Brasília continua a ser a "capital inventada" do Planalto Central, mas é também uma cidade para viver. Entre os edifícios de Niemeyer que fizeram dela um cenário quase irreal e os bairros que lhe garantem uma escala humana, mostra-nos que é muito mais do que uma aula de arquitectura e que vale bem a pena descobri-la.
Ainda não são 9h30 e junto à Igrejinha já há quem espere pelo começo da missa. As cadeiras chegam até à relva, aproveitando as sombras, e há crianças por todo o lado, a andar de bicicleta ou pela mão dos avós. Enquanto uns preparam o almoço, outros passam de sacos na mão e jornal debaixo do braço, provavelmente vindos da loja de Lourivaldo Marques, à distância de um passeio entre as árvores e os quero-quero, ave elegante que em Brasília parece ter encontrado uma casa. Uma manhã como as outras na zona residencial da cidade.
"Viver aqui é coisa boa. Tem muito verde, muita cultura. É tudo confortável", diz o dono da banca de jornais, a primeira da cidade. Lourivaldo Marques, 76 anos, trocou um trabalho de garçon em São Paulo por um quiosque em Brasília e não se arrepende. Chegou em Fevereiro de 1960, quando a cidade era ainda um gigantesco estaleiro (foi inaugurada em Abril), e no mês seguinte já tinha a loja na quadra 108. Ali, onde Brasília começou (é isso que se lê numa grande placa azul mal se entra na rua), continua a sentir-se um povoador: "Essa cidade saiu do papel do arquitecto para aqui e nós povoámos cada canto como se fosse a corrida para o Oeste."
Foi Lourivaldo quem plantou as duas árvores que hoje formam um portal junto ao quiosque e fala delas com orgulho. "Essas árvores são testemunha da minha aventura em Brasília, uma aventura feliz."
O dono do primeiro quiosque da cidade, apaixonado por cinema e por escritores como Thomas Mann, Jorge Amado e Fernando Sabino, é dos poucos "candangos" - nome que se dá aos habitantes da cidade, porque era assim que se chamava aos que vieram, sobretudo do Nordeste, para trabalhar na construção - que se dá ao luxo de fazer a pé a distância que separa a sua casa do local de trabalho. Entra todos os dias às sete e meia da manhã e só sai quando a loja fecha, às dez da noite. Tirá-lo de lá nem sempre é fácil. Afinal, são 53 anos de hábitos que não quer perder e cada cliente é como um membro da família que continua a crescer: 11 filhos, 18 netos e já cinco bisnetos.
Lourivaldo Marques, como muitos dos que vivem na capital que o Presidente Juscelino Kubitschek mandou construir no Planalto Central, numa área coberta de cerrado (savana tropical, muito característica dos estados de Goiás e de Minas Gerias), sente-se um privilegiado por morar na Asa Sul, uma das zonas residenciais em que mais se nota as marcas que o modernismo imprimiu à cidade.
Para quem chega a Brasília de avião numa manhã de céu limpo o que sobre ela se leu nos livros de arquitectura e nos guias de viagem começa a tornar-se evidente. Ali está ele, visto do céu, o pássaro que a cidade forma, um pássaro que, na secretária de Lúcio Costa (1902-1998), o arquitecto e urbanista a quem se deve o planeamento da capital de Kubitschek, era o "próprio sinal da cruz". Depois, quando se anda de carro ou a pé pelos dois braços desta cruz - o Eixo Monumental e o Rodoviário - Brasília começa a transformar-se, deixa de nos parecer uma cidade improvável de tão cenográfica e passa a ser real. Com engarrafamentos em hora de ponta, a central rodoviária apinhada, o estádio de futebol já renovado (vai receber Beyoncé em Setembro e sete jogos do Mundial 2014) e o enorme acampamento de protesto dos guardas prisionais frente ao Congresso Nacional, um dos muitos edifícios-símbolo que o arquitecto Oscar Niemeyer desenhou na capital.