Fugas - Viagens

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    Pelas estreitas e íngremes ruas vêem-se crianças que, acabadinhas de sair da escola, andam em missões domésticas Sérgio Azenha
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    Chefchaouen, duas mulheres passeiam pelas ruas Sérgio Azenha
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    Em qualquer parte de Marrocos, os (muitos) gatos mostram-se afáveis Sérgio Azenha
  • Uma criança a chegar a casa depois da escola. Em Chefchaouen
    Uma criança a chegar a casa depois da escola. Em Chefchaouen Sérgio Azenha
  • Chefchaouen
    Chefchaouen Sérgio Azenha
  • Além do azul, as flores animam o rendilhado de ruas
    Além do azul, as flores animam o rendilhado de ruas Sérgio Azenha
  • Chefchaouen
    Chefchaouen Sérgio Azenha
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    Fez, portas do Palácio Real Sérgio Azenha
  • Fez, portas do Palácio Real (detalhe)
    Fez, portas do Palácio Real (detalhe) Sérgio Azenha
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    Compras no souk de Fez Sérgio Azenha
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    Na medina de Fez, o trânsito automóvel é substituído por trânsito de burros e mulas Sérgio Azenha
  • A maioria das mesquitas está vedada a turistas (apenas entram muçulmanos)
    A maioria das mesquitas está vedada a turistas (apenas entram muçulmanos) Sérgio Azenha
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    Idriss, o guia em Fez, guia o grupo por um verdadeiro labirinto Sérgio Azenha
  • A zona dos curtumes é uma das visitas imperdíveis em Fez
    A zona dos curtumes é uma das visitas imperdíveis em Fez Sérgio Azenha
  • Numa espécie de colmeia em pedra, as peles são tratadas e tingidas
    Numa espécie de colmeia em pedra, as peles são tratadas e tingidas Sérgio Azenha
  • Enquanto em alguns poços se tingem as peles de cores garridas, noutras estas são caiadas
    Enquanto em alguns poços se tingem as peles de cores garridas, noutras estas são caiadas Sérgio Azenha
  • Vista sobre Fez
    Vista sobre Fez Sérgio Azenha
  • A caminho de Marraquexe
    A caminho de Marraquexe Sérgio Azenha
  • Vista sobre Azrou
    Vista sobre Azrou Sérgio Azenha
  • Marraquexe
    Marraquexe Sérgio Azenha
  • Marraquexe: pelas paredes são distribuídos os espaços para a propaganda eleitoral
    Marraquexe: pelas paredes são distribuídos os espaços para a propaganda eleitoral Sérgio Azenha
  • Marraquexe
    Marraquexe Sérgio Azenha
  • Os bazares invadem as ruas pela medina de Marraquexe
    Os bazares invadem as ruas pela medina de Marraquexe Sérgio Azenha
  • “Se virem dois homens de mão dada não estranhem”, dir-nos-ia um dos guias marroquinos
    “Se virem dois homens de mão dada não estranhem”, dir-nos-ia um dos guias marroquinos Sérgio Azenha
  • Há bancas que vendem sumo de laranja, caracóis e restaurantes com menus para todos os gostos
    Há bancas que vendem sumo de laranja, caracóis e restaurantes com menus para todos os gostos Sérgio Azenha
  • Um dos sobrelotados restaurantes da Praça Jemaa el-Fnaa
    Um dos sobrelotados restaurantes da Praça Jemaa el-Fnaa Sérgio Azenha

Seguindo as cores de Marrocos

Por Carla B. Ribeiro

Uma viagem por Marrocos é um passeio por cores, sabores e cheiros que, à medida que se viaja para sul, nos aproximam do coração marroquino. Serpenteámos por Tânger, Fez, Chefchaouen e Marraquexe.

Tânger sabe a Europa. O intenso movimento, o fervilhar constante de vida, os edifícios que evidenciam uma (longa) história feita de tantos episódios influenciados por tantas culturas.

Tânger poderia ser até Lisboa sem o Tejo, com a brisa marítima a penetrar as mais estreitas vielas e, no dia em que chegamos, com milhares de crianças, de cadernos na mão ou de mochila às costas, a iniciarem um novo ano escolar.

