Fugas - Viagens

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O deserto não são só dunas

Por Patrícia Carvalho

M’hamid é o fim da linha: a partir daqui não há estrada, só a imensidão do deserto. À boleia do Festival Internacional Nómada, que lá se realiza há dez anos, a Fugas descobriu que as paisagens do Sara são tudo menos monótonas e que o chá no deserto tem um sabor inconfundível.

Se o convidarem para ir assistir ao pôr do sol no deserto, não pense duas vezes, aceite. Mas garanta que o convite se estende pela noite dentro e lhe permite assistir ao nascer do sol no deserto. Porque se o aproximar da noite é um mergulho em tons difusos e quentes, a chegada do dia é a altura em que as dunas se tornam verdadeiramente belas. A subida do sol traz consigo a nitidez das cores, o contraste vigoroso das sombras ao longo das encostas altas feitas de areia e uma acalmia capaz de cristalizar o momento, como se o tempo parasse de facto. Em Marrocos, o deserto não é apenas dunas altas de areia fina, mas elas também lá estão. E são imperdíveis.

No mapa que Réda, do Turismo de Marrocos, nos entregou no início da viagem, M’hamid El Ghizlane aparece como o último ponto na longa estrada, marcada a vermelho vivo, que sai de Marraquexe, atravessa as montanhas Atlas, cruza o Vale do Drâa e acaba, por falta de alternativas, junto ao deserto. M’hamid é o fim da linha — depois dela, só há a imensidão do deserto, até à fronteira com a Argélia.

Aliás, para sermos rigorosos, M’hamid não é o último ponto antes do deserto. Ela já é o próprio deserto e poderá ser completamente tomada por ele se não tem cuidado. Basta abandonar a rua principal, povoada por velhos encostadas às paredes de casas baixas e por burros à espera de serem guiados para o seu próximo trajecto, para se sentir o poder desconcertante da areia. Uma zona que já funcionou como mercado é agora um conjunto de ruínas semi-enterradas.

Naquele local, a areia já é senhora de tudo. Apoia-se às paredes, infiltra-se nos interiores sem o resguardo de portas e janelas, espraia-se até aos telhados baixos e planos. “Aqui funcionava o antigo mercado. Estas casas eram lojas, mas as pessoas foram morrendo ou partiram e todo o espaço ficou ao abandono. Quem não tinha loja podia vender nesta zona”, explica o jovem Ibrahim, que ainda há pouco nos ensinava a colocar um turbante, apontando para uma espécie de praça tomada pelo deserto, junto aos edifícios abandonados.

Olha-se para aquele espaço e pensa-se que M’hamid não tem hipótese na luta contra o deserto. A sua única salvação será ir-se deslocando, aos poucos, para longe dos ventos que trazem as poeiras do deserto. É verdade que ela já anda por ali há séculos, sendo a última paragem antes do deserto para as caravanas comerciais que o atravessavam. Mas também é verdade que a parte velha da cidade fica a três quilómetros desta parte “nova” (mesmo assim, entre aspas, porque nova não é adjectivo que assente bem ao conjunto de casas com ar gasto e da mesma cor ocre do resto da paisagem), já prestes a ceder às areias, onde estão instalados os talhos, cafés, lojas e agências de turismo da comunidade rural.


Dromedários no horizonte

A menos que se venha a M’hamid para tentar perceber melhor como viviam os nómadas (diz-se que eles ainda andam por ali e até há um festival a prová-lo), o mais certo é que se venha dormir a M’hamid antes de partir para o deserto. O que, como já se viu, é tão fácil como dar um passo para o lado.

Mas deslocamo-nos um pouco mais. Levam-nos de carro através da rua principal até, literalmente, esta terminar num terreno árido de pouca areia e muitas pedras. Três minutos dentro de um carro e já se vêem dunas baixas e perfeitas de areia fina, logo ali ao lado. M’hamid? De alguns ângulos já não se vê, é como se não existisse. É aqui, neste terreno árido, que vemos chegar os dromedários, enfeitados com cestos coloridos e guiados por homens de vestes longas e rostos protegidos por turbantes azuis, negros e brancos. Os dromedários caminham, elegantes, sempre mais alto do que aquilo que recordávamos desde a última vez que os vimos, e são seres silenciosos, até os obrigarem a ajoelhar.

