Fugas - viagens

Marko Djurica/Reuters

Os sons que a Sérvia merece

Por André Cunha e Mauro Mascioli

Os corpos já foram "cansados para casa" do último EXIT, festival que há 10 anos ajudou a derrubar Milosevic. André Cunha e Mauro Mascioli estiveram com um pé em Novi Sad, mas deram também um pulo à tradicional Guca, onde uma outra Sérvia se prepara para assinalar as bodas de ouro do maior festival de trompetes do mundo. Duas orgias musicais onde, mesmo com sono, é impossível o corpo ser estátua. Duas ou a mesma Sérvia?

"Eu não sabia que era possível tocar trompete desta maneira”. Assim anónima, a frase pouco vale. Na boca de Miles Davis, talvez se tornasse no mais forte slogan publicitário do maior festival de trompetes do mundo. “Miles Davis?!”, pergunta Vladimir, 23 anos. “É um cantor? Não conheço, nunca esteve aqui”. O nome também não ecoa no resto da equipa da Kafana Dragacevo.

Guca está parada e silenciosa como a estátua do trompetista que, ali em frente, toca virado para o nascer do sol. Ao lado, o museu do trompete há-de ser uma das cerejas do bolo da 50.ª edição da Assembleia de Trompetistas. Um velho Fica (o mítico Fiat 500 da Jugoslávia) está estacionado na primeira fila. Também ele terá meio século de vida. Em fundo, as colinas da Sumadija, tão ou mais verdes do que o Portugal do anos 60 que o escritor jugoslavo Ivo Andric chamou “terra verde”.

O sino da pequena igreja ortodoxa, em frente à qual quatro pequenas bandas começaram a aventura em Outubro de 1961, interrompe o silêncio a alguém que dizia: “A vila precisa de um ano para descansar de uma semana de loucura”. Essas badaladas e as cigarras do fim de tarde hão-de ser inaudíveis no despique caótico de trompetes de todos os acordes e feitios que, de 13 a 22 de Agosto, hão-de lutar pelo trompete de ouro. A quinquagésima edição receberá várias dezenas de orquestras sérvias, que passam por uma fase de qualificação antes do festival, transformando Guca na fase final da Liga dos Campeões do Trompete. Este ano, o estádio da vila acolherá ainda um concurso apenas para grupos estrangeiros.

Não tarda, as mesas da Kafana hão-de ser pequenas para tanta comida, tal como a vila de três mil habitantes há-de ser minúscula para meio milhão de visitantes aos saltos, vindos de todos os cantos da Sérvia e do mundo. Todos se sentirão em casa, promete Vladimir. “Vem a este divertimento louco, que serás recebido como parte da família e não como um estrangeiro. Abraçamos-te e beijamos-te da mesma maneira. Somos todos iguais”, sorri o empregado, que amplifica o convite ao dizer que “os três maiores festivais do mundo são Guca, o Carnaval do Rio e o festival de cerveja de Munique”, apontando para as duas cervejas acabadas de chegar à mesa.

Nesta mesa, voltarão provavelmente a caber os pés de Ana, por entre montanhas de leitão, salada de couve, kajmak (especialidade sérvia entre a manteiga e o queijo) e muitas rakijas (aguardente local), quando ela se voltar a serpentear, dançando mesmo ali em cima, abraçada ao trompete do Mestre Boban Markovic, tocando a Mesecina (que signifi ca luar), uma das eternas músicas da região, vendidas ao mundo por Goran Bregovic. Talvez paradoxalmente, ele é um dos convidados de honra para as 50 velas. Provavelmente apenas a prova de que Guca se comercializa. Jovica Slavkovic, um dos historiadores do festival, poderá falar nisso em mais um futuro livro, mas agora ele deve estar a ir ali à mercearia comprar algumas bebidas para nos receber daqui a pouco, na varanda do seu jardim. A lua, sempre mentirosa, ainda não espreita sobre o ombro da estátua do trompetista.