Por isso, não é difícil a um português vestir a pele de turista e, ao mesmo tempo, sentir-se um bocadinho em casa. Até porque, à excepção de Marraquexe onde os seus comerciantes falam todas as línguas possíveis e imaginárias, Tânger talvez seja a cidade em Marrocos onde é mais fácil ser-se compreendido. E compreender. Falamos em francês. Mas também em espanhol e muitas vezes num perfeitíssimo "portinhol". Seja pela orla costeira, apinhada de bares e clubes nocturnos, por onde se passeiam audis, mercedes, bm"s e limusines cor-de-rosa, seja pelo íntimo tangerino que se pode encontrar passeando pela medina, palavra que significa cidade, mas que hoje é usada para designar as zonas históricas (e na maioria das vezes amuralhadas) de várias cidades do Noroeste africano.

Mas Tânger, território marroquino desde 1956, é mais que tudo o que foi descrito acima. Tânger é um mundo. E um mundo onde o branco parece pintar a mancha urbana e entrar pelo mar adentro.

Pela antiga cidade internacional - estatuto obtido após um acordo que, na primeira metade do último século, uniu aqui franceses, espanhóis, portugueses e britânicos, mas também italianos, belgas, holandeses, suecos e norte-americanos (a partir do fim da II Guerra, os soviéticos integraram o painel de "actores") -, impera ainda uma miscelânea de línguas e de costumes trazida dos tempos em que a cidade, a par de porto estratégico, era um refúgio cultural. "Foram os nossos anos de ouro", desabafa o guia que nos acompanha e que refugia a sua pele do sol recorrendo a um claro e tradicional djellaba, enquanto protege a cabeça com um vulgar chapéu de basebol, tornando-o uma figura difícil de perder entre a multidão. Abdelmoghit El Jelili, de 57 anos e com um "portunhol" perfeitamente perceptível, inicia a visita matinal à cidade a responder às nossas curiosidades: porque há tanta gente que parece caminhar sem destino ou que se deixa ficar sentada horas a fio pelos quatro cantos da cidade? Qual a taxa de desemprego? O número oficial anda por uns pouco desanimadores 9% (na Zona Euro, a taxa anda à volta dos 12%). O problema é que o número da população é uma incógnita. A última estimativa coloca a fasquia abaixo do milhão, mas, enquanto abandonamos o centro tangerino e rumamos às colinas, onde o betão e o alcatrão vão ganhando terreno, Abdelmoghit calcula que na cidade residam pelo menos mais uns 500 mil do que o número oficial.

Da multidão que reside em Tânger, uma pequena fatia emoldura as franjas da cidade com vivendas reluzentes e jardins bem tratados e irrigados. Algumas nem se deixam vislumbrar, de tal forma se embrenham no verde, como o caso do palácio de um príncipe saudita recém-casado com uma jovem marroquina, cuja beleza juntou ao seu harém, confidencia em jeito de cusquice Abdelmoghit. Não se julgue, porém, que ter mais que uma mulher continua a ser prática comum. Embora a lei permita o matrimónio de um homem com até quatro esposas, "dá muito trabalho e fica caro", brinca o nosso guia. Depois há o exemplo real: Mohammed VI tem apenas uma mulher. Está casado com Lalla Salma desde 2002 e, pela primeira vez na história do país, cedeu-lhe um título real: no caso, Princesa Consorte de Marrocos. "A fotografia oficial [em que o monarca se encontra de pé a olhar carinhosamente para a mulher sorridente que, de calças e cabelos soltos, está agachada a cuidar do pequeno filho de ambos] mudou muito o país", conclui.

Antes de percorrermos a bem conservada Kasbah, um bairro amuralhado do século XII, com vista panorâmica sobre a cidade, ou de nos perdermos pelo souk (mercado), onde nos haverão de explicar os benefícios das especiarias, há dois sítios que não podem deixar de ser visitados. O primeiro, o cabo Espartel, do qual se vislumbra a costa espanhola por entre a bruma; o segundo, as míticas Grutas de Hércules.

