Fugas - Viagens

A cidade líquida e salgada que é um passeio marítimo

Por Andreia Marques Pereira

Tem o único farol romano em actividade, lendas celtas, histórias de batalhas mil. Veste-se de medieval, modernista, contemporânea. Tem tantas caras quantas as que se podem reflectir nas suas famosas galerias, que valem à Corunha o epíteto de “cidade de cristal”. Mas todas elas olham o mesmo: o mar, que lhe enformou a geografia, lhe determinou a história e lhe moldou o carácter.

É um dos pratos mais afamados da Galiza, o polvo à galega – tanto que se tornou numa espécie de símbolo da gastronomia espanhola. Logo, esperávamos cruzar-nos com polvo, sim, à mesa — esse pulpo a la féria, cozido e polvilhado de pimentão; colocámos até a hipótese de o ver no aquário. Na água ou na mesa. Não em terra, num troço mais recôndito do Passeio Marítimo corunhês, aos pés do Monte San Pedro, elevador panorâmico (cápsula transparente, tão futurista quanto lenta) à vista. Mas ele lá está, no muro, como se escapasse do mar, os longos tentáculos já na calçada, todo ele brilhante na sua miríade de mosaicos coloridos (a lembrar obras de Gaudí). Até agora não sabíamos da sua existência (foi inaugurado em 2004) e ficamos logo a saber que é um dos monumentos mais fotografados da Corunha – A Coruña. E isto quer dizer muito na “cidade de cristal”, que possui o único farol romano ainda em actividade.

Estas sim, as galerias envidraçadas e a Torre de Hércules, são dois cartões-de-visita da cidade que reflectem, à sua maneira, a sua alma aquática e salgada pelo Atlântico, que nunca sai da vista e que se acompanha, lado a lado, em passeio marítimo que por agora tem 13 quilómetros mas quer chegar mais longe. É nele que passamos do porto para a baía, que quando a luz está certa brilha em azul-turquesa que nada tem a invejar às Caraíbas; é nele que percorremos dois milénios de história, da Torre de Hércules ao castelo de San Anton, do Domus às portas sobreviventes da cidade muralhada. Para descobrirmos que, afinal, estamos a algumas centenas de metros do sítio de onde partimos. É o sortilégio da cidade que é uma península, tão estreita que durante muito tempo o istmo foi uma frágil faixa de areia. É o enigma de uma geografia que facilmente confunde o visitante de primeira (e segunda…) viagem e que contrasta com a espontaneidade com que as suas ruas nos acolhem os passos, guiando-nos para praças e jardins. E nos surpreendem com um conjunto arquitectónico que reúne o românico, o gótico, o barroco, o modernismo, como um espelho límpido onde a história e as transformações sociais se reflectem. Porque de terra ferozmente feudal à cidade da burguesia florescente e paradigma do milagre económico de Espanha muitos séculos passaram — e muitos ficaram para trás, mesmo antes de celtas e romanos terem plantado raízes de uma cultura que nem o relativo abandono apagou.

A cidade que, como Fénix, renasceu quase de cinzas, ultrapassou a voragem dos tempos graciosamente e nem a longa sombra de Santiago de Compostela lhe apaga o brilho. Entre paços nobres e mansões burguesas, edifícios medievais, modernistas e vanguardistas exibe-se durante o dia como um centro comercial ao ar livre e diverte-se à noite, em ruas estreitas de bares, cafetarias, clubes, tabernas e restaurantes, ou à beira-água em lounges cosmopolitas. Constante: o cheiro a maresia, o som agudo das gaivotas, a visão do mar — uma sinestesia, esta cidade.

Das lendas

Este é o local onde Hércules cumpriu um dos seus 12 trabalhos e de onde partiu a conquista da Irlanda. Porém, perdoem-nos, continuamos obcecados com a sua geografia líquida. E, por isso, subimos já ao Monte San Pedro, sem dúvida o melhor miradouro da cidade e da zona envolvente — e não falamos sequer do edifício que o coroa: cúpula redonda que ao longe parece um ovni pousado, ou, mais terrenamente, um planetário, mas é um interactivo miradouro 360º. Não precisamos de entrar para estarmos de caras com o Atlântico, hoje oferecendo-se suave em azul penetrante — não muito longe, transforma as paisagens galegas na Costa da Morte e marca o fim do mundo em Finisterra; para nascente, embrenha-se terra adentro nesta região das Rias Altas ou embate em penhascos que desenham uma costa caprichosa a perder-se no horizonte; aqui perto, deixa-se habitar por ilhotas sobrevoadas por passarada. Com tanta água à volta, estamos no meio do verde veemente do jardim que ocupa o que já foi uma área militar de acesso limitado e é agora um parque eminentemente familiar — os relvados são imensos, ondulantes como um campo de golfe, com parque infantil, lago com patos e labirinto inglês; com trincheiras, bunkers e peças de artilharia que antes defendiam a cidade e agora entretêm-na.

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