É um dos pratos mais afamados da Galiza, o polvo à galega – tanto que se tornou numa espécie de símbolo da gastronomia espanhola. Logo, esperávamos cruzar-nos com polvo, sim, à mesa — esse pulpo a la féria, cozido e polvilhado de pimentão; colocámos até a hipótese de o ver no aquário. Na água ou na mesa. Não em terra, num troço mais recôndito do Passeio Marítimo corunhês, aos pés do Monte San Pedro, elevador panorâmico (cápsula transparente, tão futurista quanto lenta) à vista. Mas ele lá está, no muro, como se escapasse do mar, os longos tentáculos já na calçada, todo ele brilhante na sua miríade de mosaicos coloridos (a lembrar obras de Gaudí). Até agora não sabíamos da sua existência (foi inaugurado em 2004) e ficamos logo a saber que é um dos monumentos mais fotografados da Corunha – A Coruña. E isto quer dizer muito na “cidade de cristal”, que possui o único farol romano ainda em actividade.
Estas sim, as galerias envidraçadas e a Torre de Hércules, são dois cartões-de-visita da cidade que reflectem, à sua maneira, a sua alma aquática e salgada pelo Atlântico, que nunca sai da vista e que se acompanha, lado a lado, em passeio marítimo que por agora tem 13 quilómetros mas quer chegar mais longe. É nele que passamos do porto para a baía, que quando a luz está certa brilha em azul-turquesa que nada tem a invejar às Caraíbas; é nele que percorremos dois milénios de história, da Torre de Hércules ao castelo de San Anton, do Domus às portas sobreviventes da cidade muralhada. Para descobrirmos que, afinal, estamos a algumas centenas de metros do sítio de onde partimos. É o sortilégio da cidade que é uma península, tão estreita que durante muito tempo o istmo foi uma frágil faixa de areia. É o enigma de uma geografia que facilmente confunde o visitante de primeira (e segunda…) viagem e que contrasta com a espontaneidade com que as suas ruas nos acolhem os passos, guiando-nos para praças e jardins. E nos surpreendem com um conjunto arquitectónico que reúne o românico, o gótico, o barroco, o modernismo, como um espelho límpido onde a história e as transformações sociais se reflectem. Porque de terra ferozmente feudal à cidade da burguesia florescente e paradigma do milagre económico de Espanha muitos séculos passaram — e muitos ficaram para trás, mesmo antes de celtas e romanos terem plantado raízes de uma cultura que nem o relativo abandono apagou.
A cidade que, como Fénix, renasceu quase de cinzas, ultrapassou a voragem dos tempos graciosamente e nem a longa sombra de Santiago de Compostela lhe apaga o brilho. Entre paços nobres e mansões burguesas, edifícios medievais, modernistas e vanguardistas exibe-se durante o dia como um centro comercial ao ar livre e diverte-se à noite, em ruas estreitas de bares, cafetarias, clubes, tabernas e restaurantes, ou à beira-água em lounges cosmopolitas. Constante: o cheiro a maresia, o som agudo das gaivotas, a visão do mar — uma sinestesia, esta cidade.
Das lendas
Este é o local onde Hércules cumpriu um dos seus 12 trabalhos e de onde partiu a conquista da Irlanda. Porém, perdoem-nos, continuamos obcecados com a sua geografia líquida. E, por isso, subimos já ao Monte San Pedro, sem dúvida o melhor miradouro da cidade e da zona envolvente — e não falamos sequer do edifício que o coroa: cúpula redonda que ao longe parece um ovni pousado, ou, mais terrenamente, um planetário, mas é um interactivo miradouro 360º. Não precisamos de entrar para estarmos de caras com o Atlântico, hoje oferecendo-se suave em azul penetrante — não muito longe, transforma as paisagens galegas na Costa da Morte e marca o fim do mundo em Finisterra; para nascente, embrenha-se terra adentro nesta região das Rias Altas ou embate em penhascos que desenham uma costa caprichosa a perder-se no horizonte; aqui perto, deixa-se habitar por ilhotas sobrevoadas por passarada. Com tanta água à volta, estamos no meio do verde veemente do jardim que ocupa o que já foi uma área militar de acesso limitado e é agora um parque eminentemente familiar — os relvados são imensos, ondulantes como um campo de golfe, com parque infantil, lago com patos e labirinto inglês; com trincheiras, bunkers e peças de artilharia que antes defendiam a cidade e agora entretêm-na.
