Fugas - Viagens

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A cidade que nunca dorme afinal é aqui

Por Inês Nadais

Por aqui passa a fractura invisível que divide a Europa: sucessivamente destruída e sucessivamente reconstruída, Belgrado foi demasiadas vezes uma cidade impossível para quem lá vive, quanto mais para turistas. Hoje, não só é possível como é possível (e desejável) a todas as horas.

O semáforo do cruzamento entre as ruas Miloseva e Nemanjina fica verde, depois vermelho, depois verde, depois vermelho — como em qualquer outra cidade europeia àquela hora do dia, a qualquer hora do dia, uma mulher corre para apanhar o autocarro sem largar o guarda-chuva, um homem caminha apressado para o escritório sem largar o telemóvel, o trânsito pára, depois arranca, depois pára, depois arranca. Como em nenhuma outra cidade europeia àquela hora do dia, a qualquer hora do dia, militares armados patrulham dois edifícios-fantasma, vigiando as últimas ruínas de uma longa e repetitiva história de destruição e de reconstrução — ruínas de um passado muito recente, um passado quase presente, que é impossível não lamber (como se lambe uma ferida) quando se está em Belgrado.

Mais de 14 anos depois, Belgrado já não está exactamente neste cruzamento onde a 7 de Maio de 1999 a NATO bombardeou as instalações siamesas do Ministério da Defesa — um edifício a multiplicar por dois desenhado pelo arquitecto Nikola Dobrovic no pós-Segunda Guerra Mundial, quando as feridas a lamber ainda eram outras, a partir da imagem mental do desfiladeiro de um rio da Bósnia que em 1943 foi cenário de uma batalha sangrenta entre a resistência partizan e o exército nazi. Tal como o trânsito, Belgrado parou aqui, e depois arrancou. Sem largar as suas esplanadas, sem largar os seus cafés, que imaginamos sempre cheios, como agora, mesmo em 1999 — mas é fácil imaginar quando não se esteve lá.

Não tem sido preciso imaginar, aqui. Desde que Belgrado é Belgrado, a cidade foi massacrada mais de 40 vezes, algumas delas no século XX, algumas delas de forma bastante gráfica (basta dizer que, na fase mais turbulenta da Segunda Guerra Mundial, os animais fugiram do jardim zoológico e andaram à deriva pela cidade, como num filme de Emir Kusturica). Faz parte de estar ali, em cima da fractura invisível que há séculos divide a Europa ao meio entre o Leste e o Oeste: em sítios destes, às vezes a terra treme. O que talvez explique esta urgência de beber cafés, fumar cigarros e ficar a pé fora de horas enquanto está quieta.

É disso que nos fala Simonida, a guia que nesta primeira tarde em Belgrado nos conduz ao sítio onde a cidade terá começado, a Citadela de Kalemegdan, para mostrar como é "auspicioso" o sol a pôr-se atrás da confluência do Sava com o Danúbio. De costas para os tanques e para os misséis do Museu Militar, de frente para as curvas e para as contracurvas dos dois rios, Simonida aponta para os bairros novos da outra margem, como a estátua do homem nu (o Monumento da Vitória) que em 1928 o conservadorismo do centro da cidade não quis aceitar, e conta mais uma história de reconstrução: uma história com 110 metros da altura, o tamanho da Torre Usce, que em tempos foi a sede do Comité Central da Liga dos Comunistas da Jugoslávia e que recentemente, depois de danificada pelos aviões da NATO, não só se recompôs dos estragos como ainda cresceu dois andares, provando que o que não mata Belgrado engorda-a.

Aos pés da torre, o edifício mais alto da Sérvia, e em quase todas as outras dobras do Sava e do Danúbio, as luzes começam a acender-se dentro das dezenas de bares flutuantes — os splavovi — onde Belgrado se transforma na cidade que nunca dorme.

Havemos de ir ali, diz Simonida. E à praia. Gozar a vida.

