Brasília continua a ser a "capital inventada" do Planalto Central, mas é também uma cidade para viver. Entre os edifícios de Niemeyer que fizeram dela um cenário quase irreal e os bairros que lhe garantem uma escala humana, mostra-nos que é muito mais do que uma aula de arquitectura e que vale bem a pena descobri-la.
Ainda não são 9h30 e junto à Igrejinha já há quem espere pelo começo da missa. As cadeiras chegam até à relva, aproveitando as sombras, e há crianças por todo o lado, a andar de bicicleta ou pela mão dos avós. Enquanto uns preparam o almoço, outros passam de sacos na mão e jornal debaixo do braço, provavelmente vindos da loja de Lourivaldo Marques, à distância de um passeio entre as árvores e os quero-quero, ave elegante que em Brasília parece ter encontrado uma casa. Uma manhã como as outras na zona residencial da cidade.
"Viver aqui é coisa boa. Tem muito verde, muita cultura. É tudo confortável", diz o dono da banca de jornais, a primeira da cidade. Lourivaldo Marques, 76 anos, trocou um trabalho de garçon em São Paulo por um quiosque em Brasília e não se arrepende. Chegou em Fevereiro de 1960, quando a cidade era ainda um gigantesco estaleiro (foi inaugurada em Abril), e no mês seguinte já tinha a loja na quadra 108. Ali, onde Brasília começou (é isso que se lê numa grande placa azul mal se entra na rua), continua a sentir-se um povoador: "Essa cidade saiu do papel do arquitecto para aqui e nós povoámos cada canto como se fosse a corrida para o Oeste."
Foi Lourivaldo quem plantou as duas árvores que hoje formam um portal junto ao quiosque e fala delas com orgulho. "Essas árvores são testemunha da minha aventura em Brasília, uma aventura feliz."
O dono do primeiro quiosque da cidade, apaixonado por cinema e por escritores como Thomas Mann, Jorge Amado e Fernando Sabino, é dos poucos "candangos" - nome que se dá aos habitantes da cidade, porque era assim que se chamava aos que vieram, sobretudo do Nordeste, para trabalhar na construção - que se dá ao luxo de fazer a pé a distância que separa a sua casa do local de trabalho. Entra todos os dias às sete e meia da manhã e só sai quando a loja fecha, às dez da noite. Tirá-lo de lá nem sempre é fácil. Afinal, são 53 anos de hábitos que não quer perder e cada cliente é como um membro da família que continua a crescer: 11 filhos, 18 netos e já cinco bisnetos.
Lourivaldo Marques, como muitos dos que vivem na capital que o Presidente Juscelino Kubitschek mandou construir no Planalto Central, numa área coberta de cerrado (savana tropical, muito característica dos estados de Goiás e de Minas Gerias), sente-se um privilegiado por morar na Asa Sul, uma das zonas residenciais em que mais se nota as marcas que o modernismo imprimiu à cidade.
Para quem chega a Brasília de avião numa manhã de céu limpo o que sobre ela se leu nos livros de arquitectura e nos guias de viagem começa a tornar-se evidente. Ali está ele, visto do céu, o pássaro que a cidade forma, um pássaro que, na secretária de Lúcio Costa (1902-1998), o arquitecto e urbanista a quem se deve o planeamento da capital de Kubitschek, era o "próprio sinal da cruz". Depois, quando se anda de carro ou a pé pelos dois braços desta cruz - o Eixo Monumental e o Rodoviário - Brasília começa a transformar-se, deixa de nos parecer uma cidade improvável de tão cenográfica e passa a ser real. Com engarrafamentos em hora de ponta, a central rodoviária apinhada, o estádio de futebol já renovado (vai receber Beyoncé em Setembro e sete jogos do Mundial 2014) e o enorme acampamento de protesto dos guardas prisionais frente ao Congresso Nacional, um dos muitos edifícios-símbolo que o arquitecto Oscar Niemeyer desenhou na capital.