A baía de Orzán ainda espera veraneantes neste final de Maio frio e na outra ponta ergue-se a Torre de Hércules — por trás dela seguimos o lento movimento de um navio cruzeiro em direcção ao mar, vindo do porto abrigado na ria da Corunha. A tranquilidade do “postal” torna as histórias dos ventos de 120 km/h e de tempestades com ondas de mais de 19 metros quase mitos — mas são bem reais. Tanto que são uma das razões que podem explicar o mistério da Torre de Hércules, que, quase dois mil anos depois da construção, ainda se mantém em funcionamento — esta sempre foi zona complicada para a navegação e um farol um bem de primeira necessidade. Este até esteve abandonado e viu algumas das pedras que o constituíam desviadas para construções militares, mas foi recuperado, ganhou nova cara no século XVIII e manteve o núcleo original — romano, da autoria de um engenheiro de Coimbra, Caio Servio Lupo, e, desde 2009, Património da Humanidade.
O ar está cheio de vento e do som das gaitas-de-foles quando nos aproximamos para conquistar os 242 degraus que nos contemplam no farol romano com capa neoclássica. Cruzamo-nos com Mil Hespán que agora faz visitas guiadas e, claro, apresenta Breogan, que as lendas dizem ter sido o fundador da cidade celta, onde construiu uma torre. Do seu alto, o seu filho, Ith, terá visto terra no horizonte e partiu à conquista dela, a Irlanda. Foi morto, mas o seu filho Mil voltou e conseguiu submeter a Irlanda, como conta o irlandês Livro das Invasões. Contudo, a sua estátua agora está na base de uma torre que homenageia Hércules — outra lenda: diz-se que o herói veio aqui para derrotar o gigante Gerião e libertar o povo da sua tirania — lutaram durante três dias e, depois da vitória, Hércules corta-lhe a cabeça e enterra-a junto do mar com uma torre-farol para celebrar. Duas ideias de Europa encontram-se aqui, portanto, como sublinha o nosso guia: a clássica (greco-romana) e a celta. A sua síntese encontra-se no parque escultórico, 47 hectares aos pés da torre, que se desdobra em obras que desenham as origens mitológicas do lugar e as ligações ao mar do povo galego, enquadradas em elementos pré-existentes no local, como os mais antigos testemunhos da ocupação da península, no Monte dos Bicos.
ADN feminino
A Torre de Hércules pode ser presença tutelar na Corunha desde os tempos em que a zona se transformava em ilha na maré alta, porém esta é uma cidade de ADN feminino, ouvimos. A lenda diz que o primeiro habitante foi uma mulher, Crunia, por quem Hércules se apaixonou — e que deu nome à cidade reconstruída e repovoada por Alfonso IX no século XIII: as incursões contínuas de vikings e normandos a partir do século V levam a população a abandonar a Brigantium romana e a refugiar-se no interior, O Burgo, hoje parte da cidade; e a sua personagem mais celebrada é Maria Pita, a mulher que derrotou Francis Drake (nesta altura já sir e não pirata, que tentava conquistar a Galiza para incentivar a rebelião portuguesa contra a Espanha de Filipe II, Filipe I de Portugal) e que, diz-se, tinha problemas com a justiça: teria “despachado” quatro maridos, com chá de teixo — o quinto morreu nas lutas.