 

Deixar-se estar
Com cerca de 1,5 milhões de habitantes (dois milhões se se contar com os arredores) e um volume de turistas bastante residual quando comparado com o de outras capitais vizinhas da Europa central (a começar por Budapeste) ou das praias da Croácia, Belgrado mantém a escala — ou pelo menos o modo de vida — de uma pequena cidade onde os ovos continuam a comprar-se à senhora que todas as semanas viaja do campo para abastecer as clientes habituais, os livros escolares continuam a vender-se (mas nada de fotografias!) nas malas dos carros e os negócios continuam a fechar-se com copos de aguardente (rakija) de ameixa em cima da mesa gasta de uma taberna (kafana). É impossível, neste fim de tarde em que atravessamos o centro depois da introdução à anatomia de Belgrado na Citadela de Kalemegdan, não invejar esta maneira de estar — melhor, esta maneira de se deixar estar — nas esplanadas às oito da noite de uma segunda-feira, como se a vida pudesse esperar.

É uma sociedade de cafés, esta — o hábito sobreviveu ao desaparecimento das kafanas do século XIX (altura em que havia uma para cada 20 habitantes, e com alto grau de especialização: sabia-se a que kafana se devia ir para encontrar um canalizador, ou um actor, ou um escriturário) e ao aparecimento dos inevitáveis Starbuck’s da globalização.

Simonida volta a apontar, desta vez para as fotografias antigas da cidade que fazem, juntamente com traduções de Gonçalo M. Tavares, a montra do café-livraria Biblioteka: "Ver fotografias antigas de Belgrado é algo que nos agrada muito. Travaram-se 115 batalhas pela cidade, sobretudo durante a ocupação otomana, e mais de 40 foram bastante destrutivas. Também é por isso que o centro é uma mistura de tantos estilos arquitectónicos diferentes."

Por esta altura, já vimos o Parlamento, de estilo Academia, o Palácio dos Correios, de estilo neo-bizantino, o Hotel Moskva e a Estação Telefónica Central, de estilo Arte Nova, e o Centralna Banka, de estilo realismo socialista — mas além destes há muitos outros edifícios singulares que mal chamam a atenção nas avenidas cacofónicas do centro de Belgrado porque há demasiado tempo que esperam por uma operação séria de reabilitação capaz de os devolver ao esplendor original. E sobretudo, porque o centro também é uma zona densamente universitária frequentada por estudantes de Filosofia e Belas-Artes, já vimos galerias e livrarias. Muitas livrarias (e não estamos sequer a contar com as que cabem na mala de um carro), várias delas abertas até tarde, algumas delas abertas ao domingo.

Aparentemente, são bem mais frequentadas do que os museus, quase todos bastante old-school, por que vamos passando — o Museu Nacional, eternamente em obras embora parcialmente disponível para exposições, o Museu da História da Sérvia, que já está fechado quando tentamos entrar, o Museu de Arte Contemporânea, com uma colecção internacional impressionante mas desde 2008 encerrado para obras de renovação que ninguém sabe quando irão terminar, e o Museu da História da Jugoslávia, situado no mesmo complexo que o memorial dedicado a Tito e que não teremos tempo para visitar. Resta-nos o Museu Nikola Tesla, uma bela villa dos anos 20 que guarda o vasto arquivo — cerca de 160 mil documentos originais e mais de 1.200 objectos e modelos científicos — do inventor (1856-1943) que desbravou o admirável mundo novo das ondas electromagnéticas nas suas experiências bastante futuristas em Long Island e que os sérvios garantem ter sido o verdadeiro inventor do rádio (contra Marconi), além do visionário que previu a ideia de uma rede de telecomunicações global (embora não lhe tenha chamado Internet).

É o tipo de museu de que só se sai depois de sobreviver a uma descarga de 500 mil volts (mais uma vez: aqui o que não mata engorda), e portanto com energia suficiente para ainda seguir a pé pelas ruas do bairro residencial de Vracar até ao Mercado Kalenic (ver capítulo "Onde comer" do Guia de Viagem) e daí até ao Parque Karadordev, onde a Sérvia está a acabar de construir a segunda maior igreja ortodoxa do mundo (o Templo de S. Sava) no exacto local onde duas igrejas anteriores foram destruídas, uma por cada guerra mundial.

