Fugas - Viagens

  • Nelson Garrido

A Barcelos de Carlos Sá

Por Sara Dias Oliveira

Em Janeiro conquistou o recorde do mundo no Monte Aconcágua, na Argentina. Em Julho venceu a ultramaratona Badwater nos Estados Unidos e ganhou uma medalha de 15 dólares. Aos 13 anos trabalhava numa fábrica têxtil, estudava à noite, treinava depois das aulas, ajudava o pai na associação desportiva da aldeia. No próximo ano voltará à corrida mais dura de todas.

Cresceu depressa demais. Responsabilidades de adulto em corpo de criança. Tinha 13 anos e colocava cones de fios nos teares de uma fábrica têxtil de Barcelos. Escondia-se na casa de banho quando os fiscais apareciam sem avisar para passar a empresa a pente fino. Nunca foi apanhado pelos senhores de poucos sorrisos. Aos domingos à tarde trocava jogos de futebol com os amigos pelos 500 escudos que lhe pagavam por um trabalho extra que aparecia na fábrica quando a pujança da indústria têxtil se respirava nas ruas de Barcelos. Sonhava de olhos abertos ser mecânico de máquinas de costura. 

“Era uma criança armada em adulto. Dava cabeçadas nas carteiras em vez de aprender como devia”, admite. Os pais insistiam para que abrisse os livros, aprendesse para um futuro como deve ser, mas o pequeno não queria nada com a escola, queria trabalhar, fazer-se à vida. “Comecei a trabalhar cedo, mas não sentia isso como uma obrigação”. Os tempos eram outros. “As motivações eram outras e que hoje dificilmente encontramos nos mais jovens. Tinha 13 anos e fazia o que gostava”. 

Trabalhava de dia, estudava à noite, corria depois das aulas terminarem. Pedia ao irmão para levar a sua mochila na mota e fazia um treino até casa, de Barcelos a Vilar do Monte. Cinco quilómetros pela frente na noite que caminhava para madrugada. Começou a competir no Núcleo Desportivo da Silva com os olhos postos no seu ídolo, Carlos Lopes, o campeão olímpico português, no auge de uma carreira que o levaria a ser considerado referência mundial do atletismo de longa distância. 

Saltitou de fábrica em fábrica à medida que o sector têxtil ia perdendo fôlego. Terminou o 12.º ano nas Novas Oportunidades. Mais tarde, aproveitaria a formação em alpinismo para se equilibrar em andaimes e lavar janelas de prédios altos, contratado por uma empresa que percorria o país.

Hoje Carlos Sá dedica-se ao desporto a tempo inteiro. Participa nas competições mais complicadas do mundo, nas escaladas mais arrojadas de sempre. Organiza estágios e provas de corrida que chegam a juntar quase dois mil atletas — chegou ontem da Argentina onde passou as duas últimas semanas a partilhar a experiência de subir e descer o Monte Aconcágua de quase sete mil metros e com apenas 30 por cento de oxigénio em relação ao nível do mar. Enche polivalentes de escolas a falar da fibra que é preciso ter para vencer na vida, da importância de traçar metas e planear objectivos. Fala de motivação, liderança, espírito de sacrifício, capacidade de resistência em sessões organizadas para empresas.

É seu o recorde do mundo na ascensão do Monte Aconcágua, na Argentina, o ponto mais alto da América e de todo o hemisfério sul, com 15 horas e 40 minutos. Em Julho, venceu a duríssima Badwater, disputada no Vale da Morte, na Califórnia, que une o ponto mais baixo ao mais alto dos Estados Unidos. Foi o primeiro português a atingir tamanha façanha. Correu 217 quilómetros durante 24 horas e 38 minutos. 

O adulto em corpo de criança percebeu cedo, e na própria pele, o verdadeiro significado do esforço, do suor. E o passado reflecte-se no presente. “O espírito de sacrifício começou desde muito cedo e ajudou-me muito na resistência psicológica”. Mas a criança também sabia brincar e espírito aventureiro não lhe faltava. “No ciclo preparatório, trocava o autocarro pela bicicleta e competia com o autocarro a maior parte das vezes”, recorda. Quase sempre chegava em primeiro lugar. 

As provas de atletismo sucediam-se e Carlos não faltava à chamada. A sua capacidade de resistência não passava despercebida a quem percebia de corridas de duas pernas e no pódio das competições nacionais havia sempre um lugar à sua espera. O pai, que alimentava o sonho de ter um filho desportista, criou a Associação Desportiva e Cultural Águias de S. Mamede. Carlos tinha 10 anos e ajudava como podia. Batia à porta dos comerciantes de Barcelos a pedir patrocínios para as corridas, para os atletas. 

Aos 19 anos parou de correr. “Entrei na idade da parvalheira. Descobri outro mundo e experimentei tudo o que havia para experimentar”. Não se arrepende, mas o corpo iria ressentir-se da decisão. O ponteiro da balança chegou aos 96 quilos em 1,74 metros de altura. Fumava dois maços de tabaco por dia. “O meu filho, com apenas três anos, imitava-me a fumar com pauzinhos, com o que lhe aparecia à frente. Era uma imagem que não podia dar ao meu filho e foi ele que me fez mudar de vida”. Quase 10 anos depois, voltou à estrada para retomar um percurso interrompido.

Estufa no quintal 

Os primeiros sinais de que queria vir ao mundo chegaram na véspera do Natal de 1973, em Vilar do Monte. A mãe estava a descascar as batatas para a ceia de 24 de Dezembro, mas as contracções anunciavam a chegada do segundo filho. Foi levada para o hospital de Barcelos e Carlos Sá nasceria antes do calendário passar para o dia 25. A caminho dos 40 anos, Carlos Sá vive em Vilar do Monte, aldeia de Barcelos de onde nunca saiu, numa casa ao lado dos pais.

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