Lua nova, lua cheia

“Se não tens imaginação para ver que ali está a Lua, não podes vir ao EXIT!”, exclama a espanhola Bárbara, de olhos num enorme balão de luz branca que, por cima da torre do relógio do castelo de Petrovaradin, faz de imaginária lua cheia em semana de lua nova, em Novi Sad. Desde 2000, a capital da região da Voivodina acolhe o outro peso-pesado da maratona de festivais em que se transformou o Verão sérvio. “EXIT seria porque se estava a virar o milénio...”, diz, numa hipótese algo distraída, Bárbara, enquanto corpos semidespidos pelo Julho quentíssimo e pela rakija ou cerveja sobem a colina sobre o Danúbio, num cenário perfeito para um festival de música. Dez anos depois, não é preciso explicar a Bárbara à boca fechada, tal como o festival se divulgou quando nasceu, em 2000, o mote daquela célebre edição 00 que baptizou o projecto: “Exit (Saída) para 10 anos de loucura”, numa referência à década de Milosevic, que ainda estava no palco do poder.

Ivana Hatezic faz o seu olhar brilhar mais do que o luar quando conta como fugiu ao conselho da mãe, que lhe disse para não ir a Novi Sad “porque aquilo estava cheio de agentes secretos” e Ivana já tinha ficha! A veterana do EXIT explica que, em 2000, “aquilo foi um movimento de 100 dias, com concertos, filmes e outras actividades culturais”. A primeira edição do festival, ainda realizada no relvado em frente à Faculdade de Filosofia, terminaria pouco tempo antes das eleições que levaram à saída de cena do homem que roubou muita música à geração de Ivana. “Em 94 vieram os Prodigy, em 96 os Kiss e mais nada até 2000...” - e ainda que aqui me apetecesse interrompê-la para lhe lembrar que os Madredeus também furaram esse muro, continuo a escutá-la explicar que “o EXIT foi uma porta para o mundo”. “Em 2000, unimo-nos para derrubar Milosevic. Em 2001, já no castelo, foi para festejar: estamos livres! O espírito era incrível. Lembro-me de perguntar a um dos voluntários da organização onde era a casa de banho. Ele abriu os braços para toda a enorme fortaleza, riu-se e gritou que ali tudo era casa de banho!”.

Dez anos passados, sempre no primeiro fim-de-semana de Julho, tudo é agora organizado profissionalmente para receber os milhares de festivaleiros, que às vezes são já mais estrangeiros do que sérvios, a ponto de o EXIT ter sido considerado o melhor festival europeu em 2007. Uma das mais fiéis da tribo, hoje com 31 anos, Ivana soa nostálgica: “O EXIT deixou de ser único. Também já é um pouco pão e circo. Durante alguns anos foi contra o sistema, agora faz parte dele. É talvez esse o destino de qualquer grande festival. Nos últimos anos, perdeu as suas causas sociais ou políticas. As pessoas adormecem outra vez. Estão passivas e o festival está mais passivo. Não é preciso ter outra revolução, mas o festival vendeu-se um pouco. Cada EXIT devia ter uma mensagem forte a unir aqueles quatro dias”.

Temas como a reconciliação na antiga Jugoslávia ou o tráfico de seres humanos nos Balcãs deixaram de estar na ordem do dia dos organizadores que, este ano, não se lembraram de tentar voltar a assinalar o massacre de Srebrenica, cujo 15.º aniversário voltou a coincidir com o EXIT, tal como o 10.º em 2005, quando um minuto de silêncio em homenagem às vítimas foi cancelado por ameaças à segurança do festival.

Mesmo perdido esse “ADN revolucionário”, parece que a palavra mágica faz Ivana ter saudades do futuro... Vais ao EXIT, no próximo ano? “Claro que sim! Recomendo-o a toda a gente. É um festival muito divertido!”.

