Fugas - Viagens

Guatemala: A história singular dos garifuna numa viagem pela 'terra de Deus'

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

De Rio Dulce a Livingston, sentindo o pulsar do lago Izabal. A natureza em todo o seu esplendor até chegar ao maior assentamento guatemalteco de uma comunidade com uma cultura e uma identidade preservadas ao longo de quase quatro séculos e cuja língua, dança e música integram, desde 2001, a lista de obras-primas do Património Oral e Intangível da UNESCO.

Sob uma luz moribunda, mosquitos voltejando o feixe vertical lançado pela fraca lâmpada, algumas bancas permanecem abertas, esperando a chegada de mais um autocarro. O meu, em idade de reforma, tivera um furo pouco depois da Cidade de Guatemala e agora, envolto naquela semipenumbra, pisando bermas de estrada enlameadas, nada mais restava do que a sonoridade de um nome que facilmente seduz e preenche imaginários de viandantes: Rio Dulce. Poderia idealizar, para lá das precárias barracas, a paisagem magnificente mas teria de aguardar por um novo dia para me embrenhar nesse território ignoto e misterioso onde a natureza se manifesta em todo o seu esplendor.

A mulher parecia pouco interessada em alugar o quarto, tinha o pensamento distante, tudo o que rogava, com o olhar furtivo que me lançava, era que, fosse qual fosse a decisão, a tomasse rápido. Resignado, optei por pernoitar na Bendition de Dios, uma verdadeira bênção para o corpo que carreguei para a rua, ao início de uma manhã com um céu coberto de nuvens brancas e cinzentas, caminhando sempre na direcção do ancoradouro, de onde chegam aos meus ouvidos conversas indecifráveis. Sentado num restaurante, com um elegante alpendre em madeira pintado em tonalidades suaves, testemunho a agitação produzida pelo regresso do mar de pequenas embarcações de onde os pescadores descarregam o peixe para o cais. Uma criança contemplativa, encimada por um anúncio à cerveja Gallo, está sentada ao lado dos seus modestos chinelos, pernas e olhos caindo sobre a água envolta pela bruma que, a pouco e pouco, começa a dispersar-se.

O barqueiro liga o motor e faz sinal aos passageiros, ainda sonolentos, para se instalarem nos bancos de madeira protegidos por uma cobertura na parte superior. De um lado e do outro, logo que o barco rasga as águas do lago, o verde intenso da natureza que não merecia castigo tão pesado a ligar as suas margens, uma inestética ponte em betão, cinzenta e fria, que é parte da auto-estrada que liga, mais a norte, Flores e Tikal. Sob a pesada estrutura, um monumento aos pescadores, um homem abraçando um peixe, e a bandeira nacional drapejando ao vento. Até finais da década de 1970, quando Rio Dulce vulgarmente se designava por Fronteras, topónimo cada vez mais em desuso, o barco era o único meio de transporte que garantia a travessia do lago de Izabal, o mais extenso da Guatemala.

- Não é bonita mas é de grande utilidade para as populações e teve um forte impacto no incremento do turismo em Flores e Tikal, antigamente servidas por estradas que a chuva deixava intransitáveis durante largos períodos do ano.

Shajida Franzua está de volta a Livingston após uns dias de visita à família, em Rio Dulce. No horizonte, para ocidente, projecta-se uma estrutura austera, muros enegrecidos pela humidade rodeando um conjunto de torres que se elevam em matizes mais claros; meia dúzia de palmeiras adorna uma área profusamente verde muito popular entre os habitantes locais para um barbecue ou um simples piquenique, de preferência intervalados com um mergulho nas águas cálidas do lago que, com ondas suaves, se assemelha a uma grande toalha estendendo-se até beijar as fortificações do castelo do qual espreitam 19 canhões. Construído entre 1595 e 1651 pelos espanhóis, o Castelo de San Felipe de Lara serviu como base de defesa face aos constantes ataques dos piratas na zona, tão ávidos de saquear os aldeões como as caravanas comerciais que cruzavam o Izabal. Se contribuiu, em parte, para dissuadir os bucaneiros, essa espécie que existe desde que existe o comércio marítimo, em 1686, impotente perante a força dos corsários, a fortaleza não tardou a ser capturada e posteriormente lançada às chamas que a haveriam de consumir, vivendo incógnita durante quase um século e ressuscitando como prisão quando os mares das Caraíbas já se encontravam livres de piratas. Votado, mais tarde, ao esquecimento, a estrutura não passava de uma ruína até que, em meados do século passado, as autoridades iniciaram os trabalhos de reconstrução, integrando o castelo num parque natural preservado que constitui uma das maiores atracções do Izabal. A panorâmica, desde o torreão mais alto, é sublime, o lago correndo para o rio e o rio apressando-se para o mar perante o olhar perscrutador de Shajida Franzua.  