Aí, barafustam, com sons profundos e rudes, que mais parecem o roncar de estômagos assolados por uma fome tremenda e repentina. Libertos dos cestos e selados com a ajuda de mantas que libertam nuvens de pó ao assentar sobre o seu pêlo, calam-se finalmente, mirando com curiosidade o grupo que espera para lhes trepar para cima. É que, antes de nos embrenharmos verdadeiramente no deserto, em “camelos japoneses” (é assim que o nosso motorista, Mohammed, chama aos 4x4 em que nos deslocamos), oferecem-nos uma pequena amostra do que seria abalar, areia dentro, em cima de um dromedário.

Não é fácil. E toda a experiência nos faz ganhar um respeito mais intenso pelos homens que, durante anos, cruzaram as imensas dunas de areia equilibrados sobre estes animais. A primeira prova a passar é o levantar do próprio bicho. O movimento rápido do erguer das patas traseiras antes das da frente obriga a pôr à prova toda a capacidade de equilíbrio, recompensada, depois, com o balançar suave do passo firme do dromedário. Mas não se deixe iludir por este balançar. Se o encaminharem para uma duna, por pequena que seja, esteja a postos. A descida vai dar-lhe a impressão que vai cair para a frente (incline-se para trás e, se for preciso, segure mesmo o pedaço de corda que deverá estar na parte traseira da sela) e a subida obriga-o a não relaxar, para não ter a sensação de ser empurrado para trás. Dito isto, não se assuste. A experiência vale mesmo a pena e os guias estão sempre alerta, indicando quando deve fazer força para a frente ou para trás, para que não haja surpresas.

O passeio em torno de M’hamid dá-nos um primeiro cheiro real do deserto, mas há-de ser dali a pouco, quando almoçamos no hotel, antes de ocuparmos os nossos lugares nos “camelos japoneses” rumo às grandes dunas de Chegaga, que o deserto nos entra, literalmente, pelos olhos dentro.


Tempestades sem chuva

Porque é nessa altura que se levanta um vento infernal. Daqueles a gritar “tempestade de areia” e que nos enche, de facto, de areia por todos os poros. Nuvens de poeira entram pelo hotel, obrigando a fechar as portas, e os turbantes que mais não pareciam do que enfeites para turista, tornam-se verdadeiramente indispensáveis, protegendo a boca e o nariz das chicotadas finas do vento. Mesmo assim, abandonamos M’hamid, no meio do turbilhão da areia. Sempre na expectativa de que a ventania não se transforme numa daquelas tempestades que se prolongam por horas e estragam qualquer plano de viagem. E ela, de facto, há-de abrandar, mas não para já.

Por enquanto acompanha-nos, a longo das primeiras horas de viagem. O percurso nos 4x4 é acidentado, cheio de curvas, bamboleante (mas sem a suavidade do dromedário), num terreno cheio de arestas e saliências. O deserto, começamos a descobrir, não são só dunas altas e suaves de areia fina. O deserto pode ser um terreno imenso de pedra dura, um chão seco de feridas abertas pela falta de água, pequenas dunas pontuadas de tufos verdes empoeirados, um solo pejado de pequenas pedras.

Meia hora depois de deixarmos M’hamid, seguindo os sulcos marcados no chão deixados por outras viaturas que ali passaram e, aparentemente, sem qualquer outro ponto de referência (mas Mohammed conhece bem o percurso e sabe para onde vai), surge do nada um homem, puxando dois dromedários. Não há vestígios de nenhuma outra povoação por ali, fica-se a pensar de onde é que ele vem e o que anda ali a fazer. Sempre acompanhados pelo vento e pela areia que ele ergue no ar, vemos, ao longe, um outro grupo de dromedários e, algum tempo depois, entre rocha e dunas, paramos junto a um grupo destes animais, que parecem aguardar perto do que, percebemos depois, é um poço.

Mohammed não se intimida. Descalço, salta do seu camelo japonês para o solo seco do deserto e abre o poço, puxando, uma e outra vez, e ainda outra vez, muitas vezes, a água que despeja num recipiente no chão. Os bichos rodeiam-no e lambuzam-se. Não são selvagens. Não há dromedários selvagens neste deserto marroquino, garantem-nos. Pertencem a alguém e por isso têm as patas da frente presas uma à outra, com uma corda que lhes limita os movimentos, impedindo-os de fugir. Com a areia a rodopiar por todo o lado, voltamos ao carro, quando os animais, saciados, já se afastam, subindo uma pequena duna.