E agora sim, vamos à praia. Gozar a vida.

A noite de Belgrado

A apenas quatro quilómetros do centro da cidade, Ada Ciganlija é a praia que Belgrado nunca teve. Mesmo já não sendo Agosto, há raparigas a tomarem banhos de sol nas mesas de piquenique espalhadas pelo parque e as cadeiras das esplanadas estão postas como para uma grande festa, ao som da inesgotável música dos anos 80 que parece nunca passar de moda na Europa Central. É aqui, explica Simonida, que os habitantes de Belgrado vêm gozar a vida na água (há aulas de natação e de esqui aquático, gaivotas e barcos para alugar) ou nas zonas verdes da ilha, uma espécie de grande ginásio ao ar livre onde é possível praticar de tudo, da patinagem ao ténis, do minigolfe ao futebol, da corrida ao bungee jumping. Isso durante o dia, porque também é aqui que Belgrado vem dançar à noite durante os meses de Verão.

Mas também se dança em Belgrado durante o Inverno — mesmo quando há bombas a caírem, como em 1999. Foi nessa década de desintegração, guerra civil, sanções económicas, hiperinflação e desemprego-recorde que a noite da cidade se transformou numa das mais activas da Europa, informa o sítio local Belgrade at night, um dos muitos exclusivamente dedicados ao assunto. E depois veio a NATO. "Os bombardeamentos forçaram os habitantes de Belgrado a levar a diversão ainda mais a sério. Confrontados com a ameaça diária de perder a vida, começámos a organizar enormes concertos nas praças e nas pontes, enquanto alguns dos mais famosos clubes começaram a funcionar mesmo durante as horas do dia.

Mais de 14 anos depois, a urgência não se perdeu e hoje a noite de Belgrado é repetidamente caucionada como a melhor da Europa por publicações como o Times, o Guardian e o Lonely Planet. Os habitantes de Belgrado continuam a levar a sua diversão tão a sério que, por dez euros, uma "instituição" informal, a Nightlife Academy (www.nightlifeacademy.com), inicia os recém-chegados no interminável labirinto de bares e discotecas flutuantes e não-flutuantes da cidade (a Kafana Class, uma das três aulas disponíveis neste ano lectivo, é mais cara: 25 euros).

É justamente por uma kafana, a Ima Dana — uma kafana bastante engalanada para receber turistas, mas ainda assim fiel ao espírito boémio do século XIX que faz de uma noite no bairro de Skadarlia uma experiência fora do tempo —, que Simonida começa a explicar-nos como se goza a vida em Belgrado. Comendo muita carne, bebendo muita rakija e fumando muitos cigarros, suspeitamos quando chegamos. Não é só: parte da experiência passa pelas canções (quase sempre sobre "homens que sofrem por amor") que o trio de músicos toca sem parar junto a mesas de estrangeiros ou de festas de anos. Há uma que Simonida traduz: "Quero comprar uma garrafa/ E ficar bêbado/ Para que todos saibam/ Que me vais deixar."

Alguns quilómetros abaixo, na zona do porto — que agora serve sobretudo cruzeiros e embarcações de recreio —, os restaurantes também se transformam em bares a partir das 22h, mas a música, embora ao vivo, é outra. Tal como é outra no Kasa, a cave fumarenta e aparentemente só para locais onde depois de um jantar finalmente não-carnívoro num dos restaurantes (que obviamente também é bar!) mais hipster da cidade, o Diagonala, acabamos a última noite a imaginar, muitos copos de rakija depois, que talvez estas canções entoadas ao desafio por homens de todas as idades também sejam de amor.