Com a Virgem do Rosário como padroeira, os contornos da cidade também têm a sinuosidade do corpo feminino e regressamos ao Passeio Marítimo para o perceber: começando na Avenida da Marina com as suas galerias de vidro oitocentistas a marginar o velho porto, contornando a cidade medieval no topo e deslizando pelo Forte San Antón, antes de dar de caras com o mar aberto, rasando a Torre de Hércules, o Aquarium Finisterrae (um dos mais importantes do país), o Domus (museu dedicado ao Homem que daqui se vê como uma vela de pedra inflada de vento), dobrando a baía de Orzán, tergiversando o estádio Riazor até ao Museu de Ciência e Tecnologia (MUCYT) e descansando no elevador panorâmico do Monte de San Pedro. Em linha recta, o porto e a baía de Orzán não estão separados mais de 500 metros — aí temos a cintura.
À entrada dessa “cintura”, deixando a cidade velha para trás, está a praça que homenageia a heroína. A estátua de Maria Pita, em bronze, hoje rodeada de garrafas de cervejas, em frente ao Palácio Municipal, assinala o centro cívico da cidade — a praça faz as vezes da plaza mayor espanhola, mas não é totalmente fechada, o edifício do Ayuntamiento, monumental em estilo neoclássico com piscar de olho ao modernismo (concluído em 1912), é uma pequena ilha no topo da praça. As arcadas dos edifícios em redor albergam cafés, restaurantes e outro comércio, que transbordam em esplanadas, assegurando que a animação está sempre presente; mas neste domingo de manhã é um vislumbre da velha Espanha que vemos entrar na praça: a banda filarmónica a rigor — e à galega, com gaitas-de-foles — vem seguida de elementos de uma confraria, com as suas capas brancas solenes, e a procissão termina com um grupo de mulheres, mantilla na cabeça e pose orgulhosa.
O triunfo da burguesia
Não conseguimos descobrir o motivo — “algo religioso”, atreve-se o guia — mas mais facilmente podemos imaginar aqueles edifícios em volta com as damas a observar discretamente o que se passava na praça. Quando entramos, pela Porta Real, junto ao velho porto, pressentimos algo de afrancesado nas construções neoclássicas, dissipado depois pelas galerias nos andares mais altos. Essa é a identidade corunhesa e está bem patente no edifício que faz esquina nessa porta e que impressiona à primeira vista — mesmo não tendo visto o nascer do sol a reflectir-se nas suas galerias (o que lhe vale o nome, lemos depois, de el diente de oro), caixas brancas envidraçadas em varandas, cada qual com a sua decoração. Este edifício tem a fachada principal para a Praça Maria Pita, neoclássica como o resto da praça, e é nas traseiras que se exibem as galerias.
As traseiras são a Avenida Marina, de que se diz ser o maior conjunto de galerias do mundo — e se já foi a zona mais pobre da cidade agora é mais afluente. Nesta zona a abraçar o velho porto viviam os pescadores que começaram a utilizar as galerias por um motivo puramente prático e económico (a fachada envidraçada protegia das chuvas e ao mesmo tempo retinha o calor) e durante muito tempo foram proibidas nas fachadas dos edifícios.
A situação começou a mudar no século XIX, quando a cidade também se alarga e se faz moderna, abrindo-se em ruas e praças ladeadas de edifícios modernistas construídos para glória da nova ordem social, com a burguesia na liderança. Ainda hoje os corunheses incham de orgulho perante as máquinas fotográficas em punho em frente da Casa Arambillet.
- Es bonita, no?
- Muito.
- Es preciosa.
