No que pensa um viajante solitário quando se deita na sétima cama diferente daquele mês? O que lhe passa pela cabeça nas horas infinitas de autocarro ou de comboio entre um lugar maravilhoso e o outro? Tiago Salazar sonha com a mulher e os filhos, relembra histórias de infância e contos dos seus autores preferidos.
Durante anos, o jornalista e escritor de viagens foi registando em diário, pelos vários cantos do mundo, memórias, pensamentos e reflexões sobre a vida, o amor, a saudade, a dor por não poder partilhar o que estava a viver com aqueles que mais ama. Fragmentos de um diário escrito em viagem e uma selecção de cartas que trocou com a mulher (a cantora Cristina Branco, cujo olhar se eleva sobre a capa do livro) compõem as páginas de Hei-de Amar-te Mais, a obra que lançou este ano, depois d’ “As Rotas do Mundo”, “A Casa do Mundo”, das “Viagens Sentimentais” ou da série Endereço Desconhecido (RTP).
“É um bocado pôr a nu o que é que acontece nos intervalos daquelas viagens”, diz-nos Tiago. “Esses instantes de derrota também devem ser contados”, porque “isto também sou eu enquanto viajante”: alguém dividido entre o “amor pela profissão, pelo trabalho de escrita e de viagem” e o “amor pelos filhos, pela mulher”. “Às vezes vou a viajar sozinho e em trabalho, começo a pensar nisso e às tantas começo a escrever sobre isso, para os meus filhos, para a minha mulher”, confessa.
Hei-de Amar-te Mais resultou dessa escrita, onde Tiago Salazar adopta um estilo diferente dos livros que publicou anteriormente. Este “está mais próximo de uma literatura do real, da vida como ela é, como eu a vivo”, conta o autor. “Rompo com o viajante humorado, alegre e mostro o viajante que também tem as suas angústias e os seus desconsolos, muitas vezes caindo numa repetição do tema da saudade”. “Mas acho que ninguém que queira ter uma família e ser um viajante ao mesmo tempo escapa a isto”, conclui.
Desde 2007 que o jornalista mantém uma escrita diarística, além das muitas cartas que sempre gostou de escrever e de receber. Em Março de 2012 publicou alguma da correspondência trocada com a mulher na revista “Egoísta”. Páginas de diário e epístolas manuscritas entre Janeiro de 2007 e Março de 2013 estão compiladas neste livro, entre pequenas entradas de diário, poemas, cartas, canções de Vinicius de Moraes e Tom Jobim ou excertos de autores como Clarice Lispector, Tagore, Pablo Neruda e Sophia de Mello Breyner Andersen. Escritos intensos de um “eu”, Tiago, para quase sempre o mesmo “tu”: Cristina, “amor de sempre e para sempre”, escreve.
“A viagem é uma dança e não tendo par é como se fosse uma valsa inacabada, como se houvesse um espaço por preencher”, explica. Hei-de Amar-te Mais é por isso um bailado construído a duas velocidades: uma solitária, de “angústia e por vezes até algum sofrimento”; e outra, a dois, de “êxtase, puro sensualismo e paixão da partilha”. Entre as viagens que fez sozinho - a Istambul, países do leste europeu ou Brasil - e as viagens com Cristina – como Atenas, onde se revelammissivas trocadas num camarim, ou Sarajevo.
Constante é a demonstração dos afectos e desejos, o amor tornado público pelos filhos, pelos avós, por alguns dos escritores preferidos, como Tagore ou Clarice Lispector e Henry Miller (que o autor trata por mãe e pai), mas principalmente pela mulher. “Se estou a viver um amor agora, e espero vivê-lo longamente e virtuosamente, porquê adiar a sua celebração?”, questiona.
Ao contrário dos livros anteriores do jornalista, Hei-de Amar-te Mais tem poucas descrições sobre os países visitados, a história dos locais ou os encontros de estrada, mas sim as emoções vividas a cada momento, breves pensamentos e reflexões. Não ficamos a conhecer Istambul, por exemplo, mas descobrimos no auto-retrato que inicia o livro que no domingo de Páscoa de 2010 se olhou ao espelho de um hotel na cidade turca, o sétimo por onde passava naquele mês, e se sentiu “um velho encarquilhado numa solidão terrível”. “Fui muitas vezes a Istambul [como guia de viagens literárias] e se calhar aí funcionou muito o efeito de repetição. Vendo coisas novas não sentiria isto tão na pele”, recorda agora.
No Brasil, de onde chegam alguns dos desabafos mais sofridos do livro, o catalisador da escrita foi sobretudo a saudade. “Nada supera essa ausência tão prolongada”, revela. Em 2011, para as gravações da segunda edição do programa Endereço Desconhecido, o jornalista percorreu o país desde o Amazonas até Rio Grande do Sul em duas viagens, uma durante mais de 60 dias, a outra por mais de um mês.
“Nunca tinha estado tanto tempo sem os meus filhos, é de facto muito difícil”, conta Tiago Salazar, acrescentando à dor da saudade “o grande contraste que é veres aquela alegria de viver dos brasileiros e não estares a partilhar aquilo, aquela beleza toda”. Então escrevia, escrevia e “todos os dias contava os dias” para voltar a estar com a mulher, para se “sentir inteiro na vida” como só acontece quando está com Cristina e os filhos.
Mas atenuará a escrita a saudade? Muito provavelmente não, mas “pelo menos põe em perspectiva muitos destes sentimentos e ao mesmo tempo vou-os partilhando”, primeiro com a família, agora com o público.