Em qualquer um destes sítios há, naturalmente, estaminés improvisados cheios de souvenirs, o que lhes retira um pouco da sua magia. E, no cabo Espartel, junto ao ponto onde o nervo do Atlântico se deixa definhar ante a quietude do Mediterrâneo, a atenção é roubada por dois rapazes que tentam fazer negócio com os dois pequenos burros que os acompanham: uma fotografia em troco de alguns dirham.

Já pelo interior das grutas, que mais parecem umas quaisquer galerias comerciais urbanas, há comerciantes com ar verdadeiramente oficial. Mas vale a pena abstrairmo-nos das pedras preciosas, da cerâmica, dos bules, dos imãs para o frigorífico. Enfim, de toda a quinquilharia e marroquinaria. E deixarmo-nos levar. Primeiro, pela beleza. Sobretudo se se visitar a gruta ao pôr-do-sol e se se tiver a sorte de a maré estar baixa. Depois, para observar o recorte quase perfeito de um mapa de África de pernas para o ar. Por fim, para tentar compreender a lenda que diz que foi o próprio Hércules que esculpiu estas grutas para descansar após cumpridos os 12 trabalhos e depois de ter dividido o estreito de Gibraltar em dois, formando assim dois continentes.

Alfama em Marrocos

Depois de uma incursão pelos arredores da cidade, a proposta é, claro, uma imersão na zona histórica. É então que se volta a saborear um pouco de Lisboa. É que, seja na amistosa medina de Tânger, na completamente labiríntica e claustrofóbica medina de Fez ou na agressiva e ao mesmo tempo irresistível medina de Marraquexe, há sempre alguma coisa nestas que me coloca no centro de Alfama. Pelo facto de o nome do bairro lisboeta derivar do árabe, mas também pelas ruas estreitas, pelas escadinhas íngremes, pela forma como os ambientes domésticos se estendem até à rua. Quer na área comercial, onde os turistas (e respectivo dinheiro) são muito bem-vindos, quer na residencial, pela qual, desde que haja alguma orientação ou guia, se pode entrar um bocadinho mais na intimidade dos residentes. São mulheres à conversa de porta para porta, rapazes a jogar à bola, gente a regressar do trabalho ou a caminho das suas orações após soar aquele chamamento que, desde o primeiro dia, passou a fazer parte do nosso quotidiano. Cinco vezes ao dia, os altifalantes das mesquitas entoam "Allah hu Akbar" (i.e., "Deus é grande") e, qual formigas em carreiro, vêem-se centenas de pessoas a recolherem-se em oração.

Mas nem todos. Ainda em Tânger, depois de passarmos pelas bancas de peixe (sempre muito frequentadas por gatos que vão saboreando as entranhas que salpicam o chão), por lojas cheias de quinquilharia ou por vendedores ambulantes que nos aconselham a ignorar, acabamos numa ervanária, a El Kenfagui, onde quem nos recebe, com um português carregadinho de erres e de "ches", opta por continuar a trabalhar e deixar a oração para mais tarde ("O trabalho é uma forma de rezar", dir-nos-ia mais tarde Idriss, o nosso guia em Fez).

O trabalho no geral resume-se ainda, em muitas zonas de Marrocos, a negócios familiares. Todos participam. Como na tangerina "rua dos alfaiates": as crianças brincam a subir e a descer escadinhas enquanto vão manuseando uma pequena máquina de fiar e enrolando as linhas em grandes cartuchos de papelão; os homens, de agulha e dedal, confinados a pequeníssimos espaços e de porta aberta para quem queira espreitar, alinhavam, fazem bainhas, pregam botões; as mulheres, em local mais reservado, bordam os tecidos que mais tarde se verão pendurados pelas centenas de bancas de têxteis. É nesta rua onde, de acordo com o nosso guia em Tânger, se podem encontrar os únicos teares da medina.

Numa ampla loja, dois homens, cada qual no seu tear, vão produzindo panos coloridos: os seus pés nus, sob o tear de pente liço em madeira, movem-se em simultâneo, pisando duas velhas tábuas alternadamente; as suas mãos, que agarram as navetes, vão trocando os fios, finíssimos, e alinhando-os uns contra os outros. Em conjunto, parecem executar uma dança. E os sons que provêm do bater nas tábuas depressa se transformam numa composição melódica. "É feito de pele de camelo", diz-nos o comerciante, enquanto nos deposita nas mãos um dos milhares de lenços que habitam as prateleiras. "Macio, não é? Podem tocar, não precisam comprar", assegura. Suave, executado de forma artesanal e, claro, entre os mais caros: 20€ que, "só por serem de Portugal", depressa se converteram em 15€ e logo a seguir em 10€. O regateio é quase uma fé. Todas as coisas têm um valor diferente para cada pessoa e, desde que quem venda esteja a ganhar dinheiro, por menos que seja, consegue-se (quase) sempre negócio.