Em três noites, acabámos por não ir a nenhum dos mais lendários clubes de Belgrado — e por nem sequer ir espreitar o terraço do Basta, mais do que uma vez recomendado já não sabemos bem por quem. "Há demasiados bares em Belgrado, mas a verdade é que estão sempre todos cheios", diz Simonida. Há demasiados bares em Belgrado mas já estão todos fechados quando saímos do Kasa — a não ser um que os taxistas dizem ainda estar aberto, mas que depois de várias tentativas e erros não conseguimos encontrar.

São praticamente 6h da manhã em Belgrado e há um bar aberto — não há música mas serve folhados e pizzas e fica mesmo em frente ao hotel. Dormir não é uma opção. Para isso ficávamos em casa.

 

GUIA PRÁTICO

Quando ir
O Verão pode ser glorioso em Belgrado: é a época alta dos banhos de água doce (com ou sem biquíni) em Ada Ciganlija, a ilha artificial no Sava onde Belgrado, que ainda não se refez de ter perdido o Adriático com a desintegração da Jugoslávia, faz de conta que tem mar. É de facto uma praia para ninguém pôr defeito, equipada com tudo aquilo a que uma verdadeira praia tem direito — incluindo muitas gaivotas para pedalar, decks de cimento e espreguiçadeiras de lona para torrar ao sol, dezenas de bancas de gelados e, cereja no topo de bolo, uma bandeira azul —, mas há um preço a pagar e é mais alto no Verão: em Julho e Agosto, Ada Ciganlija chega a receber mais de 150 mil visitantes por dia. Já em Setembro, quando lá fomos molhar os pés, as espreguiçadeiras eram todas nossas (ok, e também de uns quantos reformados bastante bronzeados) e a água continuava de mergulhar e chorar por mais. É a primeira razão de força maior para que, na hora de opinar sobre a altura ideal para visitar Belgrado, votemos no Outono, mas há outras: é a altura em que volta a ser possível invejar a maneira como os belgradinos, de regresso a casa depois de umas férias numa praia a sério da Grécia ou do Montenegro, fumam e falam da vida furiosamente nas suas esplanadas, em que os bares flutuantes do Danúbio ainda não hibernaram para escapar ao frio e aos nevões do Inverno e em que os teatros reabriram para receber acontecimentos como o Beogradski Jazz Festival, que este ano decorre de 24 a 28 deste mês. É possível que, indo nessa altura, o turista acidental português se sinta inusitadamente em casa: Júlio Resende e Maria João encerram, com o espectáculo Fado and Further, a 29.ª edição do festival (e ainda há Vijay Iver, pelo qual várias mãos se têm posto no fogo sem se queimar, provando que talvez seja mesmo o melhor pianista de jazz da actualidade).

 

Como ir

Não há, por enquanto, nenhum voo directo entre Portugal e Belgrado, mas também não é preciso dar uma volta muito grande para lá chegar. A FUGAS viajou com a TAP até Budapeste (a partir de 300 euros) e daí atravessou todo o Norte da Sérvia até à capital — cerca de quatro horas e meia de viagem com vista para os viçosos campos de milho e de girassóis da Voivodina. Outras vantagens desta opção, além da vista: a experiência da fronteira servo-húngara, um dos melhores postos de observação da vida como ela é num dos limites Sul da União Europeia (famílias inteiras e toda a tralha que acumularam durante a vida apinhadas em Yugos, viajantes solitários em motoretas que não se percebe como ainda estão inteiras), e a possibilidade, havendo tempo, de parar em Subotica, um ponto importante no mapa balcânico da Arte Nova.

Há vários comboios diários entre Budapeste e Belgrado e também uma empresa, a Geatours a fazer o serviço em mini-autocarro por 25 euros — porta-a-porta, ainda por cima. Mas também é possível fazer o percurso completo em avião, claro: a FUGAS fez uma simulação num motor de busca para as datas do Beogradski Jazz Festival e encontrou ligações via Zurique (primeira parte com a TAP, segunda parte com a JAT) por 301 euros (ligeiramente mais se a partida for do Porto). O aeroporto Nikola Tesla fica apenas a 18 quilómetros (e não a 370...) do centro de Belgrado — o que, pelo mesmo dinheiro, é um bónus irrecusável.