O deserto torna-se plano, coberto de rocha e, depois, regressam as dunas, ainda cobertas de pedra. Não há monotonia. A paisagem não é sempre igual e, de um momento para o outro, enche-se de acácias, numa seca imitação da savana africana, e Mohammed brinca: “Só faltam as girafas”. Dali a instantes chegamos ao Oásis Sagrado.

A água que corre não é muita, mas, no meio de uma paisagem lunar, é um bem inestimável. As palmeiras poeirentas ladeiam o charco animado por pequenas rãs. O fio de água que surge entre as pedras ajuda a limpar um pouco da areia da cara e a ganhar novo alento, antes de fazermos os últimos quilómetros até Chegaga, o lugar das grandes dunas.

Chegamos lá quando o dia está quase a terminar, mas ainda a tempo de atirarmos as mochilas para as tendas atapetadas e com camas de cobertores grossos, aonde iremos pernoitar, e nos lançarmos sobre aqueles montes macios de areia dourada.

É aqui que o deserto é mais bonito. E, para um principiante, é aqui que ele se torna reconhecível, assemelhando-se às imagens dos filmes e documentários que nos vendem um deserto exclusivamente feito de altas dunas onduladas, umas a seguir às outras. O acampamento onde iremos ficar está alojado aos pés destes gigantes, belos e silenciosos.

Há quem diga que este mergulho no deserto pode ser desconfortável. Que há quem não se sinta bem com a imensidão da paisagem e peça para voltar para trás ainda antes de chegar às grandes dunas. Nada disso nos passa pela cabeça. Com a respiração ofegante pelo esforço de subir as altas dunas, e a pensar como raio o rapaz de vestes longas já vai uns bons 300 metros à nossa frente, trepando por ali acima, como se não houvesse amanhã, só queremos conseguir subir mais um pouco para poder apreciar o pôr do sol, agora que o vento amainou.

O rapaz encaminha-se para o topo da duna mais alta nas proximidades, depois de uma subida e descida extenuante de várias outras, e senta-se, triunfante, lá em cima. O grupo vai-se aproximando, um após outro, ocupando o seu lugar de honra sobre um verdadeiro mar de colinas de areia, onde o sol se vai escondendo. Das marcas das pegadas de quem passa, saltam besouros azuis-turquesa, que correm, em busca de novo esconderijo, sob a superfície.

Lá em cima, só queríamos que todas as vozes se calassem. Que os cliques das máquinas fotográficas se silenciassem. Para que o ruído do vento nos nossos ouvidos fosse tudo que ouvíssemos, enquanto o céu se acinzenta e o sol desaparece, finalmente, atrás da última duna, lá ao longe.


Um chá no deserto

Só ao descermos da nossa varanda natural sob o pôr do sol é que temos tempo para apreciar o acampamento em que iremos passar a noite, o nosso bivouac. Está organizado num rectângulo, com todas as tendas voltadas para o centro. A areia quase desaparece debaixo dos tapetes que nos permitem esquecer sandálias e sapatilhas e, no interior das tendas, assim que escurece, há luz eléctrica fornecida por um gerador. Fora do quadrado, foram construídas casas-de-banho com sanitas e um chuveiro e há uma cozinha (com dois painéis solares ao lado), de onde saem sucessivos pratos de comer e chorar por mais. A sala de jantar é, claro, numa tenda, a maior do acampamento.

É ali que nos sentamos a saborear o sempre omnipresente chá, acompanhado de amendoins e bolachas. Deixamo-nos ficar, esgotados e esmagados, até o céu escurecer em definitivo, enchendo-se de milhões de estrelas. É impossível resistir a este espectáculo. No largo artificial criado pelo bivouac escolhemos um canto vazio nos tapetes e deitamo-nos, de olhos bem abertos, voltados para as estrelas. As vozes que se ouvem no acampamento surgem como que decalcadas do resto da paisagem, imersa num silêncio total. Já nem o vento se ouve. O deserto não angustia, encanta.

