Cresceu depressa demais. Responsabilidades de adulto em corpo de criança. Tinha 13 anos e colocava cones de fios nos teares de uma fábrica têxtil de Barcelos. Escondia-se na casa de banho quando os fiscais apareciam sem avisar para passar a empresa a pente fino. Nunca foi apanhado pelos senhores de poucos sorrisos. Aos domingos à tarde trocava jogos de futebol com os amigos pelos 500 escudos que lhe pagavam por um trabalho extra que aparecia na fábrica quando a pujança da indústria têxtil se respirava nas ruas de Barcelos. Sonhava de olhos abertos ser mecânico de máquinas de costura.
“Era uma criança armada em adulto. Dava cabeçadas nas carteiras em vez de aprender como devia”, admite. Os pais insistiam para que abrisse os livros, aprendesse para um futuro como deve ser, mas o pequeno não queria nada com a escola, queria trabalhar, fazer-se à vida. “Comecei a trabalhar cedo, mas não sentia isso como uma obrigação”. Os tempos eram outros. “As motivações eram outras e que hoje dificilmente encontramos nos mais jovens. Tinha 13 anos e fazia o que gostava”.
Trabalhava de dia, estudava à noite, corria depois das aulas terminarem. Pedia ao irmão para levar a sua mochila na mota e fazia um treino até casa, de Barcelos a Vilar do Monte. Cinco quilómetros pela frente na noite que caminhava para madrugada. Começou a competir no Núcleo Desportivo da Silva com os olhos postos no seu ídolo, Carlos Lopes, o campeão olímpico português, no auge de uma carreira que o levaria a ser considerado referência mundial do atletismo de longa distância.
Saltitou de fábrica em fábrica à medida que o sector têxtil ia perdendo fôlego. Terminou o 12.º ano nas Novas Oportunidades. Mais tarde, aproveitaria a formação em alpinismo para se equilibrar em andaimes e lavar janelas de prédios altos, contratado por uma empresa que percorria o país.
Hoje Carlos Sá dedica-se ao desporto a tempo inteiro. Participa nas competições mais complicadas do mundo, nas escaladas mais arrojadas de sempre. Organiza estágios e provas de corrida que chegam a juntar quase dois mil atletas — chegou ontem da Argentina onde passou as duas últimas semanas a partilhar a experiência de subir e descer o Monte Aconcágua de quase sete mil metros e com apenas 30 por cento de oxigénio em relação ao nível do mar. Enche polivalentes de escolas a falar da fibra que é preciso ter para vencer na vida, da importância de traçar metas e planear objectivos. Fala de motivação, liderança, espírito de sacrifício, capacidade de resistência em sessões organizadas para empresas.
É seu o recorde do mundo na ascensão do Monte Aconcágua, na Argentina, o ponto mais alto da América e de todo o hemisfério sul, com 15 horas e 40 minutos. Em Julho, venceu a duríssima Badwater, disputada no Vale da Morte, na Califórnia, que une o ponto mais baixo ao mais alto dos Estados Unidos. Foi o primeiro português a atingir tamanha façanha. Correu 217 quilómetros durante 24 horas e 38 minutos.
O adulto em corpo de criança percebeu cedo, e na própria pele, o verdadeiro significado do esforço, do suor. E o passado reflecte-se no presente. “O espírito de sacrifício começou desde muito cedo e ajudou-me muito na resistência psicológica”. Mas a criança também sabia brincar e espírito aventureiro não lhe faltava. “No ciclo preparatório, trocava o autocarro pela bicicleta e competia com o autocarro a maior parte das vezes”, recorda. Quase sempre chegava em primeiro lugar.
As provas de atletismo sucediam-se e Carlos não faltava à chamada. A sua capacidade de resistência não passava despercebida a quem percebia de corridas de duas pernas e no pódio das competições nacionais havia sempre um lugar à sua espera. O pai, que alimentava o sonho de ter um filho desportista, criou a Associação Desportiva e Cultural Águias de S. Mamede. Carlos tinha 10 anos e ajudava como podia. Batia à porta dos comerciantes de Barcelos a pedir patrocínios para as corridas, para os atletas.