Azul Fez, azul Chefchaouen

Lê-se pelas várias descrições da cidade e pelas bíblias dos viajantes que Fez é a cidade azul. E a verdade é que a cor é uma presença constante pelos edifícios, pelas decorações. Mas depois de um verdadeiro banho de azul em Chefchaouen é difícil ver Fez nessas tonalidades. Isto, apesar de a cidade no meio das montanhas do Rif já não ser uma única mancha azul. O crescimento levou os edifícios fora do centro histórico a pintarem-se de branco. Já as casinhas que emolduram as ruas estreitas e muito íngremes de Chefchaouen continuam a ser todas caiadas a branco e pintadas a azul. Um azul-turquesa. A escolha da palete não é à toa: a cal e o azul servem essencialmente como repelentes. E, para quem chega pela primeira vez, a cor fria serve também de relaxante.

Caminhar pelas ruas pequeníssimas de Chefchaouen (em algumas passa só uma pessoa de cada vez) não é, estranhamente, claustrofóbico. Até porque os habitantes com os quais nos vamos cruzando, talvez suavizados por um turismo tranquilo, revelam-se diferentes dos que encontrámos noutras cidades marroquinas por onde já passámos. Os sorrisos abrem-se, as crianças metem conversa animada - perguntam-nos o nome, riem-se enquanto passam por nós a correr, dizem-nos os seus nomes -, os turistas vivenciam a cidade de forma serena, ocupando as esplanadas dos belíssimos cafés e restaurantes, enquanto pelas várias bancas montadas ninguém nos exige atenção. As compras são feitas sem atropelos. É como se se passasse de um supermercado low cost que se observou na medina de Tânger para uma loja gourmet.

Em Chefchaouen parece haver tempo para tudo. Até para ir convidando quem passa a admirar as telas em exposição e, ao mesmo tempo, beber um chá (sempre de hortelã e a ferver - uma das recomendações ao viajante em Marrocos é nunca beber água da torneira nem aceitar água que não tenha sido fervida antes). Foi assim que me cruzei com Mohsin Ngadi, pintor que há 15 anos trocou Imilchil, nas montanhas do Atlas, a 2119m acima do nível do mar, por esta amena e pacata localidade. Mas mais que a simpática oferta do chá, foi o seu pequeno e afável cão, numa terra de gatos, que me levou a entrar e a conhecer o seu trabalho. É então que as telas roubam o protagonismo ao animal. O mesmo acontece a dois espanhóis, fotógrafos, que se revelam extasiados pelo "jogo de luz e sombras" nas visões do deserto que forram as paredes.

Mohsin não tem preços marcados, como acontece quase por toda a parte. "Ou gostas de um dos meus quadros e o queres levar, e então podemos falar sobre preços. Ou não queres levar nenhum e então não vale a pena falarmos de preços." É com esta premissa que chegamos, após quilómetros ao longo dos quais o horizonte se vai abrindo e a paisagem vai alternando entre floresta cerrada, paragens secas ou olivais a perder de vista, a Fez, capital espiritual, artesanal, cultural. Mas também casa de uma das maiores medinas: 15km de muralhas, 360ha de área e 30km ou 9400 ruas, pelas quais é evidente o trabalho de restauro de, dizem-nos, "muitos portugueses e espanhóis".

Mas nesta, dizem, azul Fez (há até um azul que se designa com o nome da cidade) não é só durante o dia que se pode viver a cidade. À noite, os cafés fazem as vezes dos bares. E é sempre possível procurar uma discoteca. Quanto a nós, só as encontrámos no interior dos hotéis. Numa exigiam consumo mínimo; noutra, acabariam por nos deixar entrar após difíceis negociações. DJ a debitar sonoridades saídas de outras décadas, num bizarro eclectismo que não se coibiu de alternar Lionel Richie com alguma música da moda; raparigas à volta do telemóvel junto ao balcão; seguranças em cada canto. Homens que vão entrando e saindo. Mas absolutamente ninguém a dançar. A noite termina, assim, cedo. Até porque o dia iniciar-se-ia muito prematuramente.