Passam-se minutos ou horas, a noite pede um casaco e o corpo pede comida. Na tenda, vindas da cozinha, surgem cestos de pão achatado, travessas de saladas coloridas, tajines de carne, cuscuz e, no exacto momento em que sabemos que não vamos conseguir engolir mais nada, eis que entra um cordeiro assado, a que só falta a cabeça. O jantar acaba com fruta mergulhada em iogurte e no sempre bem-vindo chá.

No exterior, prepara-se já uma fogueira, que há-de alumiar um pouco a noite. Não o suficiente para deixar ver os músicos que, sentados sobre os tapetes, vão encher de música berbere, durante alguns minutos, o silêncio em volta. Os sons das vozes masculinas, que repetem, num crescendo, palavras incompreensíveis, animadas por palmas e instrumentos desconhecidos, envolvem a atmosfera num véu de mistério. Todos os ocupantes do bivouac estão espalhados pelo chão, sobre os tapetes, aparentemente indiferentes à areia e a tudo o que não esteja concentrado naquele quadrado no meio do deserto.

A noite não termina sem que se faça o pão de areia. A massa chega já pronta, junto ao círculo de pedra em que arde a fogueira preparada há pouco. Um homem afasta as cinzas, com um pau, coloca a massa na areia e cobre-a com ela e com as cinzas. Com um tronco seco, o cuidador do pão vai batendo na massa, avaliando o estado da cozedura. O pão é retirado, virado e volta a desaparecer sob a areia e as cinzas. Quando está pronto, não há tempo a perder. O homem agarra-o, sova-o ligeiramente, limpa-o com um pano aos quadrados e parte-o, ainda quente, para ser servido. Ainda se sentem pequenos cristais de areia entre os dentes, mas a massa quente é deliciosa e desaparece num ápice.


Lago, mas não hoje

Durante a noite, o vento fustiga a tenda, mas não nos impede de dormir. Acordamos com o despertador, às 6h15, para assistir ao nascer do sol. Desta vez, somos muito poucos. Quem preferiu ficar a dormir não vai saber que o verdadeiro espectáculo acontece precisamente agora, quando todas as cores têm uma vivacidade que o final da tarde desconhece. Não vamos tão longe, não subimos tão alto e não ficamos tão cansados como no dia anterior, mas é a este momento que chamamos inesquecível. E, vá lá, nem era preciso que aparecessem (como apareceram) três dromedários entre as dunas, conduzidos por um dos homens do acampamento, que os solta, com uma palmada ligeira no lombo, no meio das dunas, para que partam em busca de pequenos tufos de vegetação com que se possam alimentar.

Deixamos o acampamento com a certeza que vamos ter saudades dele e regressamos aos solavancos e às paisagens incertas do deserto. As grandes dunas dão lugar a outras bem mais pequenas, surgem pequenas árvores e tufos de plantas cobertas de poeira, lá se vão as dunas e vêm chãos pedregosos, sempre aos solavancos, e lá surge agora mais um homem a conduzir dromedários (para onde é que ele irá?) e, depois, de novo, o deserto torna-se plano.

A manhã esvai-se entre as várias caras do deserto, incluindo a do surpreendente lago seco de Iriqui. Réda garante-nos que algures entre Setembro e Outubro há água por ali, e a fauna torna-se variada — gazelas, répteis e várias aves procuram as suas águas — mas neste momento não se vislumbra mais do que solo seco, que se desfaz em poeira entre os nossos dedos, numa extensão a perder de vista. Lá ao fundo, no horizonte, julgamos vislumbrar de facto água, com algumas ilhotas no meio. “É uma miragem”, garante o nosso acompanhante. Não há aves nem água, só o calor a enganar-nos nos olhos. E os dromedários, claro, que andam por ali a petiscar.

Depois do lago seco de Iriqui, o deserto torna-se cada vez mais rochoso. Há montanhas em redor, paredes de rocha que se erguem, imponentes, da terra, e uma menina que surge do nada, a correr em direcção aos automóveis. “São nómadas”, explica Mohammed, antes de parar. A miúda aproxima-se, vinda de um conjunto de trapos coloridos, que se percebe serem tendas, a algumas dezenas de metros de distância. Há galinhas junto ao pequeno acampamento, mas elas não seguem a criança, nem a rapariga que a persegue, de cabeça coberta. As duas meninas aproximam-se, sem receio, deixam-se fotografar e recebem, de braços abertos, o pacote de bolachas e as garrafas de água que um dos motoristas lhes oferece. Logo a seguir, partem de novo, para a sombra da tenda decrépita.

