Fugas - Viagens

  • Bárbara Raquel Moreira
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João Pedro Coimbra e Carrazedo de Montenegro

Por Andreia Marques Pereira

É um citadino de cepa e convicção também não lhe falta, mas o músico dos Mesa encontrou onde menos esperava um refúgio. Que quer que se torne literal: de xisto e madeira. Já lá estão os 100 castanheiros que plantou no terreno comprado há quatro ou cinco anos em Redondelo, Carrazedo de Montenegro. E já estão descobertos muitos recantos deste cantinho de Trás-os-Montes, onde passámos uma tarde curta de mais.

Há uma cabana quase no cimo da encosta, um tanque mais em baixo e um furo atrás donde sai água para tudo. Cem castanheiros enchem o vale e a vista perde-se em Carrazedo de Montenegro, em montes que se replicam no horizonte. No fundo do vale, aos pés da cabana para lá dos castanheiros, a vizinha, na sua casa de colorido gasto, empurra um carrinho de mão com uma botija de gás encosta acima, até à estrada; volta com uma nova. Há presente e futuro neste cantinho de Redondelo (terras de Carrazedo de Montenegro) onde João Pedro Coimbra plantou castanheiros, “há quatro ou cinco anos”, e onde quer construir a cabana, o tanque e, quem sabe, a velhice. 

- Vejo-me envelhecer em Trás-os-Montes, agarrado ao piano... Se calhar ia odiar... Gosto do campo, mas começo a stressar se fico muito tempo.

Por enquanto, é maravilhamento que enche os seus olhos quando nos aproximamos do terreno, várias centenas de metros por caminho de terra batida. O terreno, aponta ao longe, começa naquele pinheiro; e vai mais ou menos até aquele pinheiro, indicará mais tarde. Ironia, um terreno coberto de castanheiros (e uma oliveira, umas poucas pereiras e macieiras, além da ginjeira da mãe de João Pedro, que ele vai ver imediatamente) ter pinheiros como marcos fronteiriços. E como árvores mais visíveis. Os castanheiros são jovens, tão jovens que os troncos são pouco mais grossos do que umas canas; e as copas minúsculas, sobretudo por estes dias que se vêm nuas — ao longe, não serão mais do que uma pequena penugem na encosta. Mais no fundo do terreno estão mais robustos e os ouriços no chão são prova da sua maior vitalidade.

- Cada castanheiro adulto dá 20, 30 quilos de castanha. Levam entre 15 e 20 anos a crescer.

Não percebia nada de agricultura na altura em que decidiu investir neste hectare de terra, a partir daí foi-se informando. 

- Quando comprei o terreno, há quatro ou cinco anos, tinha apenas pinheiros e alguns castanheiros doentes. Chamam-lhe tinta, é um fungo, como o cancro. Tirámos-los todos, queimámo-los para não propagar a doença e em Janeiro, altura da plantação, voltámos a plantar. Tem de ser à mão. A máquina abre o buraco e depois um homem salta lá para dentro, prende a árvore e tapa.

Há alguns buracos abertos no terreno inclinado,

- Até o céu parece inclinado visto daqui,

como se uma toupeira por ali tivesse estado a brincar. Em breve, novos castanheiros serão lá plantados, a substituir os que morreram este ano.

- Costumo vir pelo menos uma vez por ano. Em 2013 não o fiz. Foi um ano estranho. Os meus pais vieram na apanha da castanha, em Outubro.

Neste Verão, cresceram giestas por entre o afloramento xistoso onde João Pedro vê a sua cabana-abrigo nascer. Algo sem grandes luxos.

- As paredes exteriores vão ser de xisto e as interiores de madeira. Vai ter painéis solares para ser auto-suficiente e a água será de uma nascente.

O vento uiva, cães ladram à distância e alguns pássaros desafiam-nos em chilreios límpidos. Mas é a passagem do tempo o ruído mais permanente aqui, como se nós fôssemos ampulhetas, pacientemente a acumular minutos, horas. 

- Não se ouve nada. É incrível. Gosto dos contrastes: um dia estar numa cidade intensa e depois num sítio onde não há ninguém. Aqui, tudo é muito espartano, árido. No fundo, é o que eu espero da ausência da cidade. A ideia é ser mesmo diferente do que tens na cidade e em destinos turísticos. É engraçado, porque há vários músicos que se começam a interessar por esta zona, pelas mesmas razões que eu se calhar.

Superfície lunar

Citadino de cepa e de militância, João Pedro Coimbra nasceu em Lisboa e foi viver para o Porto com 10 anos. Agora vive na Rua de Ceuta (epicentro da noite portuense).

- Confesso que tive medo quando me mudei. Ao fim-de-semana aquilo é Ibiza.

Viver num quarto andar com janelas duplas ajuda a estancar barulhos exteriores. E estar ali significa não pegar no carro na rotina diária, entre casa e o estúdio, na Rua da Alegria. Compositor, letrista e teclista dos Mesa, João Pedro dedica-se inteiramente à música. É assim desde muito jovem, desde que frequentava a Escola de Música Caiús, mesmo em frente ao Café Majestic, “quando o Majestic era fixe, com tertúlias que juntavam as pessoas mais interessantes”. Na altura em que lá esteve, Pedro Abrunhosa foi professor de combo.