Perdidos em Fez

Era suposto acordar-se com Fez aos pés, tirando partido dos miradouros que são as janelas dos quartos do hotel onde ficámos. Mas, em vez disso, o nevoeiro decidiu brincar connosco e envolver a cidade numa aura de mistério. Nada que não pudesse ser aproveitado pelo nosso guia. Idriss é carismático e, com o à-vontade de um familiar longínquo, prende-nos a atenção. Chama-nos de "família" e, como uma, tenta-nos manter unidos. Tudo para que ninguém se perca: "Se virem por aí uns olhos azuis ou verdes pendurados, foram uns turistas que se perderam". Nada a temer. Idriss é brincalhão q.b.. Além do mais, move-se como se estivesse em casa. "Moro apenas a umas ruas de distância; é aqui que faço todas as minhas compras", conta-nos, enquanto paga a carne que a sua mãe fora buscar mais cedo. "A palavra de uma mãe vale mais que ouro."

Vamos caminhando sempre com atenção. Pela medina de Fez o trânsito motorizado está proibido. Mas isso não significa que em qualquer altura não se possa ser atropelado: por um burro, por uma mula (ambos devidamente apetrechados com cascos de borracha para não escorregarem) ou por um carrinho de mão. E não é exagero. Não só estes veículos têm prioridade, como circulam tão rápido e por ruas tão estreitas, que por vezes somos obrigados a colar o corpo à parede para os deixar passar (e, ainda assim, pode sempre haver um pé que não escape). É nestas ruas estreitinhas que nos vamos cruzando com o passado de Marrocos, mas sobretudo com a fé que marca tão firmemente o presente. Seja numa antiga madraça (escola), hoje convertida em mesquita e onde Idriss aproveita para explicar como a religião influencia a sua vida e dos seus conterrâneos, à porta do mausoléu de Moulay Idriss Zawiya (a entrada é exclusiva a muçulmanos) ou, também sem passar da entrada, na Universidade Quaraouiyine, considerada pelo Livro de Recordes Guinness como a universidade mais antiga do mundo: foi fundada em 859 d.C.

Depois de se sobreviver às claustrofóbicas ruelas, o céu parece abrir-se sobre nós numa altura em que o sol perdeu a vergonha e o nevoeiro matinal já se recolheu. As edificações afastam-se e no seu intervalo descobrem-se pequenos largos. Num, multiplicam-se as ourivesarias (de onde veio uma regateada mão de Fátima, a filha do profeta); noutro, o trabalho com cobre, executado à sombra de um gigantesco plátano, convida a um momento de pausa. As batidas no cobre, que é usado em panelas de diferentes tamanhos, em pratos de distintas grossuras, lembram uma ritmada e afinada orquestra de percussão. E não tarda que muita gente vá batendo o pé ou abanando a cabeça. A vontade é de ficar ali. Ou então de voltar. Mas nada é fácil neste rendilhado de ruas. E o melhor é apressarmo-nos antes que a fome aperte. É que se há coisa que é imperdível em Fez são os curtumes, o local onde se tratam as peles - de vaca, de cabra, de camelo... - que serão transformadas em malas, carteiras, bolsinhas e, claro, babouches, os chinelos pontiagudos que calçam a maioria dos pés marroquinos. Mas apenas de estômago vazio.

A entrada para a La Belle Vue de la Tannerie faz-se numa esquina. E, assim que entramos, recebemos um raminho de hortelã-pimenta. Não se trata de nenhuma cortesia, mas de uma necessidade que compreendemos quando chegamos ao penúltimo andar e olhamos para baixo. Dezenas de homens mexem e remexem nos líquidos que enchem aquilo que nos parecem favos duma vasta colmeia esculpida na pedra. De hortelã-pimenta enfiada no nariz - que, não vale a pena enganos, apenas disfarça ligeiramente o odor nauseabundo -, ouve-se as explicações de como, primeiro, as peles são lavadas, depois suavizadas com fezes de pombo (a presença de um pombal mesmo ali ao lado confirma o ingrediente) e, por fim, caiadas ou tingidas.