Ela também já foi várias vezes a Guca, mas apenas pela música: “Ouço o concurso de orquestras no estádio até à meia-noite, que é fantástico, e fujo para casa para dormir. Não consigo suportar o nacionalismo que acontece à volta do festival propriamente dito”. Que também acaba por ser o próprio festival, reconhece: “A Sérvia é Guca ou EXIT. Os políticos tentam dizer que é Guca e EXIT, mas não é. Eu não consigo estar ao lado de alguém que diz ‘Mladic é o nosso herói’ e eles não conseguem estar ao meu lado quando eu digo que temos de ter uma parada gay nas nossas ruas. Por isso digo que o EXIT devia usar o seu poder para falar mais alto do que a outra Sérvia, mas Guca está a tornar-se mais ruidosa do que o EXIT”.

Ivana escolheu este ano o dia do concerto dos Faith No More e não viu por isso outro dos cabeças de cartaz, os Placebo. Pergunto-lhe se a imagem de um longo e profundo beijo na boca entre dois homens, projectada em fundo numa das músicas cantadas por Brian Molko, terá sido a nota solta que sobreviveu na pauta ideológica do EXIT deste ano. Ivana responde de olhos em Guca: “Se alguém pusesse um beijo assim lá, haveria uma reacção muito negativa”.


Electrónica versus rock

Na plateia pouco apertada dos Placebo (a crise também tocou aqui), uma outra Ivana, que tinha 13 anos na estreia do EXIT, aceita, com algumas reservas, continuar este postal, nem sempre fácil de focar, das duas Sérvias. “O EXIT é mais importante para os pró-europeus e Guca para os mais tradicionalistas. Não são totalmente dois extremos porque há estrangeiros que vão a ambos. Mas o EXIT tem mais pessoas diferentes. São loucuras diferentes. Cada povo é um pouco louco quando tem de festejar”, afirma esta ex-estudante de Português em Belgrado.

“Têm os povos as músicas que merecem”, poderia responder-lhe Saramago, mas Ivana prefere concluir argumentando que os sérvios não merecem “o estereótipo que todos eles, tal como acontece em Guca, bebem muita rakija e comem muita carne e acabam debaixo da mesa!”.

Do relvado do palco principal, Ivana Ivkovic seguiu para o palco Fusão, para ouvir uma banda croata. Apontando para o vasto programa de mais de duas dezenas de palcos espalhados por todo o castelo de Novi Sad, ela chama a atenção para “as bandas da Croácia e da Bósnia-Herzegovina”. “Os jovens fazem intercâmbios culturais e isso é muito importante contra as intolerâncias que ainda permanecem”.

A maior corrente humana não seguira a direcção da Ivana Júnior e já desaguara no gigante anfiteatro quase lunar da Dance Arena, com mais gente do que os Placebo. A música electrónica ganha o cartaz do público e as últimas batidas do último DJ de serviço haveriam de acelerar as cabeças bem para lá do nascer do sol.

"Normalidade difícil"

O EXIT será então um festival “Lost in Transition”, perdido na transição? “Sim, comercializou-se”, concorda a Ivana mais velha, “normalizou-se”. Então a Sérvia já é um país normal? “Não. Nós nunca seremos um país normal porque nós não somos, em geral, pessoas muito normais”.

Mais de 200 quilómetros a sul, de regresso ao largo que em meados de Agosto será o centro do mundo do trompete, o empregado de mesa Vladimir alinha no mesmo tom: “Na Sérvia tudo é difícil. Também o modo de tocar trompete em Guca é difícil”, de ouvido, sem notas, num ritmo caótico disparado por estas kalashnikovs sonoras, que antes e depois das actuações no estádio invadem todos os tascos improvisados pelas ruas, em jeito de arraial. Os músicos (a grande maioria de origem rom) hão-de passar saliva nas notas de mil dinars e colá-las à testa. Quem desembolsou essa gorjeta larga receberá em troca um ou dois trompetes a tocar a poucos centímetros, às vezes mílimetros, do seu próprio ouvido.

