
Guia prático
Onde dormir
Hotel Blyss
Vondelstraat 74-78
A 50 metros do Vondelpark, o Hotel Blyss fica muito bem situado numa cidade onde se pode chegar a todo o lado. Os quartos, apesar de pequenos, são práticos na sua arrumação e a equipa é acolhedora. O melhor é o jardim, de acesso pelos quartos, sugerindo uma convivialidade entre os hóspedes.
http://www.hotelblyss.nl
Onde comer
Café Vertigo
No interior do Vondelpark existe um café que se abre para as longas avenidas onde se corre, anda de bicicleta e passeia. Imaginar que onde hoje se encontra este parque de 48 hectares esteve um pântano parece inacreditável, mas mostra o modo como a cidade foi conquistando espaço ao mar. O café serve umas bolachas de gengibre de desejar por mais e está aberto até tarde. As cadeiras na esplanada são suficientemente afastadas para guardar a privacidade e o silêncio necessários a um desfrute demorado.
Café American
Ponto de encontro para artistas, fossem ou não boémios, desde 1902, pode afastar pela sua sumptuosa decoração, mas tanto o atendimento como a carta são particularmente atenciosos para as mais variadas bolsas. É aqui que, depois das estreias, ainda se encontram muitos artistas locais.
Leidseplein, 26 - www.americanhotel.com
O que visitar
Magere Brug
Em português significa Ponte Magra. Réplica de uma que ali se elevou no século XVII, foi mandada construir por duas irmãs de apelido Mager (Magra) que viviam numa das margens do rio Amstel e procuraram um meio de acesso fácil que permitisse a passagem da carruagem e o aparelhamento dos cavalos que estavam na outra margem. Há quem, no pragmatismo característico holandês, considere que a lenda é mais prática do que isso e que o nome provém do facto de a ponte ser muito estreita. De noite é iluminada de um modo algo ostensivo, mas de dia percebe-se por que é que a população quis, em 1994, defender a velha ponte das intenções da câmara de a substituir por um sistema mecânico, que substituiria assim a velha madeira africana que a reconstruiu em 1969.
Hortus Botanicus
São mais de oito mil espécies de plantas num jogo labiríntico que guarda espaços secretos. Construído em 1682, tem uma das maiores colecções de plantas e árvores do mundo. Fecha cedo.
Plantage Middenlaa 2
www.hortus-botanicus.nl
MuziekTheatr
É um edifício estranho, que afasta quem dali se aproxima, mas lá dentro a elegância a toda a prova que nivela as entradas, sugerindo um acesso democrático independentemente do lugar que se comprou, justifica a visita. Tornou-se, com os anos, um dos mais requisitados co-produtores de ópera, teatro e dança mundiais. Na sua maioria, os espectáculos apresentam legendagem em inglês.
www.hetmuziktheater.nl
Zuiderkerk
Trata-se da primeira igreja protestante na Holanda, construída em 1614, e a sua torre de 80 metros marca, desde então, as horas da cidade. Local de devoção e peregrinação, é também visitada pelo cuidado com que ao longo dos anos os restauros permitiram atender às diferentes solicitações e manifestações de poder que viam na igreja, ao mesmo tempo local de resistência e de protecção. A torre só pode ser visitada entre Junho e o final de Setembro.
Zuiderkerkhof 72
Bloemen-en-Plantenmarkt
Uma das alternativas ao mercado de flores que fica em Singel é este Bloemen-en-Plantenmarkt, que se oferece como espaço mais reservado e que guarda um dos locais onde começou a crise das tulipas, a primeira crise económica do mundo ocidental, em 1637. Este permite ainda que se possam comprar bolbos que aguentam a chegada a casa, pois os conselhos dados pelos vendedores são atenciosos e cuidados.
Episode
É uma loja de artigos vintage que oferece uma selecção de objectos para orçamentos limitados.
Waterlooplein, 1 - www.episode.eu
EYE Film Institute Netherlands
Só lá se chega de barco, viagem rápida de cinco minutos e gratuita, mas uma vez lá dentro é toda uma outra cidade que se observa. O museu do cinema é um edifício de contornos futuristas, assinado pelo atelier Delugan Meissl Associated Architects, que baralha as geometrias e faz por abolir todas as fronteiras entre os diferentes espaços de fruição, como o bar e as salas de cinema. A programação, exigente porque inteligente, é atenta às estreias comerciais e amplia-as com retrospectivas e sessões especiais. Através de um dispositivo electrónico, apenas é possível aceder à Internet, já que a rede móvel foi barrada para que o tempo de fruição possa realmente existir.
www.eyefilm.nl
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A Fugas viajou a convite da TAP
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{Artigo originalmente publicado na revista Fugas de 16/02/2013}