Hei-de Amar-te Mais | Excertos
2010, Dia de Páscoa (in medias res), Istambul
Auto-retrato
Tenho quarenta anos, saúde de ferro, os dentes quase todos, cabelo farto de querubim, força de mancebo, leitores que me dizem «o senhor Tiago faz-me sonhar» ou «a sua escrita é um bálsamo», tenho uma mulher, filhos, laços de família, e neste espelho de hotel, o sétimo onde aterro no último mês, sou apenas um velho encarquilhado numa solidão terrível. A posologia diz «recuperador do humor». Será como um recuperador de calor? Neste chão de hotel varrido de melancolia que é o meu território por cinco dias só a Patagónia, ou tu, meu amor, conviriam à minha infinita tristeza.
Olho os telefones, duas redes que me ligam ao mundo, o único caminho até ti. Uma vez falei-te do deserto, em Marrocos, ainda os telefones voadores (como lhes chamas) eram como varas de feiticeiro. No meio do nada, deposto como uma pedra, um beduíno ensinara-me o canto de um velho poema sufi, a prosa do amor interminável, e por Alá não me ter abençoado com a voz dos pastores do deserto entoei-to humildemente letra a letra. Paro a escrita que nunca pára e quero dizer-te ao ouvido, amo-te, pertenço-te desde muito antes desse deserto de onde te disse a primeira vez é aí dentro de ti que quero viver. Pego então no meu zepelim e vamos namorar a cidade nocturna às gincanas entre os minaretes
Na mesma noite
Disse-me um dia um beduíno
Estava aquém do princípio rigoroso expresso por Benvenuto Cellini onde se diz: um homem deve ter mais de quarenta anos e ter feito algo de excepcional antes de assentar, preto no branco, a história da sua vida. Um ano e seis meses seria o tempo exacto de recapitular com minúcia e obstinação as minhas recordações. O grande feito, esse, podia nunca vir, excepto se amar fosse matéria de peso. Aí, por uma vez, talvez houvesse redenção.
O fundo da ravina abria-se como um harmónio. A perder de vista, um rio seco guardado por montanhas, uma garganta amena, devolvia o eco de ventos antigos. Parado sob o teu olhar lancei-me numa fantasia erótica de dois amantes libertos da gravidade. Beijei-te então diante de todos os séculos, acima de qualquer abismo.
Um dia escreves isto numa pedra do Fish River.
«Unidos para além da vida e da morte. E é só.»
- Não há limites onde nós estamos, respondeste.
Tinha vida nas pernas para querer uma felicidade tranquila. Mas, dizem, a felicidade é perigosa, breve, e sobre ela não se pode fundar um futuro. Estava disposto a contrariar os homens das grandes verdades. Só importa o amor que conhece os seus desertos, porque «um ser amado sem medida, dominado sem medida, rouba-nos um mais alto destino».
2007, 8 de Janeiro
Cristina disse, ainda na cama, deitada à etrusca.
«Fixamos um ponto no horizonte e caminhamos para lá. Com duas pessoas faz-se uma fortaleza.»
Respondi, um pouco mais tarde.
«Projecto de vida demora a instalar-se, demora a crescer.»
Textos de viagens: língua, símbolos, significados, origens.
E.g.Pangkor Laut, expoente do luxo moderno… com dois mil anos.
2 de Agosto
O objectivo da viagem não é ir para onde quer que seja. É ver e viver. A Vida dá-nos o problema para entendermos a nossa natureza.
14 de Agosto
Há duas espécies de homens neste mundo: os que ficam em casa e os outros. A vida encarrega-se de recusar os sonhos, mas nós, os trota-mundos, tratamos de a corrigir.
A bordo de um Airbus a caminho de Amsterdão.
Sofro de «horror do domicílio», segundo a expressão primorosa de Charles Baudelaire. A grave doença do vício do vazio. Sair: o motor, um princípio vital. Não há como lhe escapar.
19 de Agosto
Pensamento vespertino
Sou budista de Inverno e nudista de Verão (segundo o avisado princípio de Joe Gould). O viajante vai de canteiro em canteiro, como quem afaga flores.
25 de Maio
Noites de Sarajevo
«O “nós” entre nós às vezes parece-me tão vago… parece que há sempre mundo pelo meio e eu estendo a mão e não te vejo… é o mundo que trazes atrás de ti e que, quando eu não estou à altura, tu espreitas e vagueias… é a tua necessidade de escapar do centro. Eu não te dou liberdade para passeares como e quando quiseres pelo mundo, de ver tudo? Porque o mundo é mais cor-de-rosa e risonho do que eu? Porquê?»
Ficaste com essas ideias gravadas no fundo dos tempos e não as largas. Não quero uma boneca. Tenho uma mulher que amo e cuido. Quando tu quiseres, olhas para ti e gostas do que vês. Eu gosto do que vejo. Gosto mais ainda do que sinto.
«Não posso competir com o que te rodeia, não é sequer justo. E não falo de pessoas. Sou uma fracção muito pequena de mulher, comparada com o que anda por aí. Não me comparo, mas sei que o pensas. Não sou pássaro, sou peixe das profundezas, ou térmita, se quiseres, e sinto que me isolas porque eu me encolho perante a euforia disco sound e bling blings que te rodeiam. Não podes viver entre dois mundos.»
Isso que chamas dois mundos é apenas um viver entre mundos. Lá porque gosto de sair e conhecer o mundo, as euforias, os luzeiros, onde me sinto em casa é onde tu e eu habitamos. Eu também sou das profundas. O meu contacto com esse outro mundo é empírico. E mulheres-pássaro nunca me encantaram. Pouco me ralam as mulheres e o que pretendem. Tenho uma mulher de quem falo todos os dias, que amo, estimo e admiro: és tu. Chama-se Cristina, sem o Branco. (…)
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"Hei-de Amar-te Mais" (136pp) foi editado pela Oficina do Livro