Onde dormir

Embora o turismo ainda não seja propriamente uma indústria em Belgrado, o parque hoteleiro da capital sérvia actualizou-se consideravelmente nos últimos anos, sobretudo no segmento low-cost. Causas prováveis: a chegada da Wizzair ao aeroporto Nikola Tesla e o aumento da procura de visitantes sub-35 que ali desembarcam em cada vez maior número para conhecer a nova capital europeia da vida nocturna.

Alguns dos melhores quartos mais baratos (até 30 euros) estão no Green Studio Hostel e no mais politizado Hostelche — sim, esse Che —, ambos bastante centrais e bastante premiados nos sites especializados.

No extremo oposto da lista está o Metropol Palace, o mítico cinco estrelas de Belgrado desenhado, já em modo realismo socialista (abriu em 1957), pelo famoso arquitecto sérvio Dragisa Brasovan — membro da rede Luxury Collection Hotels, é um dos hotéis mais luxuosos dos Balcãs (tarifas a partir de 200 euros) mas certos itens do serviço, a começar pelo decepcionante pequeno-almoço, não são tão luxuosos assim. Não deixa de continuar a ser o sítio onde fica quem Belgrado quer receber melhor (e já recebeu Igor Stravinsky, Neil Armstrong e Elizabeth Taylor, entre outros ilustríssimos convidados).

Cerca de cem euros abaixo ficam o belíssimo Hotel Moskva, num edifício Arte Nova de 1907 onde Gorki, Einstein, Hitchcock e Gandhi pernoitaram em tempos e onde continuam a comer-se, num salão de chá maravilhosamente old-school, os melhores bolos de Belgrado; e o muito mais recente Belgrade Art Hotel, com design italiano e uma localização imbatível, na principal rua pedonal da cidade. Bem mais longe do centro, mas literalmente com os pés no Danúbio, destaca-se o Arka Barka, um bed&breakfast flutuante onde os quartos duplos custam 48 euros, com pequeno-almoço incluído.


Onde comer

Antes de sentarmos os leitores à mesa, é preciso fazer um aviso prévio: os sérvios são apaixonadamente carnívoros e nenhuma refeição local digna desse nome escapará com vida a essa fatalidade imprópria para vegetarianos — aos quais adoram dizer que um verdadeiro jantar local mete carne na entrada, carne no prato principal e carne na sobremesa (e nós também adoramos que sejam tão politicamente incorrectos).

Posto isto, também convém dizer que a cozinha em Belgrado é bastante internacional e que é possível não comer carne mesmo sem fugir à gastronomia sérvia — por exemplo, começando por uma sopa de cogumelos, seguindo para um burek (pastel) de queijo com muita salada no prato ao lado (os tomates e os pimentos vermelhos são felizmente omnipresentes) e acabando com uma baklava de ameixas ou de maçã. Claro que não será a mesma coisa: o que pode um vegetariano fazer, por exemplo, num restaurante daqueles clássicos como o Ima Dana onde depois do gigantesco prato de carnes fumadas aparece um gigantesco prato de carnes grelhadas? Pouca coisa, além de se atirar ao pão (que na Sérvia normalmente é de milho e na verdade bastante delicioso) e barrá-lo com ajvar (uma espécie de dip à base de pimentos vermelhos) ou kajmak (uma espécie de nata coalhada mais ou menos amarela e intensa, conforme o grau de "envelhecimento").

Questões de dieta alimentar à parte, o bairro de Skardarlija, que Belgrado publicita como o seu Montmartre (também foi um centro da boémia artística no final do século XIX), é um dos sítios óbvios (talvez demasiado óbvios) para se levar um turista a jantar. Come-se de facto muito bem (e sobretudo muito), mas se a ideia é fazer uma viagem no tempo e aterrar numa genuína kafana (ver texto principal) vale a pena procurar o ? (não é engano, o nome deste restaurante é mesmo um ponto de interrogação), aberto e a servir galinha recheada e borrego cozinhado em panela de ferro desde 1823.