Madness made in Serbia, é o slogan que um dos sites não oficiais de Guca escolheu para esta falta de rede. “Loucura. É mesmo assim”, comenta a cozinheira da Kafana Dragacevo, que nos acompanha até ao jardim de Jovica Slavkovic antecipando as honras da casa: “Ele é um advogado e pintor que já escreveu vários livros sobre o festival e foi o seu director vários anos”.

No jardim do septuagenário Jovica, a conversa, de memória mais fresca do que as cervejas que ele tinha ido buscar à mercearia, é um livro aberto, sem tabus, de um biógrafo de Guca. Algumas notas: “Há homens que nascem com o trompete debaixo da almofada (...). O trompete saiu para o mundo e o mundo veio para Guca. Vêm muitos estrangeiros agora. O trompete era a alma do povo, mas, tal como toda a música no século XXI, está a mudar... Perde-se um pouco o espírito tradicional, o que desagrada às gerações mais antigas como a minha (...) Este ano hão-de chegar as vuvuzelas!”.

A vitória da comercialização? “Guca, tal como o EXIT, é uma marca”. Também uma marca de poder? “Todos usam Guca para fazer marketing político”. Todos? Tito veio ao festival? “Não”. Milosevic? “Também não, mas Mladic veio em uniforme militar em 99. E depois vieram Zoran Djinjic (primeiro-ministro pró-europeu assassinado em 2004), Kostunica e o actual presidente”. Há fotos de todos, menos de Mladic, num dos livros de Jovica, mas a face do principal responsável pelo genocídio de Srebrenica ainda a monte, estará estampada em algumas t-shirts à venda nas barraquinhas que vão atropelar os passeios da vila. Boris Tadic, o chefe de estado, deverá inaugurar a 50.ª Assembleia de Trompetistas, para a qual também foram convidados Vladimir Putin e Barack Obama, pelo que reza a Wikipedia, que também assegura que Miles Davis esteve em Guca.

Esteve? “Esteve a neta do Charlie Chaplin...” E o Miles Davis, esteve ou é um mito? E disse que não imaginava que era possível tocar trompete daquela maneira? “Esteve também o Maradona, com o Kusturica... Estão todos aqui no livro”. Mas desculpe, Jovica, e o Miles Davis? Tem a certeza se ele esteve em Guca ou não? “Creio que não esteve”. Risada geral e alguém propõe um brinde: “Ziveli, Miles Davis!”


Mais perto da lua

Jovica nunca tocou trompete, mas aos 72 anos tem tanta energia como o instrumento. Entre o pôr-do-sol e o nascer da lua, leva-nos, em poucos minutos, a um flashback pelos tronos do festival. Outra vez a estátua, a igreja onde tudo começou, a placa que enumera os mestres do trompete, o estádio da grande final a 21 de Agosto. E mais memória refrescada pela terceira rodada de cervejas, porque em sérvio “a terceira é a da sorte”. Sorte para ouvir o anfitrião contar que a bandeira com o instrumento de Guca já esteve no topo do Evereste, em 2000, mais perto do céu para onde o cosmonauta soviético Viktor Savinih já tinha levado antes a fotografia que tirou em 86 junto a um trompete do festival.

No Evereste e na estação espacial MIR, o trompete de Guca esteve mais perto do que nunca da lua. “Não”, aponta Jovica para cima das colinas ao fundo, “porque a lua está aqui”. Não, digo-lhe eu, aqui está aquela flor, para onde aponto. Sabe como é que ela se chama? “Qual, aquela em forma de trompete? Não, não sei...”.

Era uma trompeteira solitária, junto a algumas rosas púrpuras. Também se chama corneta de anjo ou trompete de anjo. Tem um perfume mais intenso à noite. O seu cheiro talvez chegue à última noite do festival, véspera de lua cheia, e o poder alucinogénico daquele trompete de anjo (que pode levar à morte) há-de libertar o diabo em Guca. E o último dos festivaleiros que adormecer ali junto à pequena trompeteira, à sombra do luar, talvez sonhe que Miles Davis visita finalmente Guca e diz que “não sabia que era possível tocar trompete daquela maneira”.


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