Para nós, o deserto está quase a terminar. Mais uns quilómetros no caminho sem estradas e começamos a avistar, ao longe, uma povoação pintada de rosa. Foum Zguid. A povoação está já ali, à mão de semear, e é mesmo junto à sua fronteira que o nosso “camelo japonês” abandona o solo pedregoso e irregular para repousar, sereno, sobre uma estrada asfaltada. Na verdade, o deserto continua a estar presente na paisagem que nos acompanha e continuará a acompanhar até Ouarzazate, mas a sua solidão, o horizonte sem barreiras e o seu silêncio ficaram, definitivamente, para trás. E o instante em que o abandonamos e pisamos aquela estrada de asfalto é o momento em que começamos a sentir saudades dele.

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Corridas de dromedários no meio do povo

Os dromedários descem a rua para onde todas a pessoas de M’hamid El Ghizlane se parecem dirigir. Lá ao fundo, já só há areia e pedras. Qualquer curto percurso para fora do centro da comunidade do Sul de Marrocos tem o mesmo resultado — o deserto a entrar-nos pelos olhos e pelo corpo dentro. Mas, dizíamos, os dromedários descem a rua num trote elegante, quase vaidoso, conduzidos por homens vestidos de azul ou branco. Descem a rua e, depois, sobem a rua, desaparecendo do nosso campo de visão. Nós, como todos os que nos rodeiam (turistas estrangeiros, homens, crianças e mulheres locais, elas sempre a esconder os rostos atrás das vestes e a acenar, efusivamente, negando ser fotografadas), procuramos arranjar um lugar para assistir a um dos acontecimentos mais esperados daquele que é o segundo dos três dias do Festival Internacional dos Nómadas — a corrida de dromedários.

Sentamo-nos num pequeno muro, costas encostadas a um gradeamento, e observamos a confusão. Alguns polícias tentam manter as pessoas afastadas daquela que é a designada pista da corrida, uma extensão arenosa que corre paralela à estrada, mas a tarefa não é fácil. Há sempre mais pessoas a chegar, a hora marcada para a corrida já passou há muito e os dromedários ainda não regressaram do seu destino desconhecido, lá para o cimo da rua, em direcção ao centro da aldeia.

O Festival Internacional Nómada comemorou, este ano, o décimo aniversário e vai já no segundo dia desta edição dedicada à Água. Durante todo o fim-de-semana, há barracas pontiagudas, no centro de M’hamid, oferecendo os produtos da região — tâmaras, muitas tâmaras, produtos à base de argão ou de açafrão. À noite desfilam músicos de vários países, enchendo o ar de sons berberes e não só, mas o momento alto é sábado à tarde, quando todos querem ver os dromedários correr e os homens defrontarem-se numa partida de hóquei na areia.

Enquanto os dromedários não reaparecem, são os jogadores de hóquei que chegam, apinhados nas traseiras de uma carrinha. Fazem uma paragem triunfal, são recebidos com animação e todos os seguem para o campo (junto à pista de corrida, do lado de lá do gradeamento). Já não há corrida? O jogo vai ser primeiro? Noureddine Bougrab chega, imponente, com o telemóvel numa mão e a túnica a esvoaçar à sua volta. É ele o fundador do festival, é ele que manda parar o aquecimento dos jogadores porque, agora sim, vêm aí os dromedários e o público deve regressar à estrada para assistir à prova.

A corrida é caótica. Não se vê a linha de partida nem de chegada. Não se ouve qualquer som que indique que os dromedários já correm, mas a verdade é que eles já aí vêm. Trazem passo de corrida, mas optaram pela estrada em vez da pista de areia e procuram espaço para continuar a avançar entre a multidão. Um dos animais, desnorteado, decide correr em ziguezague e dirige-se, de boca aberta e língua pendente, um monstro alto de muitos quilos, para todos os que nos encontramos colados ao gradeamento, sem hipótese de fuga. As mulheres começam a fazer um ruído característico, de muita língua e garganta, entre gritinhos expectantes, e um homem agita os braços, colocando-se em frente ao animal desvairado, obrigando-o, finalmente, a desviar-se da multidão, desaparecendo rua acima. Ficam as gargalhadas, muitas gargalhadas.