- Depois fui para a Escola de Jazz e passado um ano o Pedro contactou-nos, uma série dos que tinham passado pelo Caiús, para irmos tocar com ele. Tinha 18 ou 19 anos e fiz 120 concertos entre Abril/Maio e Dezembro. Não vinha a casa durante três meses. No ano seguinte fizemos mais 60 concertos.

Em 1996, João Pedro deixa os Bandemónio para ir para Londres. Foi no encalço de Luís Jardim, que pensava ser brasileiro — “até porque é percussionista”. Disse-lhe que tocava, que tinha acabado de sair de uma banda e ofereceu-se para lhe carregar o material. Passou a ir com ele aos estúdios, embrenhou-se nesse mundo e quando foi convidado a ficar decidiu voltar a Portugal. 

- Estava a fazer banda com amigos da escola de jazz. Mesmo à puto... Cheguei e fui convidado pelos Três Tristes Tigres, um projecto interessante até tecnologicamente, trabalhavam com muitos samplers. Depois vieram os Coldfingers e em 1999-2000 comecei a interessar-me pela composição. Quis ter um projecto meu, mas não me sentia bem como líder, como cantor. Comecei a procurar...

E os Mesa aconteceram. Mais de uma década depois, com uma segunda vocalista (Mónica Ferraz deu lugar a Rita Reis), e um quinto álbum lançado em 2013 (Pés que sonham ser cabeças), João Pedro ri-se da censura que o YouTube exerceu sobre o vídeo do segundo single. Moral é para maiores de 18 anos: “Questão de maminhas, ainda que centenárias”, brinca, referindo-se aos excertos de filmes mudos antigos incluídos no vídeo. 

Por estes dias já começou a digressão de 2014 deste álbum (hoje os Mesa tocam em Ermesinde), mas em meados de Janeiro a viagem entre o Porto e Redondelo parece funcionar como uma suspensão na vida de músico cosmopolita. Auto-estrada até Vila Pouca de Aguiar e depois curvas e contracurvas até ao coração da região portuguesa com maior concentração de soutos. A paisagem enche-se de uma teluricidade matizada de espantos permanentes — e só podemos rir do tão apropriado que é, em plena serra da Padrela, uma seta indicar “Paisagem”. A pouco mais de 700 metros de altitude, o ponto mais alto, as vistas aqui estão cortadas pelo nevoeiro denso que assentou.

As névoas dissipam-se quando descemos a serra e entramos em pleno território de castanheiros. João Pedro descobriu esta região quando um familiar, arquitecto, andou a fazer projectos em Valpaços.

- Apaixonei-me por esta paisagem que vínhamos a ver. Por um lado, uma rigidez quase de superfície lunar, com muitas pedras, mas também vegetação. E a luz tão própria. 

Há uma contraluz no terreno de João Pedro, que deixa o topo do vale como um negativo a preto e amarelo: árvores e casas num jogo de sombras chinesas alimentado pelo sol, sujeito aos caprichos das nuvens que aqui “vemos” correr depressa. João Pedro tira fotografias — não são as primeiras, não serão as últimas.

Natureza prodigiosa

Do terreno dos seus castanheiros avançamos por estradas marginadas de soutos, entramos e saímos de Carrazedo de Montenegro. Anda sempre à procura de “sítios fixes”, João Pedro — até comprou um jipe, velhinho, para poder enfrentar caminhos de terra e atravessar água. Agora, espera arranjar cartas militares que lhe permitam atravessar os montes e poupar tempo nas suas deambulações pela região, até à aldeia de Santa Maria de Emeres, “antiga”, e Tresminas, com as suas minas romanas, “imperdíveis”. Hoje o tempo é escasso e então paramos numa berma e porque não temos jipe subimos um caminho de terra.

Há rochas, muitas rochas, lá no alto,

- Aquela parece um rosto,

nariz espetado, notamos. Juntas formam um conjunto de fragas impressionantes, líquenes colados a elas em tons que variam do verde-claro-quase-amarelo e o muito escuro. Há pinheiros por toda a parte e árvores fantasmagóricas vestidas apenas de musgos — o horizonte divide-se entre pinhais, soutos e campos de cultivo divididos cromaticamente. Escuta-se o barulho de água, mas não conseguimos ver o ribeiro que avança no fundo da ravina entre o arvoredo.

É Ribeira da Fraga a aldeia que alberga este cantinho de natureza prodigiosa. E continua a surpreender-nos. Novamente no carro,

- É já ali em baixo,

e depois de uma curva, entre curvas na verdade, abre-se um postal ilustrado suspenso no tempo. Um ribeiro (Valizelos?, interroga-se João Pedro) corre entre choupos, agora sentinelas cinzentas de um Inverno rigoroso, e um moinho de pedra quase se confunde com as rochas em volta — vale-lhe o telhado vermelho ferrugento.

- No Verão quase não tem água.

O espanto é grande com o caudal forte que pula um desnível borbulhando intensamente para depois seguir impenetrável campos fora. E desfeita a curva seguinte, novo rio (Tinhela?).

- Tem mais água, uma queda maior e uma gruta. Já tomei banho lá.

Do Porto a Carrazedo de Montenegro uma hora e meia sobeja para percorrer os quilómetros; porém, a geografia mental parece impenetrável.

- O interior está tão maltratado e abandonado que como que se autopreserva.

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