Tânger sabe a Europa. O intenso movimento, o fervilhar constante de vida, os edifícios que evidenciam uma (longa) história feita de tantos episódios influenciados por tantas culturas.
Tânger poderia ser até Lisboa sem o Tejo, com a brisa marítima a penetrar as mais estreitas vielas e, no dia em que chegamos, com milhares de crianças, de cadernos na mão ou de mochila às costas, a iniciarem um novo ano escolar.
Por isso, não é difícil a um português vestir a pele de turista e, ao mesmo tempo, sentir-se um bocadinho em casa. Até porque, à excepção de Marraquexe onde os seus comerciantes falam todas as línguas possíveis e imaginárias, Tânger talvez seja a cidade em Marrocos onde é mais fácil ser-se compreendido. E compreender. Falamos em francês. Mas também em espanhol e muitas vezes num perfeitíssimo "portinhol". Seja pela orla costeira, apinhada de bares e clubes nocturnos, por onde se passeiam audis, mercedes, bm"s e limusines cor-de-rosa, seja pelo íntimo tangerino que se pode encontrar passeando pela medina, palavra que significa cidade, mas que hoje é usada para designar as zonas históricas (e na maioria das vezes amuralhadas) de várias cidades do Noroeste africano.
Mas Tânger, território marroquino desde 1956, é mais que tudo o que foi descrito acima. Tânger é um mundo. E um mundo onde o branco parece pintar a mancha urbana e entrar pelo mar adentro.
Pela antiga cidade internacional - estatuto obtido após um acordo que, na primeira metade do último século, uniu aqui franceses, espanhóis, portugueses e britânicos, mas também italianos, belgas, holandeses, suecos e norte-americanos (a partir do fim da II Guerra, os soviéticos integraram o painel de "actores") -, impera ainda uma miscelânea de línguas e de costumes trazida dos tempos em que a cidade, a par de porto estratégico, era um refúgio cultural. "Foram os nossos anos de ouro", desabafa o guia que nos acompanha e que refugia a sua pele do sol recorrendo a um claro e tradicional djellaba, enquanto protege a cabeça com um vulgar chapéu de basebol, tornando-o uma figura difícil de perder entre a multidão. Abdelmoghit El Jelili, de 57 anos e com um "portunhol" perfeitamente perceptível, inicia a visita matinal à cidade a responder às nossas curiosidades: porque há tanta gente que parece caminhar sem destino ou que se deixa ficar sentada horas a fio pelos quatro cantos da cidade? Qual a taxa de desemprego? O número oficial anda por uns pouco desanimadores 9% (na Zona Euro, a taxa anda à volta dos 12%). O problema é que o número da população é uma incógnita. A última estimativa coloca a fasquia abaixo do milhão, mas, enquanto abandonamos o centro tangerino e rumamos às colinas, onde o betão e o alcatrão vão ganhando terreno, Abdelmoghit calcula que na cidade residam pelo menos mais uns 500 mil do que o número oficial.
Da multidão que reside em Tânger, uma pequena fatia emoldura as franjas da cidade com vivendas reluzentes e jardins bem tratados e irrigados. Algumas nem se deixam vislumbrar, de tal forma se embrenham no verde, como o caso do palácio de um príncipe saudita recém-casado com uma jovem marroquina, cuja beleza juntou ao seu harém, confidencia em jeito de cusquice Abdelmoghit. Não se julgue, porém, que ter mais que uma mulher continua a ser prática comum. Embora a lei permita o matrimónio de um homem com até quatro esposas, "dá muito trabalho e fica caro", brinca o nosso guia. Depois há o exemplo real: Mohammed VI tem apenas uma mulher. Está casado com Lalla Salma desde 2002 e, pela primeira vez na história do país, cedeu-lhe um título real: no caso, Princesa Consorte de Marrocos. "A fotografia oficial [em que o monarca se encontra de pé a olhar carinhosamente para a mulher sorridente que, de calças e cabelos soltos, está agachada a cuidar do pequeno filho de ambos] mudou muito o país", conclui.