A corrida, que nem sabíamos que já tinha começado, passou por nós a alta velocidade e terminou fora da vista dos curiosos, sem sabermos quem foi o vencedor (se é que houve vencedor). Os risos perseguem os curiosos que ainda comentam a maluquice daqueles minutos, enquanto já se encaminham para o areal onde se irá disputar o hóquei tradicional dos nómadas.


Regresso às origens

Todos os anos, em Março, M’hamid é o palco do festival que procura preservar e divulgar a cultura nómada. Noureddine, ele próprio descendente de uma família nómada, é o homem por trás da ideia. “Os nómadas precisavam de um festival que fale deles”, diz, numa conferência de imprensa improvisada, mil vezes interrompida pelo toque do telemóvel. Da pergunta “Porque não fazer um festival?” passou-se à concretização de um evento que procura manter vivas tradições que, de outra forma, estavam em risco de desaparecer. Porque nómadas, em Marrocos, já quase não há. A seca e a escolarização das crianças empurrou-os para o sedentarismo e, com essa nova forma de vida, as tradições milenares começaram a esboroar-se. “O festival pretende salvaguardar o que podemos desta cultura ancestral, de um modo de vida que está a desaparecer”, defende Noureddine, sem esconder que há também uma clara intenção de divulgar o Sul de Marrocos como um destino turístico, associado ao festival. “Temos um enorme potencial com os oásis, os kasbah, as dunas, os trekkings, os passeios de dromedário e os produtos típicos... Os nómadas estavam no coração do mundo, eram um símbolo de cruzamento de culturas, mas se não fazíamos algo rapidamente para preservar as suas tradições, o seu savoir faire, podia ter-se perdido tudo”, diz.

Hoje, garante Noureddine, tradições como o hóquei na areia, que “há 30 anos tinha praticamente desaparecido”, começam já a regressar aos hábitos dos povos do Sul. O pão de areia voltou a ser produzido e ser de origem nómada já não é mal visto. “Na década de 1990 havia uma grande ocidentalização de todos, hoje há um regresso às origens, o recuperar de tradições. O festival é visto com orgulho. Sinto que, hoje, os jovens não são obrigados à ocidentalização, como eram há uns anos. Hoje podem escolher”, diz.

A mescla de culturas vislumbra-se nas calças de ganga que espreitam por baixo das túnicas brancas e azuis dos jogadores de hóquei. Empunhando pedaços de madeira, os homens batem na bola feita de fio negro (e às vezes acertam nos pés descalços), levantando areia e o entusiasmo do público, enquanto se defrontam. O resultado é de 3-0 para os azuis. Não se sabe quanto tempo durou o jogo ou quem determina que está na hora de ele terminar, mas ao fim de vários minutos, quando a bola já se começa a desfazer, a festa acaba numa roda composta pelos jogadores das duas equipas que, ajoelhados na areia, entoam cânticos, embalados por palmas. Em breve estão rodeados por dezenas de espectadores, que se deixam seduzir por aquele entoar hipnótico por muito tempo.

O sol começa a pôr-se quando a celebração termina e, no palco, já se ensaia para o espectáculo da noite. Durante os três dias do festival houve sons de vários cantos do mundo a passar por ali — a música tuaregue dos Nabil Baly Othmani (Argélia), o teatro dançado de Géraldine Nalini (Índia), a voz europeia de Remedios Cortés (Espanha), os cantos femininos de Mint Aichata (Marrocos) ou a sonoridade única dos Atri N’Assouf, mistura de músicos tuaregues e franceses.

A aldeia em peso parece deslocar-se para junto do palco durante a noite. Alguns homens não resistem a saltar para a frente do palco, dançando, em movimentos lentos ou saltitantes, e sendo afastados, de forma quase carinhosa, pela equipa técnica, que não quer distracções entre o palco e o público. Na manhã seguinte, M’hamid está, de novo, na sua pacatez habitual. Os nómadas podem ter desaparecido quase completamente do país — há quem diga que já não existem, há quem defenda que passaram de quase 50% da população para menos de 2% —, mas, num instante, o seu estilo de vida é recriado. “Acreditem que os nómadas que se sedentarizaram têm a nostalgia da vida que perderam, sentem a sua falta a toda a hora e, se pudessem, regressavam imediatamente”, diz Noureddine Bougrab.