Outra instituição, esta aberta desde 1937 mas a praticar uma bastante satisfatória cozinha de fusão (e sabendo a overdose de carne que nos espera não há como resistir ao bife de atum com abacate...), é o Madera, com uma enorme esplanada em pleno Parque Tasmajdan onde a FUGAS viu comer todo o tipo de VIP, desde uma das várias ex-mulheres do futebolista Lotthar Matthäus a uma ligeiramente caída em desgraça pivô de televisão (coisas do Facebook...).

A FUGAS sentou-se ainda à mesa dos ligeiramente mais descomprometidos Public Dine & Wine, com vista para o Danúbio, e Diagonala. O orçamento, claro, teria ficado a ganhar com uma refeição num dos estaminés do Mercado Kalenic, onde à hora do almoço trabalhadores de fato-macaco empurram sandes de carnes fumadas com a cerveja local. Além de ser um bom sítio para comer, o mercado também é um bom sítio para comprar produtos caseiros e cem por cento artesanais: tudo, do ajvar ao kajmak, das compotas aos sumos, das frutas aos ovos.


Uma crónica alternativa da Jugoslávia, das receitas de Tito às ruínas da NATO


É possível que a regra tenha sido quebrada mais do que uma vez, mas não ao ponto de deixar de ser a regra: mesmo quando viajava (e viajou muito, como Presidente da Jugoslávia e como líder do Movimento dos Não-Alinhados, que fundou em estilo numa cimeira no Hotel Metropol Palace em 1961), o marechal Josip Broz Tito (1892-1980) nunca comia fora. Talvez não soubesse o que perdia, mas sabia o que ganhava: o mundo continuava em guerra, ainda que fria, e Tito sabia que um jantar, ainda que quente, também podia ser uma arma. Ele, pelo menos, preferia andar armado. Não viajava sem o seu próprio chefe de cozinha nem sem o seu próprio cabaz alimentar, rigorosamente inspeccionado à partida e à chegada. Mas sobretudo não viajava sem Branko Trbovic, o químico que durante várias décadas usou como escudo pessoal contra o risco bastante realpolitik de um envenenamento.

Terá sido também graças a ele (e, claro, ao efeito nada negligenciável de não haver eleições livres na sua Jugoslávia não-alinhada mas nem por isso multipartidária) que Tito sobreviveu imperturbavelmente a mais de 30 anos de liderança. E é seguramente graças a ele que hoje podemos saber que no Outono de 1977, quando Ramalho Eanes o recebeu à mesa em Lisboa, os dois comeram um strogonoff – preparado, claro, por um cozinheiro jugoslavo. A receita desse strogonoff, assim como dezenas de outras que Tito mandou cozinhar, em casa ou no estrangeiro, para os seus convidados internacionais (de Estaline a Sophia Loren), acompanha uma fotografia a preto e branco desse jantar muito de época mais ou menos a meio das 253 páginas de Tito’s Cookbook, um livro de culinária que é também uma crónica alternativa dos anos em que a Jugoslávia ainda era a Jugoslávia.

Disponível para entrega em todo o mundo via Amazon, mas em lugar de grande destaque na loja de souvenirs mais hipster de Belgrado, mesmo em frente ao posto de turismo da Knez Mihailova, o álbum compilado por Anja Drulovic é apenas a ponta do icebergue da Titomania que nos últimos anos parece ter-se instituído como desporto nacional (ainda assim menos popular do que o basquetebol) não só na Sérvia como, genericamente, em toda a ex-Jugoslávia.

