Ouço bater as sete da manhã no sino do velho tribunal, um monstro vermelho que parece saído de um filme de Walt Disney. É o castelo da bruxa má, ou talvez da princesa encantada, às vezes não é fácil distingui-las. Estou na Dealey Plaza, em Dallas, onde Kennedy foi assassinado há cinquenta anos (22 de Novembro é a data exacta). É o segundo lugar mais visitado do Texas, dois milhões de pessoas por ano, só superado pelo mítico Forte Alamo, em San Antonio. E, mal raia o dia, eis que assomam, junto à esquina do antigo Depósito de Manuais Escolares do Texas, que agora alberga o Sixth Floor Museum, figuras ligeiramente equívocas que, num simples relance, percebemos logo não serem turistas.
Quando Oswald foi preso, no Texas Theater, o filme em exibição (ou um dos filmes, à época eram sempre dois seguidos) era um obscuro Cry of Battle, que em Portugal se chamou Quando os Abutres Voam. Ora aí está um título apropriado à atmosfera que se respira aqui. Qualquer pessoa que pare a ler uma das placas explicativas espalhadas pela praça, que olhe em volta com ar interessado, em suma, que não atravesse o lugar com a passada decidida e o ar convicto do nativo é imediatamente abordada por uma destas aves necrófagas. Numa cidade em que tanta gente tenta ganhar dinheiro à custa do assassínio de JFK, estes homens constituem a franja mais baixa e mais ostensiva do fenómeno, uma espécie de proletariado deste ramo de negócio.
No primeiro dia calha-nos o globetrotter do macabro. Estou sozinho, a escrever no meu caderno de apontamentos, enquanto o meu amigo e fotógrafo Peter Josyph deambula pela praça em busca dos melhores ângulos. “Estás a escrever um livro?” Ora aí está uma abordagem tão boa como qualquer outra. Negro, crânio rapado, dentes muito tortos, roupa desportiva vistosa, calções largos e ténis enormes. Respondo que não, que estou só a tirar umas notas. O desconhecido cavalga a oportunidade resultante do facto de eu não lhe ter virado costas nem me ter afastado de imediato e lança-se na sua lengalenga acerca do assassínio de JFK, cujo objectivo principal é vender-me por vinte dólares uma revista medonha, de grande formato e cores berrantes, onde pontificam, em sinistro destaque, as fotografias da autópsia de Kennedy em todos os ângulos possíveis e imaginários. Trata-se de uma espécie de colectânea profusamente ilustrada das mais descabeladas teorias da conspiração. Para os menos abonados há também uma espécie de versão abreviada em forma de jornal. Todos os guias que ganham o sustento aqui na Dealey Plaza os trazem em grandes sacolas e os tentam impingir aos turistas. Todos? Não... Bom, já lá iremos.
Aproveito uma pausa no desbobinar mecanizado e monocórdico de ideias desvairadas por parte do recém-chegado (“Talvez não saibas que havia um segundo atirador, e também um terceiro, que fugiram pelas canalizações do esgoto. Repara bem nas grelhas ali no chão, junto à berma do passeio, foi por ali que eles se meteram para fugir...”) e faço algumas perguntas para lhe perfurar a carapaça e o fazer interromper a prelecção. Chama-se Charles Billups e nasceu aqui em Dallas, diz que tinha cinco anos quando JFK foi assassinado. Custa-me a crer, não lhe dou mais de 35, mas adiante. Exprime-se com muitos gestos, parece um pregador carismático. Porém, quando começa a falar de si, da sua vida, dir-se-ia que desliga o piloto automático e o sorriso desponta-lhe mais facilmente, o tom de voz baixa. Há 25 anos que se dedica a este ofício de guia turístico de locais de assassínios e suicídios de gente famosa.
“Fiz visitas guiadas em Memphis, na mansão de Elvis Presley, Graceland. Depois estive uns tempos no Lorraine Motel, também em Memphis, onde assassinaram Martin Luther King. Depois fui para a Califórnia, fazer as visitas ao Ambassador Hotel onde assassinaram o senador Robert Kennedy.” Aí, as coisas tornaram-se um bocadinho mais difíceis, porque em Los Angeles não havia propriamente uma estrutura organizada, um museu ou uma casa-museu de cuja “boleia” Charles Billups pudesse beneficiar. Foi preciso sacar dos trunfos todos, improvisar. Charles, que em tempos fora cozinheiro, teve de se insinuar junto do chef do Ambassador (foi na cozinha deste restaurante que Sirhan Sirhan emboscou Robert Kennedy em 1968, recorde-se) e o negócio lá acabou por se fazer. A troco de umas massas por cabeça, Charles pôde iniciar as visitas turísticas clandestinas ao local. Não sem antes levar a cabo a sua pesquisa acerca das circunstâncias do crime. Sim, Charles Billups faz questão de sublinhar que é um profissional sério, não anda a vender gato por lebre.
