Fugas - Viagens

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  • Montemoro- Novo retratado por José Miguel Ribeiro
    Montemoro- Novo retratado por José Miguel Ribeiro
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A Montemor-o-Novo de José Miguel Ribeiro

Por Sérgio C. Andrade

Realizador de cinema de animação, produtor e professor, José Miguel Ribeiro está radicado em Montemor-o-Novo há uma década. Nasceu na Amadora, trabalhou no Porto e em Lisboa, viajou pelo mundo e levou sempre consigo um caderno de desenhos, que muitas vezes deram origem a filmes. Cabo Verde foi a viagem da sua vida, do mesmo modo que a cidade alentejana é agora a sua casa.

Quando, há cerca de uma década, José Miguel Ribeiro (n. Amadora, 1966) saiu de Lisboa em direcção a Évora “à procura de um novo rumo” para a sua vida, Montemor-o-Novo surgiu-lhe apenas como um topónimo nas placas de saída da auto-estrada. Na capital do Alentejo, foi surpreendido com o elevado preço dos aluguéis que lhe pediam para espaços onde imaginava poder continuar a sua carreira no cinema de animação, e também a sua vida.

No regresso a Lisboa, decidiu experimentar a velha estrada nacional e parar pelo caminho: entrou em Montemor-o-Novo, e acabou por ficar por lá. “Apontei para Évora, mas fiquei a meio caminho”, diz. 

Presentemente, o realizador de A Suspeita (1999), o único fi lme português a vencer o Cartoon d’Or/Prémio Europeu do Cinema de Animação, está de pedra e cal nesta cidade do Alto Alentejo. Instalou uma produtora — a Praça Filmes — no mercado da cidade, vive numa casa arrendada na Herdade do Freixo do Meio (ver Fugas de 23 de Novembro último), a uma dúzia de quilómetros de distância, e já se sente um alentejano, algo que é facilitado pelo código genético, já que os pais são originários desta região.

“Cada vez gosto menos de sair de Montemor; gostava de poder viver mais cá, usufruir da cidade, da casa onde habito e do espaço do Alentejo, que me dá a tranquilidade de que preciso em contraposição com a inquietação da criação”, confessa o animador e professor.

A vida profissional e artística é que não lhe permite, por agora, a satisfação plena dessa ambição. O trabalho de professor dividido entre o Instituto Politécnico de Portalegre e a Universidade Lusófona em Lisboa — “é o meu ganha-pão, é com esse dinheiro que pago a minha casa e ajudo as minhas duas fi lhas”, salienta —, o cargo de presidente da Casa da Animação, com sede no Porto, e as sucessivas viagens que a animação o obriga a fazer ao estrangeiro para participar em cursos, workshops ou festivais, fazem de José Miguel Ribeiro um viajante permanente. 


Viagem a Cabo Verde

Mas, às vezes, há viagens que surgem por outras motivações. Aconteceu assim com a sua Viagem a Cabo Verde. É o título da sua última curta-metragem, terminada em 2010, mas, antes de se transformar num fi lme, foi uma aventura pessoal intensa e única. “Aquela foi outra viagem, não voltei a fazer nenhuma igual, mesmo se todas as semanas penso voltar a fazê-lo.” 

Depois de terminar Passeio de Domingo (2008), um filme de animação de volumes sobre um domingo de lazer de uma típica família portuguesa, José Miguel Ribeiro achou que chegara o momento de experimentar uma viagem diferente de todas as que tinha realizado até ao momento, “sem antecipar o dia seguinte”. Seria tanto uma viagem física como interior. Pegou nas botas, na mochila e no seu inseparável caderno de desenhos e rumou a Cabo Verde. Durante dois meses, percorreu seis ilhas do arquipélago, conheceu os seus habitantes, fez amigos, viveu o quotidiano deles… e desenhou. 

“A experiência de Cabo Verde foi uma viagem em que me disponibilizei para a aventura, para prescindir das coisas da vida comum de todos os dias”, recorda o realizador, que quis correr o risco de se colocar “em situações em que deixava de controlar as coisas”, aceitando “aquilo que é uma espécie de destino”. 

“É assim que gosto de viajar; é nessas alturas que me acontecem coisas interessantes” — e foi isso que lhe aconteceu em Cabo Verde. Decidiu passar essa experiência ao cinema, mas o que está no fi lme “é apenas um vigésimo” de tudo o que viveu no arquipélago africano. Nessa viagem de descoberta, e também de reencontro consigo próprio após momentos de mudança na sua vida familiar, Ribeiro assumiu inscrever nos seus desenhos (e depois também no fi lme) a sua própria imagem estilizada a negro e a traços grossos sobre os cenários coloridos de Cabo Verde. Retomou assim, de certo modo, a figura do protagonista de A Suspeita.

Quando lhe perguntámos se essa representação autobiográfica foi uma decisão consciente, o realizador admite que sim. “Comecei a acreditar nisso quando a minha fi lha, depois de ver A Suspeita pela primeira vez, me disse: ‘Pai, tu és aquele!’. Aí percebi que havia qualquer coisa que me identifi cava, e assumi isso na viagem”. Afi nal, tratava-se de falar de si próprio, usando a sua fi sionomia e hábitos quotidianos: a barbicha, a mochila, o caderno de desenhos… “Se quero falar de mim, não vou pôr-me a inventar.” 