Mesmo tendo morrido em 1980 (e tido talvez o maior funeral de Estado de todo o século XX, com 209 delegações vindas de 128 países e incluindo 31 presidentes, quatro reis, seis príncipes e 22 primeiros-ministros), Tito continua vivo em t-shirts e serviços de chá, porta-chaves e esferográficas, nomes de ruas e estátuas de aldeia, mealheiros e marcas de água mineral, graffiti e bonés, isqueiros e postais (e contra nós falamos, porque foi impossível resistir a este Tito de óculos de sol e calções de banho que apanha sol numa ilha croata no Verão aparentemente auspicioso de 1949).

A "nostalgia vermelha"

A académica Mitja Velikonja, que decidiu estudar o fenómeno numa tarde em que estava a tomar café em Liubliana e reparou que Tito a observava do alto de um pacote de açúcar, faz um inventário dessa omnipresença em Titostalgia A Study of Nostalgia for Josip Broz (2008), um livro que começa por perguntar "o que é que Tito significa, aqui e agora?" para concluir que a vida que Tito teve depois da sua morte (uma vida sentimental, mas também uma vida comercial) é apenas o capítulo jugoslavo de um fenómeno disseminado por toda a Europa pós-comunista, do Báltico aos Balcãs: a "nostalgia vermelha".

"A imagem positiva de Tito que persiste hoje tem menos a ver com o tipo de pessoa que ele realmente foi do que com o tipo de pessoa que os nostálgicos de hoje gostariam que tivesse sido", escreve, sublinhando o efeito analgésico que a Titostalgia (uma forma mais simples, e seguramente mais gráfica, de dizer Jugostalgia) parece exercer sobre as inevitáveis dores da transição num país como a Sérvia, que ao contrário das outras ex-repúblicas jugoslavas perdeu tudo o que tinha a perder.

Mas se a história da Jugoslávia de Tito é, como sublinha Velikonja, "a história de um paraíso perdido que nunca existiu na realidade", o paraíso fica em Belgrado — mais exactamente no bairro chique de Dedinje, onde Tito teve a sua residência e hoje está enterrado num discreto túmulo de mármore debaixo de uma enorme clarabóia, de acordo com a sua vontade expressa.

Parte de um complexo que inclui ainda o Museu da História da Jugoslávia (o ex-Museu 25 de Maio e ex-Museu da Revolução das Nações Jugoslavas e das Minorias Étnicas foi a prenda que a cidade ofereceu a Tito no seu 70.º aniversário) e o Museu Velho (onde está exposta uma parte dos cerca de quatro mil objectos oferecidos ao Presidente jugoslavo no âmbito das suas viagens dentro e fora do país), a Casa das Flores foi construída em 1975 como jardim de inverno para o trabalho e o repouso do marechal. Não é o mais esplendoroso dos memoriais (desde 1992 que não há guarda de honra nem flores frescas), mas continua a ser um local de peregrinação obrigatório para os titomaníacos que todos os anos, no dia 25 de Maio, ali continuam a festejar, com os seus lenços de pioneiros ao pescoço, o aniversário de uma figura para todos os efeitos fundadora — fenómeno que tem, de resto, uma réplica não menos concorrida na pequena aldeia croata de Kumovec, onde Tito nasceu em 1892.

Aí, em Kumovec, se iniciou a história já não alternativa mas oficial da grande Jugoslávia — a mesma história que continua a acabar diariamente em Belgrado, sempre que alguém (não só os turistas, também aquele senhor já não muito novo de saco plástico na mão) pára no cruzamento das ruas Miloseva e Nemanjina para fotografar o que resta do antigo Ministério da Defesa.

Em tempos um impressionante edifício modernista do arquitecto Nikola Dobrenovic, é, desde os bombardeamentos da NATO que em 1999 fizeram cair o céu em cima da cabeça da Sérvia de Milosevic para o fazer abrir mão do Kosovo (depois da Eslovénia, depois da Croácia, depois da Bósnia-Herzegovina, depois da Macedónia), a mais impressionante das ruínas da cidade — embora haja outras, um pouco mais à frente na rua Miloseva e um pouco mais para cima junto à Igreja de São Marcos, numa esquina do Parque Tasmajdan, onde a sede da televisão nacional ficou desfeita, matando 16 funcionários e ferindo outros 16.