Aos 19 anos parou de correr. “Entrei na idade da parvalheira. Descobri outro mundo e experimentei tudo o que havia para experimentar”. Não se arrepende, mas o corpo iria ressentir-se da decisão. O ponteiro da balança chegou aos 96 quilos em 1,74 metros de altura. Fumava dois maços de tabaco por dia. “O meu filho, com apenas três anos, imitava-me a fumar com pauzinhos, com o que lhe aparecia à frente. Era uma imagem que não podia dar ao meu filho e foi ele que me fez mudar de vida”. Quase 10 anos depois, voltou à estrada para retomar um percurso interrompido.
Estufa no quintal
Os primeiros sinais de que queria vir ao mundo chegaram na véspera do Natal de 1973, em Vilar do Monte. A mãe estava a descascar as batatas para a ceia de 24 de Dezembro, mas as contracções anunciavam a chegada do segundo filho. Foi levada para o hospital de Barcelos e Carlos Sá nasceria antes do calendário passar para o dia 25. A caminho dos 40 anos, Carlos Sá vive em Vilar do Monte, aldeia de Barcelos de onde nunca saiu, numa casa ao lado dos pais.
As medalhas acumulam-se nos armários e no quintal de 700 metros quadrados cultiva os alimentos que mete à boca e aos quais dá a maior importância. Construiu uma estufa e por ali nasce feijão, batatas, tomates, alfaces, praticamente todos os legumes que precisa para manter o corpo em máxima forma. Saudável da cabeça aos pés. Tem também animais. “Patos, frangos, coelhos, tudo criado em casa”. Carlos Sá sabe que os ovos têm outras proteínas quando as galinhas têm liberdade para esgravatar na terra. Prefere tudo ao natural. “São pequenos grandes pormenores”, diz o atleta que conhece bem o seu corpo e sabe do que precisa para aguentar horas e horas a correr e para cortar fitas de metas.
Em Julho deste ano, o atleta de Barcelos entrou para a história do desporto mundial. Venceu a Badwater, no Vale da Morte, nos Estados Unidos, considerada uma das corridas mais duras do mundo, equivalente a cinco maratonas sem intervalos. A imprensa norte-americana deu-lhe o merecido destaque, os medias europeus também e os posts que ia colocando no Facebook eram visualizados por mais de 180 mil pessoas. O telemóvel não parou de tocar e à porta do avião, no regresso a Portugal, ainda atendia chamadas de jornalistas. Foi recebido em clima festa no aeroporto do Porto. Trazia uma medalha de 15 dólares que confirmava uma vitória que ficará para a história do país e do mundo. No seu regresso a casa houve festa rija em Vilar do Monte.
Foi o primeiro português a participar e o primeiro a ganhar numa estreia que lhe deixou um sorriso sincero no rosto. Foi duro, mas a 70 quilómetros de terminar a prova, o ultramaratonista português acreditou que seria possível chegar em primeiro lugar. Estavam inscritos 98 atletas de 22 países. “É uma prova de grande resistência psicológica, os músculos ficam no limite”. O auto-controlo do atleta é fundamental. “Conheço bem o meu corpo, acima das 150 pulsações começo a entrar em esforço”. Na Badwater, depois de 15 horas a correr, o coração batia a 135 pulsações. Partiu com o mexicano que tinha vencido a edição anterior. Nada melhor do que perceber os passos do vencedor mais recente. Correram lado a lado alguns quilómetros, mas o mexicano acabaria por não aguentar o ritmo do português, aconselhando-o a ir em frente.
Na prova estava um atleta brasileiro que muitos reconheciam como forte candidato ao título e que arrancou com vontade. Carlos Sá não deu importância ao favoritismo e acabou por ultrapassá-lo a 15 quilómetros por hora. A meta aproximava-se e chegava-lhe a indicação que atrás de si, a 12 minutos, vinha um australiano bastante fresco. O ultramaratonista português decidiu manter o ritmo e não arriscar aumentar a velocidade sob o risco de o corpo ceder. Mesmo a correr com velocidades altíssimas, mais de 50.º graus, que lhe derreteram o chip de identificação, manteve a calma e acabou por vencer. O australiano ficou em segundo e o mexicano, o primeiro companheiro de viagem, em terceiro.