Quem a conhece apenas dos livros, sobretudo os que se dedicam à obra deste arquitecto brasileiro que morreu no ano passado, é natural que não esteja habituado a ver a Catedral Metropolitana nem o átrio do Palácio Itamaraty, com as suas escadas suspensas e elegantes, repletos de visitantes. Nas fotografias dos álbuns de arquitectura, Brasília parece muitas vezes quase deserta, como se alguém fechasse a porta no final do horário de expediente e ninguém morasse na cidade. Não é assim. No Plano Piloto, a área que saiu do estirador de Lúcio Costa e que é desde 1987 património mundial, vivem cerca de 400 mil pessoas e, se contarmos com as regiões administrativas (ou cidades-satélite, como Taguatinga, Ceilândia e Águas Claras) que formam o distrito federal, o número sobe para os 2,7 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (dados de 2010).
A maioria dos turistas só conhece a cidade dos monumentos, dos grandes edifícios públicos de Niemeyer, dos hotéis do centro ou das margens do lago Paranoá. Provavelmente sabe onde fica o mausoléu de Kubitschek, visitou o espaço Lúcio Costa e o museu nacional, subiu ao miradouro da Torre de TV que o urbanista desenhou, participou nas visitas guiadas ao Congresso Nacional, onde se reúnem 513 deputados (embora não caibam todos sentados na sala do plenário) e 81 senadores, e assistiu ao hastear da bandeira na Praça dos Três Poderes. Mas poucos são os que tomaram um café demorado na Asa Sul, procuraram discos de vinil nas lojasvintage da Asa Norte (outra das zonas residenciais) ou foram a um dos deliciosos mercados das cidades satélite, onde Simon Lau Cederholm, o dinamarquês que já foi considerado o melhor chef do Brasil, gosta de ir às compras.
A capital tem bons restaurantes, sobretudo para quem quer experimentar as tradicionais carnes grelhadas, mas a casa-restaurante de Simon Lau era especial. Quando a Fugas o visitou o Aquavit, considerado o número um da cidade e um dos seis melhores do Brasil (teve recentemente a classificação máxima de três estrelas do prestigiado Guia Quatro Rodas), o restaurante ainda ficava no sector de mansões do lago Norte, com vista ampla para aquela enorme massa de água, e parecia ser, ao mesmo tempo, loja de design, escola de culinária e sala para receber amigos. Há pouco mais de uma semana soube-se pela imprensa brasileira que, por razões administrativas (um diferendo com as autoridades por causa da instalação do restaurante na sua casa), o chef decidira fechar as portas por cinco meses até reabrir num outro local da cidade.
Foi Simon Lau, que começou a trabalhar como auxiliar de cozinha aos 15 anos nos restaurantes de Copenhaga para pagar os estudos, quem desenhou o edifício onde, até aqui, vivia e trabalhava. É também ele o grande entusiasta da horta biológica que mantém no terreno e de onde saem alguns dos produtos que se consumiam (e em breve vão voltar a consumir-se) no restaurante. "Arquitecto, chef e fazendeiro", diz, de sorriso aberto, sem ter a certeza de que esta seja a ordem correcta.
"Gosto de pôr as mãos na terra e ver que dá baunilha-do-cerrado, gabiroba, cajuzinho do mato, umbu", admite o chef dinamarquês, que hoje conhece melhor os produtos do país do que muitos brasileiros. Um país que percorreu em 1986, quando viajava de bicicleta com um amigo pela América do Sul e foi de Caracas ao Rio de Janeiro. Hoje tem uma família brasileira e uma fazenda com quase 200 anos em Vila Boa de Goiás, "cidade de portugueses" e que, até ao século XX, era uma das mais importantes do estado.
No Aquavit o design nórdico de cadeiras e candeeiros misturava-se com o brasileiro, tal como na cozinha a tradição do Norte da Europa se fundia com a do Brasil, fosse a da Baía, fosse a do Nordeste e a do Centro-Oeste, a que Simon Lau vai buscar, por exemplo, o milho e o pequi, um dos frutos-alma do cerrado. "É preciso estar atento ao que cada época dá e trabalhar a partir daí." A cozinha é como um laboratório onde gosta de experimentar os ingredientes desta região que continua a descobrir. Deixa-se levar pelas cores e pelos cheiros, como o da baunilha, cujas "favas gordas e perfumadas" guarda cobertas de açúcar em caixas compridas. Compra-a na fazenda a um homem que um dia lhe bateu à porta durante a Semana Santa e que a colhe no mato, sem nunca lhe ter mostrado onde. Simon Lau diz que estas favas são um "mistério precioso", como precioso é viver em Brasília, apesar das burocracias.