Nas imediações de M’hamid, depois de um passeio de dromedário, somos deixados junto a uma tenda onde se prepara o tradicional chá do deserto, com muita espuma. A cerimónia de preparação, explica Noureddine, deve ser prolongada o mais possível, porque era durante esses momentos de pausa entre as tribos do deserto que se trocavam informações preciosas. Que os nómadas partilhavam experiências e conhecimentos. Enquanto o chá é vertido num copo e depois noutro, e ainda noutro, criando mais e mais espuma, chegam à tenda dois antigos nómadas, acompanhados por familiares. Dois velhos de faces enrugadas que carregam a nostalgia de que fala o director do festival. Hammadi Wed Hmidana, o poeta da sua tribo, o guardador de histórias, e Lahcen Weld Lahcen, o chefe do grupo. Ali, a poucas centenas de metros da M’hamid, estão apenas a encenar o que já foi a sua vida. Os poemas de Hmidana estão confinados “à nostalgia e tudo o que desapareceu”. “É como se revivesse toda a vida que passou”, traduz Noredinne.

Ele deve estar já a tratar do festival do próximo ano, que há-de regressar em Março, como todos os anos. Quer mais estrangeiros ali, a visitar o Sul, a conhecer e, se possível, a reavivar a cultura nómada. Porque ser nómada, diz, “é um direito”. Se ainda existe quem o queira assumir por inteiro no deserto marroquino é o que falta saber.


O Atlas não é para meninos

Os planos, lá diz o ditado, são feitos para serem quebrados e, às vezes, quando isso acontece, o resultado é uma bela surpresa. O nosso plano, o plano de viagem, neste caso, dizia que iríamos de avião de Lisboa a Casablanca e daqui até Ouarzazate. Mas, dois dias antes do voo, descobrimos que já não será assim. De Casablanca, afinal, voaremos até Marraquexe e, daqui, o caminho será feito por terra, atravessando toda a zona central do país, até M’hamid, no Sul.

Isto significa que iremos cruzar as montanhas do Atlas que, nesta altura do ano, têm cumes longínquos cobertos de neve. Até chegarmos lá cima, onde o vento corta e a paisagem é completamente lunar, de pedra negra, solta da rocha, a atapetar tudo, cruzamos planícies de terra vermelha, colinas verdes onde nos dizem que se pratica caça à lebre e campos cobertos de cactos e oliveiras.

As estradas que serpenteiam montanha acima e abaixo não são para estômagos fracos. Mesmo quem não enjoa em viagens de carro tem boas probabilidades de enjoar aqui, onde as curvas parecem não ter fim. O cenário cobre-se de verdadeiros desfiladeiros, montanhas rochosas, aldeias que se confundem na paisagem porque a cor das suas casas é igual à cor da terra.

As montanhas parecem não ter fim, a estrada parece que nunca mais terá uma recta, os vendedores de rosas do deserto aparecem em sítios inesperados, abandonados, longe de tudo. Depois, chegamos a Agdz, trocamos a paisagem lunar dos altos cumes pelas planícies poeirentas a anunciar o deserto e deliciamo-nos com os pratos abundantes que nos servem no kasbah Caid Ali. A construção fortificada, que ainda pertence à família dos irmãos Mbarek e Azis Attelkatd, anda a ser recuperada há mais de dez anos, ao ritmo de um mês de trabalho por ano. Os kasbah encontram-se um pouco por todo o lado em Marrocos, em qualquer lugar onde se realizassem importantes trocas comerciais. São construções fortificadas, que pertenciam à família dominante, e que costumam ter, no interior das suas muralhas, os ksar, espécie de aldeia onde viviam as pessoas que procuravam a protecção dos donos do kasbah.