Carlos Sá tinha metido na cabeça que queria participar na Badwater, mesmo faltando alguns pequenos requisitos num currículo tão preenchido. Enviou um email para o organizador da prova com uma grande dose de confiança que poderia funcionar ou não. Escreveu que queria participar na ultramaratona e que acreditava que podia vencer.
A inscrição foi validada. Seguiu-se outra fase. Reunir apoios, formar uma equipa. Não foi fácil. A um mês de partir, faltavam coisas importantes. Formou uma pequena equipa de quatro pessoas, médico incluído, para o acompanhar e conseguiu patrocínios. Chegou aos Estados Unidos com vontade de confirmar o que tinha escrito no email. “Arranjámos uma carrinha de apoio, de sete lugares, que pouco depois de arrancar começou a acender as luzes”, recorda.
A viatura aguentou-se, Carlos também com apenas cinco paragens nos 270 quilómetros — quatro para urinar e uma para confortar o estômago com mais calma, num abrir e fechar de olhos, 30 segundos no máximo. O tempo custou a passar e as elevadas temperaturas distorciam-lhe a paisagem que lhe parecia sempre igual. “Ao fim de quatro, cinco horas, parecia que estava no mesmo sítio. Ao fundo, via uma linha preta. Não há ambiente mais hostil para testar limites”.
O corpo preparado com antecedência tentava cumprir as ordens do cérebro. A cabeça em muitas outras coisas, também em Barcelos, em Vilar do Monte, no filho de 14 anos, na filha de oito. “A família é a base de tudo isto”, garante. Nessa corrida, perdeu seis quilos. “Uma corrida é quase como um período da nossa vida”, diz. Para o ano, lá estará outra vez. “Nem que esteja manquinho, mas estarei na linha de partida”, brinca.
É um homem da aldeia. Nas ruas de Barcelos há poucos que não o conhecem e muitos que ficam sentidos se o atleta não pára para um cumprimento mão na mão e dois dedos de conversa. Marca o nosso encontro no coração de Barcelos, perto da igreja e a dois passos do extenso parque de estacionamento que às quintas-feiras se transforma numa das maiores feiras do país. Fato de treino vestido, calções por baixo, sapatilhas calçadas, mochila às costas com o computador onde guarda parte da vida. Chega à hora marcada.
Na terra onde nasceu e vive, gostaria que houvesse mais condições para a prática do desporto. Sabe do que fala. O rio Cávado segue a sua vida ali perto e o atleta lembra-se quando aquelas águas apareciam tingidas de cores garridas que denunciavam as escolhas das fábricas têxteis que palpitavam ao redor. Hoje gostaria que a zona ribeirinha de Barcelos fosse reabilitada e tivesse um visual mais atractivo para quem gosta de mexer o corpo. “É um cenário fantástico”, comenta, enquanto olha para o rio e sugere que mais adiante ficaria bem uma ponte que ligasse as duas margens.
Obstinado, persistente, focado, disciplinado, calmo, sereno, Carlos Sá sabe o caminho para chegar onde quer. Há uma palavra que gosta de substituir no seu vocabulário. “Não gosto de chamar provas, mas sim desafios”. Treina todos os dias, sobretudo na serra do Gerês e na serra D´Arga. “Temos de estar focados. Torna-se muito difícil passar 200 vezes no mesmo sítio e à mesma hora”. Continua apaixonado pelo atletismo, pelo alpinismo e outros desportos outdoor. Tem uma motivação: “Ando em busca dos meus limites, mas felizmente ainda não os encontrei”. E garante que não há uma fórmula infalível para partilhar. “Não existe um comprimido milagroso, o comprimido está na nossa cabeça”.
O atleta é saudado do outro lado da rua, ali bem perto do centro de Barcelos. Não adia o cumprimento, olhos nos olhos, mão na mão. “Vão andando que eu já vos apanho”, diz-nos. E nós sorrimos.