Um turista passa junto de nós, Billups salta sobre a presa, retoma o seu tom mecanizado, impinge-lhe a história estafada do homem do chapéu-de-chuva preto que, postado sobre duas lajes especiais do passeio da Elm Street (“Repara, são de uma cor diferente das outras, certo?”), fez sinal ao atirador para disparar o primeiro tiro. Gesticula com veemência, erguendo três vezes um chapéu-de-chuva imaginário, num folhear célere encontra a página da revista com a imagem certa, um fotograma do filme Zapruder onde surge o tal fulano da sombrinha, e mente descaradamente, dizendo que o dinheiro da venda das revistas reverte para a manutenção e limpeza da Dealey Plaza. O turista parece hipnotizado, apressa-se a comprar a revista, passa-lhe para a mão a nota de vinte dólares.
Billups ajeita a pesada sacola a abarrotar de revistas que traz a tiracolo, retoma a conversa comigo e, ante o meu comportamento talvez atípico, muda de táctica. “Sabes, a polícia tem câmaras de infravermelhos aqui na praça, no alto dos prédios.” Quando penso que vou ver emergir mais um tentáculo do polvo conspirativo, logo me desengano. O polvo agora é outro. “Há uns tempos, um tipo tentou vender droga aqui na Dealey Plaza. Já era quase de noite, mas caçaram-no com as câmaras, filmaram o número da nota que o outro lhe deu.” Hum... estou portanto metido numa reedição da cena do Taxi Driver em que o traficante de armas se vira para Robert De Niro e lhe pergunta: «O que é que queres mais? Droga? Charros? Mescalina? E que tal um Cadillac? Queres que eu te arranje um Cadillac cor-de-rosa?» Acabo por lhe dar cinco dólares para posar para uma fotografia do Peter. Aqui, na Dealey Plaza, tempo é dinheiro, e ele desperdiçou imenso tempo comigo.
Regressamos no dia seguinte, às seis da manhã, a tempo de assistirmos aos primeiros passos deste bailado fascinante. Aproxima-se de mim um fulano branco, de rosto e corpo bastante enfrangalhados pelas investidas do tempo. Chama-se Ronald D. Rice, e se ontem nos calhou o globetrotter do turismo sanguinolento, hoje estamos perante o decano dos guias da Dealey Plaza. Ron considera-se superior (muito superior, até) aos restantes pseudoguias que aqui ganham a vida. “Sou o guia que anda nesta praça há mais tempo — dezanove anos seguidos.” Caso único, não vende revistas nem jornais. Em vez disso, traz debaixo do braço dois grandes cartões plastificados com uma panóplia de imagens e diagramas respigados aqui e ali para lhe servirem de muleta nas suas explicações. Fotografias macabras, desfocadas, feias, como não podia deixar de ser. “Não cobro uma quantia certa. Vivo exclusivamente das gorjetas. Quem não gostar da minha visita guiada não tem de pagar sequer um cêntimo.” Faltam-lhe os dentes da frente, fuma sem parar, tem os cantos dos olhos descaídos, a pele curtida e áspera. Diz que a praça nunca esteve tão bonita, tão limpa e arranjada, mas que os turistas são muito poucos, em comparação com o passado. Nos tempos que se seguiram ao filme JFK, de Oliver Stone, de 1991, os visitantes eram aos magotes, e Ron chegou a conduzir visitas para grupos de 40 ou 50 pessoas. “Agora isto está às moscas, nem mesmo o quinquagésimo aniversário vai trazer muita gente. Mal dá para uma pessoa sobreviver. Tenho a minha pensão de veterano, mas é uma ninharia, ao fim de quatro ou cinco dias já não me sobra nada.”
Afirma ter sido ele quem traçou no asfalto da Elm Street as duas cruzes brancas a assinalar os lugares do primeiro e do segundo tiros que atingiram Kennedy há cinquenta anos. “Mas este ano vou-me reformar, estou cansado disto tudo. Daqui em diante, não sei quem irá retocar as cruzes de cada vez que estiverem estragadas.” Varre a praça com os olhos constantemente, em busca de potenciais alvos para exercer o seu ofício, afasta-se de mim sempre que vê um transeunte promissor, garante-me que irá voltar para continuarmos a conversa. São oito da manhã, é dia de semana, aos poucos o trânsito adensa-se. De vez em quando passa um comboio a ranger, clamoroso, no viaduto por baixo do qual o Lincoln negro presidencial desapareceu a acelerar, com o presidente moribundo ou já morto no banco de trás.
Aproveitando uma pausa na conversa, decido proceder a um exercício. Naquela sexta-feira de 1963, logo após o último tiro, um polícia da escolta saltou da moto e correu pela escada que sobe ao encontro da vedação de tábuas, no alto do grassy knoll, porque lhe pareceu ter visto ali uma nuvem de fumo. A escada tem 21 degraus, separados em dois lanços. Largo a minha moto imaginária junto ao passeio, corro pela escada acima o mais depressa que consigo, chego ao limite da vedação de tábuas, irrompo no parque de estacionamento que já aqui estava há meio século. Volto para trás, recomeço. Faço várias tentativas: a minha média é de 15 segundos. Dá tempo de sobra para um atirador esconder a arma no porta-bagagens de um carro, para ele próprio se esconder. E pronto, acabo de dar o primeiro passo para entrar no clube dos conspiracionistas encartados. A parte de trás das tábuas da vedação funciona como mural onde, numa absoluta democracia e respeito mútuo, se alinham lado a lado as mensagens mais contraditórias pelo punho de visitantes anónimos, sem que ninguém apague, risque ou mutile os dizeres alheios. Troça e pesar, desvario e grandiloquência coexistem pacificamente. “O assassino foi o motorista.” E ao lado: “Que se f... a Reserva Federal.” E ao lado: “R.I.P. JFK”, com o esboço de uma pequena sepultura que parece saído de um desenho animado.
