Fugas - Viagens

  • BARBARA DAVIDSON/DALLAS MORNIN
  • RONALD MARTINEZ/AFP
  • Graffiti na parte traseira da vedação de estacas
    Graffiti na parte traseira da vedação de estacas PETER JOSYPH
  • Ron Rice com o seu cartaz plastificado e um cartão  ao pescoço  que anuncia: “Sou veterano da tropa, não cobro tarifa fixa”.
    Ron Rice com o seu cartaz plastificado e um cartão ao pescoço que anuncia: “Sou veterano da tropa, não cobro tarifa fixa”. PETER JOSYPH

Profissão: guia turístico de conspirações e assassínios

Por Paulo Faria

Chegam bem cedo, antes dos turistas, e disputam o terreno uns aos outros palmo a palmo. Contam a história do atentado de JFK à sua maneira, carregam nas tintas conspirativas e não recuam perante nenhuma tese, mesmo a mais mirabolante. A competição é feroz, o negócio já conheceu melhores dias. São os guias turísticos oficiosos da Dealey Plaza, em Dallas, que há 50 anos testemunhou o assassínio do então presidente dos EUA.

Ouço bater as sete da manhã no sino do velho tribunal, um monstro vermelho que parece saído de um filme de Walt Disney. É o castelo da bruxa má, ou talvez da princesa encantada, às vezes não é fácil distingui-las. Estou na Dealey Plaza, em Dallas, onde Kennedy foi assassinado há cinquenta anos (22 de Novembro é a data exacta). É o segundo lugar mais visitado do Texas, dois milhões de pessoas por ano, só superado pelo mítico Forte Alamo, em San Antonio. E, mal raia o dia, eis que assomam, junto à esquina do antigo Depósito de Manuais Escolares do Texas, que agora alberga o Sixth Floor Museum, figuras ligeiramente equívocas que, num simples relance, percebemos logo não serem turistas.

Quando Oswald foi preso, no Texas Theater, o filme em exibição (ou um dos filmes, à época eram sempre dois seguidos) era um obscuro Cry of Battle, que em Portugal se chamou Quando os Abutres Voam. Ora aí está um título apropriado à atmosfera que se respira aqui. Qualquer pessoa que pare a ler uma das placas explicativas espalhadas pela praça, que olhe em volta com ar interessado, em suma, que não atravesse o lugar com a passada decidida e o ar convicto do nativo é imediatamente abordada por uma destas aves necrófagas. Numa cidade em que tanta gente tenta ganhar dinheiro à custa do assassínio de JFK, estes homens constituem a franja mais baixa e mais ostensiva do fenómeno, uma espécie de proletariado deste ramo de negócio.

No primeiro dia calha-nos o globetrotter do macabro. Estou sozinho, a escrever no meu caderno de apontamentos, enquanto o meu amigo e fotógrafo Peter Josyph deambula pela praça em busca dos melhores ângulos. “Estás a escrever um livro?” Ora aí está uma abordagem tão boa como qualquer outra. Negro, crânio rapado, dentes muito tortos, roupa desportiva vistosa, calções largos e ténis enormes. Respondo que não, que estou só a tirar umas notas. O desconhecido cavalga a oportunidade resultante do facto de eu não lhe ter virado costas nem me ter afastado de imediato e lança-se na sua lengalenga acerca do assassínio de JFK, cujo objectivo principal é vender-me por vinte dólares uma revista medonha, de grande formato e cores berrantes, onde pontificam, em sinistro destaque, as fotografias da autópsia de Kennedy em todos os ângulos possíveis e imaginários. Trata-se de uma espécie de colectânea profusamente ilustrada das mais descabeladas teorias da conspiração. Para os menos abonados há também uma espécie de versão abreviada em forma de jornal. Todos os guias que ganham o sustento aqui na Dealey Plaza os trazem em grandes sacolas e os tentam impingir aos turistas. Todos? Não... Bom, já lá iremos.

Aproveito uma pausa no desbobinar mecanizado e monocórdico de ideias desvairadas por parte do recém-chegado (“Talvez não saibas que havia um segundo atirador, e também um terceiro, que fugiram pelas canalizações do esgoto. Repara bem nas grelhas ali no chão, junto à berma do passeio, foi por ali que eles se meteram para fugir...”) e faço algumas perguntas para lhe perfurar a carapaça e o fazer interromper a prelecção. Chama-se Charles Billups e nasceu aqui em Dallas, diz que tinha cinco anos quando JFK foi assassinado. Custa-me a crer, não lhe dou mais de 35, mas adiante. Exprime-se com muitos gestos, parece um pregador carismático. Porém, quando começa a falar de si, da sua vida, dir-se-ia que desliga o piloto automático e o sorriso desponta-lhe mais facilmente, o tom de voz baixa. Há 25 anos que se dedica a este ofício de guia turístico de locais de assassínios e suicídios de gente famosa.

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