Estamos a mirar o edifício, na Praza de Lugo, fachada branca e delgada, caixilhos bordeaux e ferro forjado. É um sopro elegante, que se distribui em cinco andares profusamente decorados. Não sabíamos que é a “casa do modernismo corunhês” — está para a Corunha como a Casa Batló está para Barcelona: com as devidas diferenças, desde logo a inspiração na tradição nórdica, que lhe dá um ar mais frio e geométrico — mas asseguramos que não passa despercebida. No rés-do-chão ultimam-se os preparativos para a abertura de um café, o primeiro andar é uma varanda, e depois há revisitações das famosas galerias corunhesas — não na até então (1912) madeira tradicional, mas em cimento. É uma das características comuns aos arquitectos que na época revolucionaram o rosto da cidade: recuperar elementos tradicionais e dar-lhes outro destaque.
Tradicional mas de rosto mudado é o mercado mesmo em frente, que ocupa o centro da Plaza de Lugo: construído no início do século XX em ferro, agora é um edifício moderno com galerias comerciais na parte de fora — há uma Fnac aí, uma série de lojas do grupo Inditex... Na Fruteria Maria, Carlos mostra-nos um dossier de artigos de jornal com décadas de histórias sobre o mercado — a mãe, que veio para a A Coruña em 1936, passou aqui “60 anos de trabalho, amor e resistência” e ele muitos desses anos com ela, tendo visto as três encarnações dele, incluindo a original.
Prefere falar do mercado ao invés das colegas do rés-do-chão, a peixaria, onde o coração hoje bate forte pelo Deportivo da Corunha, que joga a permanência na primeira divisão espanhola com a Real Sociedad. “Vamos Depor! A por ellos!”, “Ahora más que nunca: Fuerza Depor!”, “Si, se puede” lê-se em cartazes; bandeiras, cachecóis estendidos por todo o andar; as vendedoras passam de camisolas, chapéus, gorros do clube — o peixe e o marisco, “o melhor do mundo! Bueno, bonito y barato: los tres b”, asseguram-nos, quase passam despercebidos. “Se perdemos é terrível. Esperamos sempre pela última!”
Nem a Estrella Galicia, a cerveja regional, vestida com o azul e branco do clube e slogan auspicioso – Sentimiento de primera –, ajudará o “Depor”, que desce de divisão em casa, no Estádio do Riazor. Nessa altura, o violino de um músico de rua também parece lamentar o desaire — que será apagado pelas multidões que saem de copas y cañas e mesmo com cachecóis no pescoço não deixam de ajudar à animação em onda que toma conta de partes da cidade quando anoitece.
Até esse momento, a cidade palpita de esperança e nós percorremos as suas ruas “modernas” (para além da Calle Ferrol, que até há poucas décadas marcava os limites da urbe), prédios vulgares, muito comércio, algumas lojas fechadas e a loja inicial do império Inditex. É uma Zara, ainda hoje a marca mais emblemática do grupo de Amancio Ortega, que na Corunha se fez o terceiro homem mais rico do mundo, numa esquina da Calle Juan Flórez. Estamos a caminho do Palácio da Ópera, que é o mesmo que dizer à base do Jardim de Santa Margarita — a pedra nua do que foi uma pedreira agora com quedas de água a tombar em pequenos lagos abertos aos pés da parede. O edifício, que já foi o palácio de congressos da cidade, está como que encaixado nessa parede, em estilo neoclássico revisitado: enormes colunas na fachada principal e a toda a volta.
Passado e futuro
É como uma pequena ilha de tranquilidade, o jardim de San Carlos, varanda da cidade velha — e alta. Num cotovelo da península virado à ria, entramos como se num mundo à parte, este que ainda está protegido pelos muros da antiga fortaleza, recolhido sob copas largas das árvores a protegerem este pequeno jardim romântico que alberga os restos de um herói que os poetas românticos ingleses (e até a poeta galega Rosalía de Castro) não se cansaram de exaltar — Sir John Moore, morto na Batalha de Etelviña, durante a Guerra Peninsular. Temos vista para o castelo San Antón, que alberga o Museu Militar, em zona que já foi de ilhas, e para o porto que se fez rico com o comércio para as Américas e que se foi conquistando ao mar desde os anos 1950.