De longe, vejo Ron abordar um jovem casal de turistas no relvado central. O rapaz furta-se, faz um gesto de recusa com as mãos, visto assim de repente Ron é talvez um bocadinho assustador. Mas ele não se deixa vencer às primeiras, abre os braços, mostra-se conciliador, exibe os cartazes, leva a sua avante. A visita guiada, que começou junto à enorme bandeira americana, vem terminar um quarto de hora depois junto ao pedestal onde o agora famoso Abraham Zapruder, à época anónimo vendedor de roupa feminina, se empoleirou para filmar a passagem de Kennedy, com uma assistente a agarrar-lhe as pernas para não se desequilibrar. O jovem casal de turistas paga-lhe, agradece, afasta-se. Eu e Ron retomamos a conversa interrompida.
À medida que os outros guias vão chegando à Dealey Plaza, ele aponta-mos e diz deles o que Mafoma não diz do toucinho. “Aquele ali é um drogado, fuma crack, vive numa casa ali em cima, do outro lado do viaduto, com mais três viciados.” Indico Charles Billups, que avisto lá ao fundo, junto à loja do museu, a fazer pela vida, falo a Ron da conversa que tive na véspera com o seu rival. “Devias ter-lhe perguntado por que é que correram com ele de Memphis. Estes tipos são todos uns drogados, vendem droga nas ruas aqui à volta. Ainda têm a lata de se dizer guias turísticos. Só querem impingir aquelas revistas, não sabem peva do que aqui se passou.” Não há nada como denegrir a concorrência para tentarmos promover o nosso produto neste mundo cão.
Nasceu em Indianapolis, Indiana, tinha oito ou nove anos no dia do atentado, estava na sala de aula. Começaram a chegar os autocarros escolares muito antes da hora, Ron e os colegas viram-nos pela janela, ficaram em pulgas. A voz do director pelo sistema de som anunciou que o presidente fora assassinado, que a escola ia fechar por aquele dia. Mas depois o director deve ter achado que alguns garotos não conheciam a palavra “assassinado”, e então repetiu: “O presidente foi morto.” E, durante o fim-de-semana inteiro, nem um único desenho animado na televisão, só notícias em todos os canais, é disso que Ron se recorda melhor.
Pergunto-lhe se gosta de Dallas. Hesita, ou talvez seja só uma pausa teatral. “Gostar, gosto. Mas acho que não me vou apaixonar por ela.” Depois de umas boas gargalhadas, acrescenta que os texanos não são lá muito simpáticos, tratam os outros exactamente como os outros os tratam a eles: são afáveis com as pessoas afáveis, rudes com as pessoas rudes. Observa que muitos habitantes de Dallas têm vergonha pelo facto de o presidente ter sido assassinado na sua cidade, mas que há seis ou sete outras cidades dos Estados Unidos que não se importariam nada que o crime tivesse ocorrido numa das suas praças, para ganharem fortunas com o turismo. Acaba a repetir os seus queixumes, que o movimento na Dealey Plaza já não é o que era, que se vai reformar no final do ano, que as duas cruzes no asfalto vão deixar de ser substituídas, os carros que passam irão apagá-las, a chuva e o sol irão esfarelá-las aos poucos sem que ninguém faça nada. Faz pose para a fotografia do Peter com um ar cansado, recebe a minha nota de cinco dólares, dita-me a sua morada e pede que lhe enviemos um dos retratos, porque precisa de renovar o cartão de identificação que traz ao pescoço numa pequena mica, como os meninos das escolas quando vão em visita de estudo. Penso com os meus botões que talvez ele não se vá reformar assim tão cedo, afinal de contas.
No momento em que nos afastamos, ele ergue a mão para se despedir, diz-nos adeus, e eu vejo no seu olhar tisnado por mil sóis e sinto naquela sua voz áspera como lixa a convicção resignada de que não iremos cumprir a promessa, não lhe iremos enviar a tal fotografia. Engana-se.
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As reportagens em Dallas são financiadas no âmbito do projecto Público Mais
Especial JFK
Ao longo desta semana, ?o PÚBLICO tem mais sobre ?os 50 anos da morte de JFK. Domingo, na revista 2 siga os passos de Lee Harvey Oswald, personagem central do homicídio mais discutido de sempre. Durante a semana, no ?o PÚBLICO, uma série de cinco crónicas texanas do tradutor Paulo Faria. ?E na sexta-feira um especial, ?com textos e fotogalerias, ?sobre o presidente americano assassinado há 50 anos.