"Brasília não é uma cidade-museu nem é só burocracia, é um lugar para viver", diz Juan Luis Hermida, um uruguaio generoso que chegou há 17 anos depois de ter vivido na Argentina e nos Estados Unidos, e que trabalha hoje como intérprete e guia especializado em arquitectura e património. Elogia a obra de Niemeyer a cada esquina, como não poderia deixar de ser, mas é ainda mais efusivo quando fala do paisagista Roberto Burle Marx ou do pintor e escultor Athos Bulcão, os dois muito presentes nos parques, jardins e edifícios públicos.
É Bulcão o autor dos azulejos alados da Igrejinha de Niemeyer (que em rigor se chama Igreja de Nossa Senhora de Fátima, inaugurada em 1958) e dos painéis atraentes - e lúdicos - dos vários salões do Congresso Nacional. Burle Marx criou o jardim do Ministério do Exército e o do das Relações Exteriores (que funciona no Itamaraty), e muitos dos espaços verdes entre os edifícios de habitação da Asa Sul.
"É claro que é importante vir ver a Praça dos Três Poderes, com as colunas elegantes do Palácio do Planalto [sede da presidência e, por isso, do poder executivo] e do [Supremo] Tribunal Federal [judicial], com as torres do Congresso Nacional [legislativo], mas Brasília também se faz nas quadras. Também acontece aí", acrescenta o guia de 52 anos, devoto da culinária, que começou a cozinhar ainda adolescente e chegou a explorar o restaurante da embaixada americana da cidade. Cada bairro, continua, é uma "cápsula para o dia-a-dia", como se os grandes edifícios públicos ficassem noutra galáxia.
Uma cidade-parque
É impossível andar por Brasília de carro ou a pé - no Eixo Monumental caminhar torna-se difícil porque muitas vezes são grandes as distâncias entre os edifícios a visitar - sem sentir que o seu traçado saiu directamente da mão do urbanista para o terreno, como dizia o dono da banca de jornais da 108. A estrutura em cruz só aparentemente é simples e Lúcio Costa explica-a detalhadamente no Relatório do Plano Piloto de Brasília. "Cidade planeada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúdicos e sensíveis do país", escreveu o arquitecto e urbanista, que escolheu cuidadosamente o lugar que cada equipamento deveria ocupar.
O Eixo Monumental é marcado pela Praça dos Três Poderes, a Esplanada dos Ministérios (à data eram 17, hoje são 40) e a Catedral Metropolitana, todos edifícios emblemáticos de Niemeyer. Nele estão também instalados os sectores financeiro e comercial, e a Leste o sector cultural, com bibliotecas, teatros e museus.
Ao longo do "eixão" - é assim que Brasília se refere ao seu Eixo Rodoviário - organiza-se o sector residencial, com as suas quadras e superquadras, com muralhas verdes (Costa só previu divisões de vegetação), lojas e restaurantes, escolas, campos de jogos, pequenas bibliotecas e salas de cinema. As margens do Lago Paranoá, que o urbanista gostaria que tivessem ficado livres, estão hoje praticamente todas privatizadas, com dois sectores de moradias (Lago Norte e Lago Sul). Os pontos cardeais orientam toda a leitura de Brasília e são fundamentais na hora de designar uma área ou de dar a morada a alguém. A morada, essa, acaba sempre por ser uma sucessão de siglas com números e letras e compreendê-la parece à partida tarefa impossível.
Carolina Dal Ben Padua, uma arquitecta de 33 anos que viveu na cidade entre 2006 e 2009, trabalhando para o instituto do património brasileiro, o IPHAN, adaptou-se depressa à capital, que diz ter "uma qualidade de vida excelente". Rejeita a ideia de que Brasília seja apenas um "palco do poder" e garante que há nela uma escala humana que, para quem fica pouco tempo, pode ser difícil de reconhecer: "A monumental sobrepõe-se a ela, principalmente porque foi projectada para o automóvel. Mas, quando se pensa na superquadra, a escala é absolutamente do pedestre."