Estamos na “cidade velha”, o ponto mais alto da cidade, um dédalo de ruas que subimos e descemos em tranquilidade inesperada. É domingo, o que pode ajudar, e as esplanadas começam apenas agora a abrir. O silêncio é quebrado, violentamente, nos arredores da Praça Azcárraga, com os veículos de limpeza, sinal das noites, que podem ser agitadas, como o sabem ser nas zonas históricas espanhola. É a praça principal da cidade velha, antigo local de mercados e dos paços do concelho, além da sede da capitania, símbolo da importância da urbe. Árvores, canteiros e fonte no centro do espaço rectangular, que exibe na sua orla o segundo edifício mais antigo da cidade, a Igreja de Santiago, do século XII, onde as autoridades municipais se reuniam nos séculos XIV e XV.
Outras pequenas pracetas se descobrem entre igrejas e conventos, como as de Santo Domingo e de Santa Bárbara, esta um quadrado de pedra à sombra de copas floridas de árvores flanqueadas pela igreja e muros do convento medieval (ainda de clausura); a Igreja de Santa Maria, românica de transição para o gótico, que foi a principal da cidade e por isso ampliada no século XIX com o consequente derrube de casas antigas — agora, edifícios oitocentistas mesclam-se entre os antigos.
Callejar pela cidade velha é também ser-se surpreendido por assomos barrocos entre a esquadria medieval, em igrejas ou na Casa da Moeda, por exemplo, onde estes se assumem assimétricos em interacção com a torre; ou por uma galeria inesperadamente num rés-do-chão (a regra é começarem no primeiro andar) – é, provavelmente, uma das mais antigas e, claro, mais especiais: uma explicação, conta o nosso guia, é que seria o castelo da proa de um dos navios que vinha à Corunha para reparação reaproveitado pela família do operário.
Sinais da vitalidade são os espaços de co-working que se anunciam nos edifícios antigos ou as lojas alternativas que espreitamos. Uma pulsão mais subterrânea do que aquela que nos últimos anos deu à Corunha uma série de espaços museológicos de carácter científico e artístico, que se afirmam na cidade como marcos arquitectónicos e na região como centro de conhecimento. Nós visitámos o Museu Nacional de Ciência e Tecnologia, o MUNCYT, no edifício Prisma de Cristal, um cubo de vidro que é o invólucro para uma árvore de betão que faz a divisão dos diferentes espaços dos museus e que recebeu o Prémio Nacional de Arquitectura Jovem. Aberto há um ano, alberga mais de 15 mil objectos, que acompanham as invenções científicas e tecnológicas dos últimos cinco séculos, com um espólio tão ecléctico que aqui convivem um rádio astronómico do século XVI com Gillettes, aceleradores de partículas com torradeiras — destaca-se parte de um Boeing 747, durante 40 anos o “gigante dos céus”, que tem a curiosidade de ter transportado o quadro Guernica de volta a Espanha, depois do exílio imposto por Picasso enquanto durasse a ditadura espanhola.
E se falamos em passado e futuro é impossível não mencionar a visão proporcionada pelo vanguardista edifício da Fundação Luis Seoane, construído nas margens da cidade velha, perto do Museu Militar, num antigo quartel militar — além do carácter marítimo, a Corunha sempre teve funções militares (“a península era fácil de defender”) e vemos muitos edifícios na parte antiga que agora têm novas funções. De granito e vidro, a sua estrutura é a de um grande espigueiro galego que abraça o que foi o antigo Pátio de Armas.
Regresso ao mar
Voltamos ao início. Não ao polvo, que chegámos a encontrar no prato; à água, do mar e da ria, que impregna a ciudad herculina. A que se deixou domar no porto da cidade — 90% artificial, resultado do crescimento da cidade que foi conquistando algum terreno ao mar de tal forma que os edifícios das galerias na Avenida Marina ainda têm as marcas do local onde os barcos se prendiam — e a que vai e vem até às praias. Na Corunha, as praias urbanas mais conhecidas estão dispostas em torno da sua baía, uma “concha” em areal contíguo um “andar” abaixo do Passeio Marítimo; por acaso, do cimo da Torre de Hércules, descobrimos um daqueles segredos que só aos corunheses pertencem — a pequena enseada entre escarpas que é a praia das Lapas.