São cada vez menos, no entanto, esses lugares onde Belgrado ainda está em carne viva e exibe as cicatrizes de um final bastante apocalíptico (os números nunca foram confirmados pela NATO, mas a Sérvia estima que mais de 2.500 pessoas terão perdido a vida nos 78 dias de bombardeamentos da Operação Força Aliada). Há já dois anos que a torre da televisão do Monte Avala voltou a funcionar. Vimo-la em tamanho real quando saímos de Belgrado, mas também a vimos nas t-shirts que os novos designers desenharam para vender a turistas na loja hipster do centro da cidade — tal como Tito, ela também teve direito a uma segunda vida.

Topola, o mito fundador

Os blocos de apartamentos são às dezenas até que se sai de Belgrado pela Porta Leste, e a paisagem socialista dos blokovi se transforma na Sérvia real, rural, que poderia sozinha alimentar todo o país. A partir daqui, 77 quilómetros até Topola, que é como quem diz até ao mito fundador da nacionalidade: foi ali que começou de facto uma Sérvia (e uma Jugoslávia) independente dos turcos.

É uma história esquecida, pelo menos para quem já nasceu numa altura em que dizer Jugoslávia era o mesmo que dizer Tito, mas o projecto material de uma federação dos eslavos do Sul é mais antigo do que isso: começa exactamente em 1918 como Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (a designação Reino da Jugoslávia só seria adoptada 11 anos mais tarde).

E é assim que, directamente saídos do memorial de Tito, a Casa das Flores, recuamos ainda mais para trás no tempo até outro mausoléu, onde estão enterrados os reis da dinastia Karadjordjevic, descendentes directos do grande herói da luta contra a ocupação otomana. Karadjordjevic, que liderou o Primeiro Levantamento Sérvio (1804-1813) à frente de um exército não-profissional de camponeses, também dorme aqui, na Igreja de S. Jorge, centro de um complexo que inclui ainda a residência modesta onde viveu o seu neto Pedro I (rei entre 1903-1921) e, mais abaixo, o Museu do Levantamento.

Ao longo do século XIX, a sua casa alternou no trono da Sérvia com outra, fundada pelo seu braço-direito e mais tarde assassino Milos Obrenovic – mas durante a primeira metade do século XX, a primeira metade da Jugoslávia, os Karadjordjevic mantiveram-se no poder, apesar das guerras (as balcânicas e as mundiais) e das vicissitudes.

Ainda hoje continuam na Sérvia – o príncipe herdeiro Alexandre, pretendente ao trono, vive em Belgrado desde 2001, defendendo activamente a transição da actual república para uma monarquia constitucional de tipo parlamentar.

Em Topola, porém, não é disso que se trata – antes do orgulho dos sérvios na proeza que é terem fundado a sua própria dinastia, quando todos os países vizinhos tiveram a mandar neles dinastias estrangeiras. O mausoléu em estilo sérvio-bizantino, todo em mármore branco por fora e em mosaico por dentro (60 artistas recrutados no país e na Rússia percorreram os mosteiros medievais sérvios para reproduzir em Topola os mosaicos mais impressionantes), é o sítio onde a Sérvia se festeja como nação independente e ao mesmo tempo faz o luto pelos seus mortos: apenas um dia depois da conclusão da Igreja de S. Jorge, o rei Pedro I foi combater pessoalmente na primeira guerra balcânica (1912-1913), em que milhares de homens perderam a vida.

A história conta-se, em parte, na pequena casa onde viveu, mesmo em frente ao mausoléu, com a ajuda de documentos históricos como a declaração de guerra da Áustria-Hungria em 1914, os diários de guerra do próprio monarca e um ícone da Última Ceia em madrepérola que Hermann Göring terá mandado pessoalmente confiscar.

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A Fugas viajou a convite da TAP e do Turismo da Sérvia

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