Para Padua, o morador de Brasília não sente a separação entre o monumental e o quotidiano. "Brasília é uma cidade diferente de todas as outras - e devemos aprender a entendê-la dessa forma, sem comparar com uma cidade comum", defende a arquitecta. "É uma cidade dentro de um parque e essa é a sua principal característica."
E esse "parque" sente-se, sobretudo, nas margens do lago e nas zonas de habitação, com os seus blocos de seis andares (no máximo) assentes em pilotis, tão característicos do modernismo. Aí, como nos grandes edifícios do Eixo Monumental, parece que a arquitectura desafia a engenharia e que, em resposta, a engenharia cria soluções para que a arquitectura possa enlouquecer (ou quase).
Desejo de harmonia
Devia constar de qualquer roteiro turístico da cidade um passeio entre os edifícios da Asa Sul, suspensos em colunas de betão para garantir aos pedestres "o uso livre do chão", escreveu Costa no seu relatório.
Matheus Gorovitz, arquitecto e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), estudou a fundo o relatório do urbanista e viveu na cidade quatro décadas, antes de se fixar no Rio de Janeiro. Sente saudades da superquadra, embora tenha um olhar desencantado sobre a forma como a cidade evoluiu, sobretudo nas margens do Paranoá, que deveriam ter funcionado como "memória da paisagem".
Gorovitz, 75 anos, chegou a Brasília em 1973, depois de viver em Israel, Inglaterra e França, para trabalhar como arquitecto e dar aulas, sobretudo de Estética do Projecto e de História da Arte e da Arquitectura. Começou por morar num hotel, construindo em seguida uma casa no lago Norte. Daí mudou-se para um condomínio de habitações geminadas e, por fim, escolheu um apartamento numa das superquadras de Lúcio Costa, onde passou a viver com a família. "Na superquadra a qualidade de vida é insuperável quando comparada com a de qualquer outro lugar em Brasília", defende. O professor estava a 15 minutos do trabalho, vivia numa cidade despoluída, tinha o banco, as lojas e o correio à sua porta, assim como um cinema e uma biblioteca à distância de um passeio breve. "E com jardins imensos em que não precisava de cortar a grama. Tudo era feito sem que eu tivesse de cuidar."
Hoje, viver nestes bairros não está ao alcance de todos: um apartamento com três quartos pode chegar aos 700 mil euros e a renda mensal ficará algures entre os 2000 e os 3000 (um funcionário com curso superior ganha no Congresso, em média, 5000 euros, mas o ordenado mínimo brasileiro fica muito aquém - não chega aos 230).
Gorovitz resume a estrutura da cidade sem esforço: "A essência da ideia traduz-se num traçado de dois eixos que concilia o quotidiano com o que é celebrativo, monumental, cénico." A capital vive, então, entre estes dois eixos bem diferentes? Não só, defende Gorovitz, autor de A Invenção da Superquadra (com Marcílio Mendes Ferreira) e de Brasília, uma Questão de Escala, livro em que defende que para Lúcio Costa "a escala é coisa relativa".
O urbanista faz com que toda a cidade tenha uma preocupação com a dimensão humana, argumenta o professor de Estética. "Nas superquadras falamos de pessoas, de famílias. Na Esplanada dos Ministérios ou na Praça dos Três Poderes lidamos com o poder e as instituições. O centro é um espaço de encontro, para que todos se relacionem afectivamente, lugar onde as pessoas se juntam porque querem, não porque a família e o trabalho obrigam." O objectivo de Costa era "harmonizar estas três dimensões do ser", explica Gorovitz, sem que nenhuma se sobrepusesse à outra. E é por isso que temos superquadras e não quadras na área residencial: "Para que não se sentisse um corte entre o eixo dos grandes edifícios públicos e o rodoviário, onde se vive, Lúcio Costa dá uma certa monumentalidade à área residencial."