Nesta terra de marinheiros de barcos vermelhos — a cor tradicional, que permitia serem vistos em região de tempestades fortes —, a mesma cor que pinta os candeeiros de ferro forjado que bordam o Passeio Marítimo, o mar entranha-se também em nós. Pelos olhos, pelo nariz, pelos ouvidos. Porém, não sabíamos que a Corunha tinha o “som do mar mais bonito do mundo”. Pelo menos em 2009, quando ganhou o concurso organizado pela cidade polaca de Slupsk, com uma gravação de na praia de Orzán, onde se ouve o ritmo das ondas, os gritos das gaivotas. Mas não surpreende: é à beira-mar que fala mais alto esta cidade líquida e salgada. E é aí que ela se impregna em nós.
Picasso: “período corunhês”
O prédio da Calle Payo Gómez é anódino e a indicação quase passa despercebida; a escadaria de madeira, elíptica, já viu melhores dias. Subimos até ao segundo andar para uma viagem ao passado: o típico apartamento burguês de final de oitocentos. Com uma particularidade: aqui viveu Picasso, quando assinava como P. Ruiz e fez a sua primeira exposição, numa loja de móveis: Continúe así y no dude que alcanzará días de gloria, lê-se numa página do La Voz de Galicia, em exibição. Foi em 1895, Picasso tinha 13 anos e pouco tempo depois a família trocaria a Corunha, onde permaneceu quatro anos, por Barcelona.
Durante esses anos, Picasso pintou muitas paisagens da cidade — a inevitável Torre de Hércules (à qual chamava “torre de caramelo”) — e muitas cenas quotidianas, incluindo mendigos, “a quem dava pão e moedas”; começou os retratos a óleo e desenhou caricaturas para a revista La Coruña.
Há apenas dois originais de Picasso (e vários manuscritos) na casa museu corunhesa, dois desenhos em exposição na sala, a que se juntam algumas cópias. Mas tal não é revelador da importância dos seus tempos na cidade — aqui perdeu a irmã mais nova, Conchita, aqui pintou 72 obras (a maioria em Barcelona), aqui perdeu os traços juvenis para se fazer artista. A casa é apenas um dos pontos do périplo onde se pode compor o “retrato do artista quando jovem”.
Indianos, Franco e Che Guevara
Uma tapeçaria aquática rodeia a Corunha: sobejam rias — andaremos entre as da Corunha e Betanzos — e rios que, por caprichos da natureza, tornaram obsoletas algumas das povoações ribeirinhas. Depois de um dia que parecia a caminho do Inverno, hoje estamos a caminho de Verão e os corunheses a caminho das praias.
Nós vislumbramo-los enquanto percorremos enseadas tranquilas, com os azuis em concorrência, a desvendar caminhos da geografia caprichosa da área metropolitana corunhesa. Com surpresas como o maior retrato de Che Guevara fora de Cuba (numa rotunda em Oleiros); o pavilhão modernista (madeira e ferro) do início do século XX que foi um cinema na Corunha, testemunho do poder da burguesia, e em Sada é um café, restaurante e salão de chá; e o paço de Meirás, oferecido a Franco durante a Guerra Civil e que passou a ser, até à sua morte, a sua residência de Verão — só vemos por fora, passou a abrir ao público durante quatro dias por mês apenas desde Julho, depois de longo contencioso com a família do caudilho. Este não é o único paço na região — são cerca de 700, construídos entre os século XVI e XVIII; no entanto, a maior parte propriedade privada. O de Meirás até parece medieval, com torres e ameias, mas estas são adições do romantismo oitocentista.