À volta desta fábrica artesanal ao ar livre, os telhados vão recebendo turistas, todos de hortelã-pimenta a tentar enganar o olfacto. Mas nem assim os homens se distraem da labuta. Alguns recebem à jorna; outros fazem parte de uma cadeia familiar que só termina numa qualquer banca do souk e que inclui o fabrico dos vários itens. Há ainda membros que, aproveitando a curiosidade turística, ganham os seus dirham levando turistas à zona dos curtumes. Era o que um rapaz pretendia fazer pela tarde, quando regressámos já sem guia nem destino e até com uma ligeira vontade de nos perdermos. Mas, embora seja um cenário impressionante, visitar os curtumes duas vezes no mesmo dia poderá ser mais masoquismo que outra coisa.

Por isso, deixamo-nos levar pela sua proposta: ir até ao verde minarete andaluz que se avista de todo o lado, mas junto ao qual ainda não tínhamos conseguido chegar. É a caminhar, a passo bem apressado, atrás deste jovem que por fim se compreende como é fácil alguém se perder: tão depressa se está a subir como a descer; depois vira-se à direita... não! À esquerda. E, quando menos se espera, percorrem-se estreitos túneis pelos quais não se vislumbra sequer um pequeno raio de luz. Nestas andanças, por vezes, um frio tende a apoderar-se da barriga. Mas logo se desvanece quando se sai da escuridão para se ser recebido pela imagem de um menino nos seus 4 anos a brincar com um novelo de lã e um gatinho bebé. Até que já estamos no bairro andaluz e o minarete que nos acompanhava há dois dias deixou de ser inatingível como parecia. "Aqui", diz-nos o guia improvisado enquanto aponta para a torre verde.

Vermelho Marraquexe

Atravessar o Atlas é atravessar mundos, com passagem obrigatória em Ifrane, estância de esqui marroquina no Médio Atlas cuja organização, limpeza e arrumação nos faz questionar se não acabámos de aterrar nos Alpes suíços. A sensação é estranha. Mas mais estranho ainda é prosseguir viagem e sentirmo-nos a atravessar uma fronteira invisível.

Abandonamos cada vez mais uma paisagem que se inspira no Mediterrâneo - e que tantas vezes me deu a sensação de ainda estar a percorrer quilómetros pela Península Ibérica - e enveredamos por terrenos cada vez mais áridos, lembrando, com saudade, o deserto. Os olivais são substituídos por áreas enormes cheias de cactos (uma espécie dos quais carregadinha de figos-da-índia) e as lixeiras a céu aberto, entre as quais predomina o plástico, tornam-se um problema cada vez mais evidente à medida que se viaja para sul. Já a terra do solo que pisamos perdeu os seus tons castanhos e dourados. A partir de um determinado momento, assume uma forte tonalidade vermelha-ocre, servindo de aviso para a proximidade de Marraquexe, a cidade vermelha e uma meca do turismo no país.

Antes, outras localidades mostram-nos como já estamos longe da europeia Tânger. Por algumas, mais pequenas, vêem-se aldeões dedicados à agricultura e à pastorícia; noutras, um pouco maiores, os afazeres diários e as compras de fim de dia num mercado contrastam com momentos de puro lazer - brinca-se ao ar livre, joga-se futebol (a modalidade parece invadir tudo aos domingos: descampados, jardins, ruas...). E, claro, corre-se em direcção aos turistas quando estes curiosos (nós) aparecem. Os mais pequenos pedem cadeaux (presentes). Lembro-me subitamente da mulher a trabalhar no balcão de pagamento nos curtumes: pela oferta de alguns porta-chaves recusou o meu "choukran" e apontou-me para a caneta que segurava. Oferecia-a e ela fez-me sinal de que estávamos quites. Ou seja, os cadeaux são mais que isso. São retribuições. Aqui, o mesmo se passa. Depois de registados os momentos em fotografia, as crianças apenas pedem algo de volta. Das malas dos companheiros de viagem saltam canetas e até um apito para alegria dos pequenotes.