Por regra, diz Gorovitz, uma quadra tem cerca de 100-120 metros quadrados - as de Costa rondam os 300 e foram feitas para incluir escolas, comércio, cinemas, bibliotecas, igrejas e outros espaços de espiritualidade. Há na ideia da superquadra e nas "áreas de vizinhança" que a acompanham uma composição plástica, para além de prática, assim como um enorme sentido ético. "É claro que o tratamento urbanístico é diferenciado da área residencial para a monumental. É, aliás, só porque temos coisas diferentes que podemos falar em "harmonização". Mas não são duas cidades - é a mesma cidade. Foi assim que Lúcio Costa quis, rompendo com o princípio hierarquizante das cidades convencionais, clássicas."
As "áreas de vizinhança", inspiradas nas "unidades de vizinhança" do pós-guerra, não tinham um carácter intimista, "foram desenhadas para tornar as superquadras (deveriam agrupar quatro) mais cosmopolitas". Funcionavam como clubes com instalações desportivas, cafés e outros equipamentos de socialização. Não se construíram todas as que Lúcio Costa previu, mas o comércio nestes bairros vale a visita.
Modernismo tropical
Hoje as ruas estão quase organizadas por tipologias - há umas só para restaurantes, outras só para lojas de roupa ou sapatarias - e, na Asa Norte, há surpresas, como a do T-Bone, um talho que é também uma associação cultural, com uma biblioteca popular aberta 24 horas por dia, e que organiza festivais de música e de literatura com o apoio do governo federal, enquanto continua a vender, garante o dono, Luiz Amorim, "a melhor carne da cidade".
Para além das três escalas (a residencial, a monumental e a gregária) há uma quarta, em relação à qual Gorovitz é particularmente crítico - a bucólica. Em 1956, lembra, dos 26 projectos a concurso para a nova capital apenas o de Costa deixava quase intocadas as margens do Paranoá, o grande lago artificial.
O urbanista contava com o lago para dar à cidade a dimensão natural que está presente em cada um. E é essa atenção às várias dimensões do indivíduo que cria a versão brasileira do modernismo que se pode encontrar em Brasília: "Lúcio vai buscar a Le Corbusier [precursor do movimento modernista na arquitectura ] a ideia da cidade-jardim e da sectorização do espaço tendo em conta as funções que lhe são destinadas, mas a escala que usa para o dividir é diferente, é a do carácter do ser humano, não depende só de aspectos práticos."
Se lhe perguntamos se Brasília resultou como projecto de cidadania, o arquitecto é claro: "Infelizmente, não. O Brasil tem dificuldade em separar o público e o privado. É isso que se passa, por exemplo, nas superquadras." Gorovitz refere-se aos comerciantes das áreas residenciais que alargaram as suas lojas ocupando espaços públicos e aos gradeamentos que por vezes rodeiam os pilotis que sustentam grande parte dos edifícios, tornando privadas áreas de circulação que deviam estar acessíveis a todos. "O seu carácter cosmopolita, que era muito evidente na área de residência, tem-se perdido. Brasília tornou-se mais provinciana."
A maioria dos turistas que a cidade recebe é nacional. No congresso ou na catedral, há sempre grupos de crianças e famílias brasileiras. Entre os estrangeiros, são os franceses, holandeses e belgas os que mais a visitam. Os nacionais procuram a "cidade inventada" e os edifícios ligados ao governo; os restantes uma aula de arquitectura, diz Juan Hermida, o guia uruguaio: "Querem ver o modernismo tropical." Fazem fila nos principais monumentos, contratam guias, tiram fotografias sem parar e querem saber em que dias trabalham os deputados no congresso.
Um acto de vontade
Parte do quotidiano de Brasília passa ao lado dos turistas que não falam português porque lhes é difícil participarem naquele que parece ser um desporto do distrito federal - discutir política (é praticamente impossível andar pela cidade sem pensar nela, seja pelos protestos diários, seja pelo trânsito infernal que faz lembrar o aumento dos transportes que ateou boa parte das manifestações de Junho).
Nos cafés e esplanadas, estudantes discutem, indignados, o plebiscito que a Presidente Dilma Rousseff propôs sobre a reforma política, em resposta ao levantamento popular deste Verão. Dizem que é demasiado complexo para que a maioria dos eleitores o compreenda e garantem que se torna difícil continuar a "acreditar" no Brasil.