De final de oitocentos e início de novecentos são as “casas dos indianos” que também polvilham estas paisagens rurais. São o equivalente às casas dos brasileiros em Portugal: residências de galegos que enriqueceram na América no século XIX e regressaram — nessa altura, nos países sul-americanos, todos os espanhóis eram conhecidos por “galegos”. São casas modernistas, com cores e decorações inesperadas, com jardins onde pontua sempre a inevitável palmeira.
Em Betanzos, a Galiza feudal e a Galiza “indiana” encontram-se: a cidade medieval, antigamente cercada por muralhas, coutada dos senhores de Andrade, expandiu-se no século XIX sob a tutela dos irmãos García Naveiro. O núcleo histórico da cidade, a parte mais alta — um antigo castro — é Conjunto Histórico-Artístico e constitui um dos mais impressionantes núcleos monumentais da Galiza. As suas ruelas, onde a vieira marca o Caminho de Santiago (inglês), igrejas e casas antigas compõem um cenário encantador, que se encontra bem reflectido no conjunto das igrejas de Santa María del Azougue e de São Francisco, ambas do século XIV, dois exemplares góticos em terreiro de pedra.
Fora das “muralhas”, a Praça Irmãos García Naveiro é agora o centro nevrálgico da cidade. Entre os edifícios, destaca-se a casa de Jesus García Naveiro. Arquitectura parisiense, facilmente poderia estar num boulevard, com a sua mansarda alta — alberga agora um café, Versalhes: Belle Époque na Galiza rural. Por toda a cidade, marcas da obra social e filantrópica dos dois irmãos que partiram da Galiza rumo a Buenos Aires aos 14 anos sem saberem ler nem escrever — escolas, asilos e, por exemplo, um jardim público, que foi o primeiro parque de diversões de Espanha: achavam que a educação era a melhor arma para todos, por isso fizeram aqui réplicas do mundo que conheceram para que as pessoas aprendessem passivamente. Entre o passeio dos imperadores de Roma e o dos reis de Espanha, marcavam-se encontros junto da pirâmide de Quéops ou dos Jardins Suspensos da Babilónia — era o Passeio do Passatempo, construído com os melhores materiais da altura (incluindo mármore de Carrara) e parcialmente destruído durante a Guerra Civil.
Como ir
De avião: A TAP voa de Lisboa para a Corunha com tarifas que começam nos 160€.
De carro: Do Porto à Corunha são menos de três horas de viagem. Seguir pela A3 até Valença e após a entrada em Espanha tomar a E1-AP9 em direcção a Pontevedra-Vigo. Depois de passar Vigo, continuar pela AP9.
Onde comer
Já são mais, mas continuam a ser o “Grupo dos Nove”, um colectivo de chefs galegos que reivindicam a vanguarda gastronómica sem perder de vista a tradição. Na cidade da Corunha, o restaurante Domus (no museu homónimo) e em Cambre, no A Estación, pode viajar por essa nova cozinha galega, que neste último merece o reconhecimento Michelin — uma estrela. Para um sabor mais tradicional, a Taberna O’ Secreto, na cidade, é uma instituição local.
A Estación.
Estrada da Estación, 51
15660 Cambre, A Coruña
Tel.: (+34) 981 67 69 11
www.nove.biz/es/a-estacion
Domus
C. Ángel Rebollo, s/n
15002 A Coruña
Tel.: (+34) 981 201 136
www.casapardo-domus.com
Taberna O’Secreto
C. Alameda n°18
15003 ,A Coruña
Tel: (+34) 981916010
www.tabernaosecreto.com
Onde dormir
Hesperia Finisterre
Paseo del Parrote, 2-4
15001 A Coruña
Tel.: (+34) 981 205 400; (+34) 902 570 368
www.hesperia.es
A Fugas viajou a convite da TAP e do Turismo da Corunha