Viagem a Vila do Conde

O filme que resultou da experiência de Cabo Verde haveria de dar origem a um novo projecto de viagem, mas, desta vez, mais perto de casa. Respondendo a um desafi o do Curtas Vila do Conde, José Miguel Ribeiro está presentemente a terminar uma curta-metragem, Cadernos de Viagem, sobre uma visita à pequena cidade da foz do Rio Ave. “O filme segue o mesmo conceito do de Cabo Verde, mas retrata apenas uma semana de viagem por Vila do Conde”, diz o realizador. Cadernos de Viagem ficará pronto no início do próximo ano, e deverá ter estreia nacional na próxima edição do festival, em Julho. 

Este trabalho foi já produzido no seu pequeno espaço no mercado de Montemor-o-Novo, onde a sua filmografi a aportou, há uma década, com As Coisas Lá de Casa (2003), uma série televisiva de 26 episódios de 2’30’’ que trouxe de Lisboa. Foi com este projecto, realizado com uma equipa de animadores da capital e outros já de Montemor, que Ribeiro se começou a “instalar suavemente” na sua nova terra. “Fui conhecendo uma pessoa aqui, outra ali… Levei muito tempo a tornar-me um montemorense.”

Entre as pessoas que entretanto conheceu na sua nova terra alentejana está o coreógrafo Rui Horta, que aí se tinha instalado, um ano antes de si, com o projecto O Espaço no Tempo, no Convento da Saudação. “Só o conheci depois de ter chegado, a ele e a toda a gente que trabalha nas ofi cinas do convento”, diz Ribeiro — que no primeiro fim-de-semana de Novembro sediou no convento parte das iniciativas da Festa Mundial da Animação.

O realizador foi descobrindo, ao longo destes anos, que também ele estava a acrescentar um novo capítulo a “uma cidade onde a cultura não é estranha às pessoas”. Ver uma peça de teatro, um espectáculo de dança, um filme de animação, uma exposição de artes, é algo que faz parte do quotidiano dos montemorenses. “É uma terra de dez mil habitantes, não é muita gente, mas é como diz o Rui Horta: ‘Se, num espectáculo de dança numa sala de 50 lugares, tivermos vinte pessoas presentes, isso significa quase o Pavilhão Atlântico cheio em Lisboa”, nota Ribeiro. 

“A grande disponibilidade e curiosidade” que os habitantes desta terra têm pelas coisas da cultura decorre — explica o realizador — de uma prática lançada pela autarquia local logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, com a criação, numa das salas do Teatro Municipal Curvo Semedo (poeta local do movimento Nova Arcádia, criado no final do século XVIII, e que integrou também Bocage), de uma oficina de criação artística para crianças. Esta oficina continua hoje a existir, no mesmo espaço, e a sua história “foi já um caso estudado na Europa”, diz Ribeiro. “Vale a pena ver as exposições; muita gente não percebe se são trabalhos de crianças ou de artistas adultos”, nota o animador, comparando este trabalho com as ofi cinas que a Gulbenkian dinamizou em tempos em Lisboa, “numa interligação entre o espaço crítico e a liberdade de expressão, e em que o acompanhamento é feito de uma forma muito inteligente e muito livre por pessoas que deixam as crianças exprimir-se livremente”.

Esse espírito de formação e essa prática aberta à criação inventiva, José Miguel Ribeiro propõe-se mantê- las no seu Praça Filmes, que ocupa, na frente exterior do mercado, uma fracção contígua à que já foi habitada pela livraria Fonte de Letras, que este ano se mudou para Évora.

“Para uma livraria, entende-se que aqui não haja o mercado de leitores suficiente, mas há coisas a acontecer em Montemor-o-Novo com uma dimensão e uma força que levam gente a dizer que esta cidade abafou Évora a nível cultural”, diz o realizador, realçando a atenção que a autarquia continua a dar à cultura. “Bastava que um décimo do que é dispensado em Montemor-o-Novo à cultura fosse dado a nível nacional, que a situação do país seria completamente diferente”, garante. 

Será, de resto, aqui que José Miguel Ribeiro espera poder avançar com o seu próximo projecto, Estilhaços, uma curta-metragem sobre o stress pós-traumático dos combatentes na Guerra Colonial. O facto de o seu pai ter sido combatente não é estranho a este projecto, para o qual, e pela primeira vez, escreveu o argumento e de que será também o realizador. “São três gerações de jovens que combateram na Guerra Colonial e que quando regressaram, principalmente depois do 25 de Abril [de 1974], encontraram um Portugal completamente diferente, e onde a guerra era um tema desconfortável e tabu”. Ribeiro traça um paralelismo com o trabalho que, por exemplo, o cinema americano fez com a Guerra do Vietname, tópico de que sempre se falou muito e que depressa se tornou tema de fi lmes. “Em Portugal, isso não aconteceu, e os nossos soldados vieram com stress pós-traumático, uma doença crónica que provoca consequências graves na vida das pessoas”, diz Ribeiro, que para a preparação deste projecto tem trabalhado com a associação Apoiar. 

Lá mais para a frente, o realizador pensa aventurar-se numa outra viagem: uma longa-metragem de animação e imagem real a partir de uma peça de teatro de Mia Couto e José Eduardo Agualusa, Caixa Preta. “É uma coisa que está a nascer”, diz. E Montemor-o-Novo parece ser uma boa terra para José Miguel Ribeiro concretizar os seus projectos.

“Gostei de vir para esta terra. Aqui existimos como ser humano, moldado às pessoas que estão à nossa volta, à nossa família e a uma família mais larga, com os amigos que vamos fazendo na rua”, sintetiza. 

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