Para o arquitecto Matheus Gorovitz os políticos parecem esquecer "que falta de esperança é assunto sério". Lúcio Costa, acrescenta, ficaria surpreso. Era um optimista incorrigível e costumava dizer que o Brasil não nascera com vocação para a mediocridade.
O antigo professor da UnB sabe que corre o risco de ser "melancólico" ou "desencantado", mas não pode deixar de dizer que, como todas as utopias, Brasília ficou por cumprir. É hoje uma "cidade estética", pensada como capital de um país, capaz de criar imagens emblemáticas, de encenar o poder, mas eticamente ficou aquém do sonho do urbanista. Teve o mérito, apesar de tudo, de mostrar até que ponto pode ser importante uma utopia.
Gorovitz e Lúcio Costa conheceram-se no início dos anos 1960, quando o primeiro era ainda estudante. Estariam juntos mais vezes e é por isso que o arquitecto não esquece a sua "lucidez e elegância", "síntese perfeita de razão e sensibilidade", lembra Gorovitz, evocando um episódio que é para ele reflexo da personalidade do homem que tem por referência: "Quando um jornalista lhe perguntou como se definia, intitulou-se "um homem bom". Eu acrescentaria belo."
Mesmo com as transformações que "atacam" o Plano Piloto, a cidade de Lúcio Costa foi uma tentativa bem-sucedida de conciliar o público e o privado, diz o professor, encontrando um certo equilíbrio entre aquilo que o colectivo deseja e o que cada um procura na sua intimidade.
Costa, que sempre viveu no Rio de forma discreta, disse numa entrevista televisiva, em 1984, depois de mais uma visita à capital, que "o projecto era uma coisa e ficou outra", mas que ainda reconhecia nela a "cidade serena" com que tinha sonhado. Remexia-se na cadeira quando as pessoas reclamavam de Brasília uma espontaneidade que não era suposto que tivesse e pedia-lhes que não a tratassem como uma "cidade normal". Aquela era, para ele, uma capital administrativa que resultava de um "acto de vontade" - construída a 1300km da costa quando, em finais da década de 1940, 70% dos brasileiros viviam ao pé do mar, só podia ser racional, imposta. E devia orgulhar-se disso.
Clarice Lispector concordava com ele. A autora de A Paixão Segundo G.He de Perto do Coração Selvagem está entre os que melhor a definiram, dizendo que é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo. "Brasília é artificial. Tão artificial como devia ser o mundo quando foi criado", escreveu.
Imposta, é certo, mas quase sempre sedutora. Sobretudo quando a estadia passa pelas superquadras, a Livraria Saraiva e as lojas de vinis da Asa Norte.
GUIA PRÁTICO
Como ir
Circular na cidade não é fácil (apanhar um táxi pode mesmo ser uma aventura), mas chegar lá é. O melhor é viajar de avião, sobretudo quando as distâncias são grandes e a qualidade das estradas as torna ainda maiores. De Lisboa o voo é directo - a TAP é mesmo a única companhia europeia a voar sem escalas para a capital federal. Pode viajar todos os dias da semana, com saída de Lisboa às 9h35 e chegada a Brasília às 17h15 (hora local). Agora no Verão as tarifas são a partir de 673 euros (só ida, taxas incluídas).
Quando ir
A temperatura em Brasília é quase sempre amena (pelo menos para os padrões europeus), mas Agosto e Setembro, por serem mais quentes e secos, requerem cuidados especiais (protectores solares e muita água para quem anda na rua a passear). Para compensar, é nestes meses que o pôr do sol da cidade é mais espectacular, carregando o céu limpo de laranjas, rosas e vermelhos. Se pensa viajar entre Novembro e Fevereiro prepare-se para a chuva - com ela a vegetação do cerrado exibe-se ainda mais do que é habitual.
Onde ficar
O Royal Tulip Brasília Alvorada é um dos mais recentes e mais concorridos hotéis da cidade. A localização é excelente e as instalações também, mas o serviço não surpreende. Fica nas margens do grande lago artificial de Brasília, o Paranoá, e é vizinho da residência oficial da Presidente Dilma Rousseff, o belíssimo Palácio da Alvorada. Tem uma piscina enorme e um agradável deck de madeira onde é muito bom ler ao fim da tarde, mas não se compara com o charme do hotel que fica ali mesmo ao lado, também a 20 minutos do aeroporto internacional e a cinco da Esplanada dos Ministérios.