Um dos mais famosos, e classificado pela UNESCO como Património da Humanidade desde 2009, é o kasbah de Ait-Ben-Haddou, nas imediações de Ouarzazate, cuja recuperação se deve em grande medida à indústria cinematográfica. Isto porque Ouarzazate é a capital africana do cinema, a Hollywood de Marrocos, e Ait Benhadou o cenário de filmes como Gladiador, A Jóia do Nilo, Indiana Jones e inúmeras produções relacionadas com a Bíblia.

Com o aproximar do pôr do sol, Ait-Ben-Haddou fica cor-de-rosa e a porta de Mohammed Jamal Edding, descendente dos antigos donos do kasbah, abre-se para oferecer o sempre bem-vindo chá, acompanhado de amêndoas. Há uma cegonha que regressa ao ninho feito sobre uma das torres da fortificação e o chamamento para a oração invade o ar. Podia ser uma imagem de um filme. Perfeito.

Entre Ouarzazate e M’hamid fica Agdz e o vale do Drâa — que dota a paisagem de uma espinha verde, feita de palmeiras, que se estende por dezenas de quilómetros —, ladeado por terrenos inóspitos. É nas suas imediações que fica Zagora e, alguns quilómetros depois, Tamegroute, terra de ceramistas, que produzem aqui a famosa louça verde, característica da região. É também aqui, num edifício simples de estantes metálicas, que se podem espreitar verdadeiras raridades na biblioteca islâmica que congrega quatro mil volumes de obras tão antigas como o século XIII e que vão da astrologia à medicina e da poesia ao Corão.

Das montanhas aos kasbah e do deserto aos óasis, a paisagem só não muda nos burros, que parecem estar em todo o lado, carregando homens, mulheres e crianças. Nos homens de vestes compridas e nas mulheres que escondem o rosto, fugindo de uma atenção indesejada. Se, já agora, se deparar com o que aparenta ser um antigo posto de gasolina transplantado do Oeste norte-americano, não se admire, isso também é Marrocos. É um cenário de um filme, deixado para trás para diversão dos turistas e um meio de os locais conseguirem alguns trocos, mas não deixa de ser Marrocos.

 

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Como ir
Voamos com a Royal Air Maroc, de Lisboa para Casablanca, e daqui para Marraquexe. O resto do percurso foi feito por terra, mas havia também a possibilidade de se fazer a ligação entre Casablanca e Ouarzazate, encurtando significativamente o tempo de viagem (mas perdendo o atravessamento das montanhas Atlas). O tempo de viagem entre Lisboa e Casablanca é de cerca de uma hora (não há diferença horária) e o preço (ida e volta) ronda os 280 euros. A TAP também faz esta ligação, por preços similares.

Onde Dormir
Em M’hamid El Ghizlane ficámos no hotel Kasbah Azalay, com espaços amplos e uma bela piscina interior de águas geladas. Os quartos são grandes, com chuveiros em espaços cobertos de azulejos (verifique se a água aquece e, caso não aconteça, avise a recepção para resolverem o assunto) e acorda-se ao som dos pássaros que andam pelas palmeiras em redor. Os preços rondam os 90 euros, em quarto duplo.

A experiência de dormir num bivouac pode ser comprada no próprio hotel ou nos agentes de turismo, em Marraquexe, Ouarzazate ou mesmo em M’hamid. Procure informar-se, porque a qualidade do serviço pode variar. Uma noite no deserto, junto às grandes dunas de Chegaga, pode custar-lhe entre 110 a 140 euros por pessoa.

Um pouco por todo o país, as antigas mansões que pertenciam às famílias mais endinheiradas de Marrocos (fossem familiares reais ou grandes comerciantes) estão a ser transformadas em hotéis. Experimentámos o Hotel Riad de Ouarzazarte e não nos desiludimos. As áreas comuns, cobertas de azulejo, são fabulosas e o sumo de laranja natural absolutamente divinal.

Ainda em Ouarzazarte, a cinco quilómetros do centro, não deixe de passar pelo kasbah Dar Daïf, um emaranhado de salas, quartos e escadas, com pátios interiores e plantas por todo o lado. É um hotel, restaurante e ponto de partida para percursos por montanhas, desertos e praias. Tudo graças ao casal Zineb (marroquina) e Jean-Pierre (francês), que restauraram o edifício e o transformaram num exemplo premiado do turismo sustentável.

 

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A Fugas viajou a convite do Turismo de Marrocos

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