A inocência desta pequena localidade, que atravessamos dentro da carrinha, haveria de contrastar com Marraquexe, já a apenas alguns quilómetros de distância. Por esta grande cidade, o trânsito, por onde se cruzam jaguares e lamborghinis com carripanas para quatro onde cabem sete ou mais, parece enlouquecido. Depois, há hotéis que parecem saídos das mil e uma noites - um dos melhores hotéis do mundo, o La Mamounia, fica numa das principais artérias de Marraquexe - e lojas de marcas conceituadas a nível mundial; mercados em terra batida com toda a espécie de velharias e espaços imaculadamente belos, como os Jardins Majorelle, recuperados por Yves Saint Laurent e Pierre Bergé. Aqui, além da casa onde aqueles viveram e de um Museu Berbere, o que mais se distingue é a cuidada e ecléctica flora que forma um ambiente único, refúgio perfeito sobretudo quando o calor atinge a cidade. Nesta espécie de jardim botânico em miniatura, decorado ao jeito de uma Art Déco de inspiração muçulmana, há plantas exóticas, jogos de água, flores coloridas. E o tempo parece abrandar. Até se voltar à rua: as pessoas andam depressa e parece haver tantos turistas quanto residentes. E, à noite, há bares abertos com ritmos dançantes, onde o álcool se serve como se se estivesse numa discoteca em Lisboa. A saber: a indumentária pode ser informal e os ténis entram sem problemas; já os calções parecem não ser bem vistos (valeu ao fotógrafo da Fugas a prevenção: trazia na mochila, juntamente com as lentes e outros apetrechos, o pano que faltava a estas calças safari).

Mas Marraquexe, cidade de sete padroeiros, é mais que isso e um dos pilares que continua a fomentar o turismo é a religião. "Há muita gente que vem a Marraquexe para visitar os mausoléus dos santos e pedir sorte para a vida", explica-nos o guia que nos leva a trote pelo souk integrado na medina, ao longo da qual não nos podemos distrair. Além dos burros e das mulas aos quais já nos havíamos habituado em Fez, por aqui temos de nos preocupar com as motas e motoretas que não só parecem circular como se não houvesse mais nada no caminho como deixam atrás de si um rasto de emissões de gases que faria corar os criadores das normas europeias.

Pelo caminho não há um segundo sequer que não nos cruzemos com turistas: franceses, alemães, espanhóis, americanos... Talvez sob o efeito de uma overdose turística, os habitantes desta cidade não se mostram tão hospitaleiros quanto em Tânger, Chefchaouen ou Fez. Sobretudo se afrontados. E não é preciso muito para que algum comerciante se sinta agredido de alguma forma. Por isso, o melhor é ter cuidados extras com a forma como se fala. Não que algo de mal possa acontecer (até porque as zonas turísticas são sobejamente vigiadas), mas para evitar dissabores numa viagem que se quer mágica. Até porque é isso que, dia após dia, mais se sente na Jemaa el-Fnaa. Como que por magia, e envolta numa espessa nuvem de fumo, a praça transforma-se do dia para a noite, passando de mercado a céu aberto a zona de recreio e restauração. O momento pode ser testemunhado numa das várias esplanadas montadas no topo dos edifícios que rodeiam a praça e que são ocupados por cafés que pedem em troca da vista o consumo de algo.

Num completo contra-senso, nesta "assembleia dos mortos", a tradução literal do nome da praça, a vida parece fervilhar: há cobras e macacos amestrados, charretes puxadas por cavalos, grupos de música tradicional, danças e até lutas para as quais não faltam nem candidatos nem apostas. Depois há artesanato tradicional, enormes bancas coloridas com doces e frutas e, claro, os vários restaurantes frequentados por turistas, mas sobretudo por marroquinos. Acabamos por ficar num que, com mesas corridas, reúne turistas e marroquinos. A esplanada 55 convenceu-nos com as entradas (pão, azeitonas e molhos) gratuitas para dois (o grupo era de seis) e bebidas para todos. Seguiu-se um festim: espetadas, tagine de legumes, couscous merguez, berigelas braseadas, calamares, batatas fritas. E, no fim, não se escusou ao prometido, apresentando a conta certinha e oferecendo um "whisky marroquino". Chá, claro. Afinal, é sempre o chá que dá um final feliz a tudo o que se passa em Marrocos.