O Brasília Palace foi desenhado por Niemeyer e inaugurou em 1958. Palco glamour da capital no final da década de 1950 e na seguinte, tem um incêndio no currículo e pelos seus quartos e bailes passaram muitas das figuras que fazem parte da história da cidade. Numa capital em que não se encontram os pequenos hotéis acolhedores que muitos procuram na velha Europa, o Brasília Palace é uma escolha segura.
Hotel Royal Tulip Brasília Alvorada. Tel.: 0055 61 3424 7000. SHTN, Trecho 1, Conj. 1B, Bloco C. Brasília. www.royaltulipbrasiliaalvorada.com
Brasília Palace. Tel.: 0055 61 3319 3543. SHTN, Trecho 1, Lote 1 - CEP:70800-200 - Brasília/DF. Brasília. www.brasiliapalace.com.br
Onde comer
Brasília tem óptimos restaurantes, sobretudo para quem gosta de carne e de saladas variadas. Percorrendo qualquer guia da cidade, é possível encontrar várias tradições europeias e espaços onde as linguagens culinárias se misturam. Dudu Camargo (na foto, um dos seus pratos) é um dos chefs mais requisitados da cidade e tem vários restaurantes. No Dudu Bar a carta é tão variada que se torna difícil escolher. As entradas são óptimas, com destaque para a beringela agridoce e o queijo de coalho com geleia de pimenta, típico do Nordeste. O prato-assinatura da casa é robalo com castanha-do-baru e vale bem a pena.
Dudu Bar
SCLS 303 Bloco A Loja 03. Asa Sul - Brasília. Tel.: 0055 61 3224 7179. www.duducamargo.com.br/dudubar
Para os que não dispensam carne, o Baby Beef Rubaiyat Brasília, um restaurante que acaba de inaugurar mas que tem "congéneres" em São Paulo, Madrid e na Cidade do México, é uma boa sugestão. Tem vista para o lago, uma bela carta de vinhos (dizem que com 700 opções, mas a Fugas não as contou) e sobremesas de inspiração francesa deliciosas. Chegar lá a um domingo à tarde pode implicar esperar na fila - neste momento é um dos preferidos dos empresários e altos funcionários públicos da capital.
Baby Beef Rubaiyat Brasília. SCES - Setor de Clubes Esportivos Sul, trecho 1, lote 1 A, Asa Sul. Tel.: 0055 61 3443 5000. www.rubaiyat.com.br/restaurantes/rubaiyatbrasilia
O que fazer
Brasília não é uma cidade-museu, garante quem lá vive, mas para quem vem de fora é o património que se impõe. As avenidas e superquadras guardam lições de modernismo e passear pelo Eixo Monumental pode assemelhar-se a folhear um gigantesco livro de arquitectura. Os principais monumentos da cidade, onde funcionam ministérios e outros serviços federais, são visitáveis e muito concorridos. O Congresso Nacional - onde se reúnem deputados e senadores - e o Itamaraty (também lhe chamam o Palácio dos Arcos), sede do Ministério das Relações Exteriores, são paragens obrigatórias, assim como a Catedral Metropolitana e a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, num dos bairros residenciais, todos edifícios com a assinatura de Oscar Niemeyer. É também dele o Catetinho, a casa em madeira que o arquitecto desenhou para o Presidente que mandou construir Brasília, Juscelino Kubitschek (fica numa fazenda nos arredores da capital). Mas como a cidade não é só arquitectura, há cinema e exposições gratuitos no Centro Cultural Banco do Brasil e muita música nas cidades-satélite (o Plano Piloto parece fechar à uma da manhã, mas nas regiões administrativas há bares e clubes de choro e jazz que garantem festa noite dentro). Para os que alugarem carro e quiserem trocar o betão por um mergulho nas cachoeiras ou um passeio por uma antiga cidade mineira, a Chapada de Veadeiros fica a 220km e Pirenópolis a 125.
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A Fugas viajou a convite da Embratur