GUIA PRÁTICO

Como ir

Para seguir viagem em carro próprio, o melhor será aproveitar a ligação de ferry para Tânger a partir de Tarifa, Espanha. A viagem de ida e volta, para um passageiro com um ligeiro de passageiros, custa desde 200€.
De avião, a Royal Air Maroc voa de Lisboa para Tânger com escala em Casablanca (voos desde 350€ i/v) e a TAP passará a ligar Lisboa àquela cidade marroquina a partir de 28 de Outubro (desde 250€ i/v).
Para seguir viagem é necessário passaporte válido e à entrada, assim como em qualquer hotel onde se aloje, é pedido o preenchimento de uma ficha: de onde se vem, para onde se vai, profissão (neste último campo o melhor é descomplicar e pôr uma profissão que não suscite dúvidas, tais como comerciante, empresário ou mesmo jornalista).

Onde comer

Em qualquer hotel a refeição pode adquirir um toque de festim. Como no caso do Hotel El Menzah, com direito a música ao vivo e a danças do ventre. E, em qualquer sítio onde se vá, os couscous e as tagines (de vaca, de frango, de borrego...) estão sempre na ordem do dia. Assim como água (sempre engarrafada) e chá. As bebidas alcoólicas são cada vez mais fáceis de encontrar nos sítios com maior turismo, quer em restaurantes quer em hotéis.

Comer pela rua é económico e seguro desde que a refeição não inclua alimentos crus (como saladas) ou água sem ter sido fervida. Ainda assim, os condimentos fortes podem ser motivo de desarranjos. Por isso, entre a bagagem é de levar algo para o enjoo assim como para a diarreia.

Onde ficar

Tânger
Hotel El Menzah. Rue de la Liberté, 85. Tel.: +212 539 333 444. E-mail: infos@elminzah.com ou reservation@elminzah.com
Um hotel de charme em cujo currículo constam nomes como Rita Hayworth ou Jacques Cousteau. No seu interior, um pátio a céu aberto faz as delícias dos hóspedes. O serviço é prestável e eficiente. Um quarto reserva-se desde 100€.

Chefchaouen
Hotel Parador. Place El Makhzin. Tel.: +212 399 861 36
Não dormimos neste hotel, apenas almoçámos. No entanto, a simpatia, o atendimento prestável e a belíssima vista panorâmica para o Rif colocam o espaço entre os a considerar para uma noite em Chefchaouen.

Riad Baraka. Derb Ben Yakoub, 12. Tel.: +212 539 882 910
Edifício restaurado e decorado a preceito mesmo no centro da acção da cidade. Destaque para as tarifas económicas: uma noite reserva-se entre 15 e 28 euros.

Fez
Les Merinides. Borj Nord. Tel.: +212 535 645 226. E-mail: reservation@lesmerinides.com
Uma das melhores vistas sobre a cidade. O Hotel Les Merinides tem um pouco de mil e uma noites, na utilização de mármores e dourados. Mas é, sobretudo, confortável. O atendimento, muito simpático. Uma noite reserva-se desde 100€.

Palais Faraj. Bab Ziat, Quartier Ziat. Tel.: 212 535 635 356. E-mail: sales@palaisfaraj.com
Um suite hotel ainda a cheirar a novo e onde uma estada poderá ser mais que uma noite bem dormida mesmo ao lado da medina. Um passeio pelo hotel é também um passeio pela história, pela cultura e pela arte marroquinas. Uma noite reserva-se a partir de 190€.

Marraquexe
Hotel Hivernage. Av. Echouhada com R. des Temples. Quartier Hivernage. Tel: +212 524 424 100. E-mail: contact@hivernage-hotel.com
Vizinho do Sofitel ou da loja de Louis Vuitton, o Hivernage tem ainda a vantagem de ficar a 10 minutos a pé da medina de Marraquexe. Aqui, embora com toques marroquinos, a decoração é assumidamente contemporânea e aposta-se nos pequenos luxos. Um quarto reserva-se desde 150€.

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A Fugas viajou a convite do Turismo de Marrocos

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