- O Izabal é a terra de Deus e a fortaleza é o ícone das suas gentes.

Não duvido, nem por um instante.


O silêncio do lago

O castelo fica para trás, como a espuma da ondulação provocada pelo barco, cujo motor é o único a interromper o silêncio que emerge destas águas e das suas margens tão verdes como enigmáticas, exercendo tamanho fascínio sobre o viajante que difícil é desprender o olhar.

- Repara, ali, sobre a tua esquerda, naquelas árvores.

Ao fundo, milhares de aves, de múltiplas cores mas predominando o preto, equilibram-se em troncos esguios.

- É a Ilha dos Pássaros.

O barqueiro, recebendo borrifos no rosto bronzeado, ruma agora para onde o lago Izabal acaba e o Rio Dulce começa, o barco deslizando célere até se deter num cais de madeira por onde erro até entrar, junto à base de um penhasco, nas águas sulfurosas de umas termas, observado por meninos com expressões tímidas que, indolentes, tentam vender uma ou outra peça de artesanato.

- Este é um lugar bonito mas quando regressares a Rio Dulce não deixes de dar um salto à Finca El Paraíso, no lado norte do Izabal, mais ou menos próximo de El Estor.

Uns dias mais tarde, seguindo a sugestão de Shajida Franzua, confirmo com os próprios olhos como a natureza pode ser generosa: uma cascata, caindo de uma altura de doze metros, atira as suas águas quentes para uma piscina natural de água fria que se esconde no meio da selva. Um banho revigorante, o vapor elevando-se, uma atmosfera de autêntica sauna por entre o verde da vegetação que não deixa ver interessantes grutas e um restaurante familiar sobre areias finas.

O rio abre-se agora para um outro lago, o El Golfete, com as suas águas dóceis, uma atmosfera de uma serenidade tão tranquilizadora. Na margem mais a norte, encontra-se o Biotopo Chocón Machacas, uma reserva natural que abrange uma área de 72 km2 (dentro do próprio Parque Nacional Rio Dulce) criada para proteger a beleza paisagística do rio, as valiosas florestas e pântanos de mangue, bem como a sua fauna, que inclui criaturas tão raras (e difíceis de observar) como a anta e, mais ainda, o peixe-boi, um mamífero aquático que pode pesar uma tonelada. 

- Sabes como se chamam estas canoas em miniatura que aquela menina está a tentar vender?

Eu limitei-me a fitar a criança que, sorridente, de mãos cruzadas sobre as pernas, remo em posição de descanso e emoldurada pelas águas do rio e por casas com tecto de colmo, se acercava em movimentos lentos, com o seu alguidar cinzento para inviabilizar uma ou outra infiltração na embarcação.

- São guriaras.

Comprei, por um preço simbólico, uma guriara, perante o olhar perscrutador de Shajida Franzua, cada vez mais desenvolta e comunicativa e genuinamente diligente, enquanto o barco se guiava por entre o emaranhado da vegetação fronteiriço ao rio e nenúfares que tornavam o cenário irreal, como um quadro acabado de pintar para hipnotizar o viandante. Um pássaro, com tonalidades fortes em azul, pousa sobre aquele jardim aquático capaz de enfeitiçar com a sua graciosidade e, ao fundo, resguardadas por árvores centenárias e colinas de contornos bem definidos, uma ou outra cabana com os seus cais rudimentares onde embarcações coloridas dançam ao ritmo do espreguiçar sereno das ondas.

- Queres mesmo aprender a contar de um até dez em garifuna?

- Se não te aborrecer…

- Para mim é um prazer. E, de mais a mais, ainda temos tempo até chegar a Livingston. Tempo suficiente para aprenderes outras coisas. Sabias que na língua garifuna há uma divisão sexual, que certas palavras e expressões são exclusivas de homens e outras de mulheres?

Uma sonora gargalhada ecoa no céu que começa a despir-se.

- Dentro de pouco tempo, vais ver o barana e, caminhando através de um üma, não tardarás a deitar-te sobre a sagoun ainda quente. Vamos aos números?

- Não sem antes me explicares o que quer dizer barana, üma e sagoun, pode ser?

Ela, vendo-me confuso, sorri.

- É fácil, na nossa língua. O que quero dizer é que não falta muito para veres o mar, caminhar ao longo de um trilho e descansar numa praia de areia fina e quente. Livingston tem tudo isso.

Nada me faz duvidar.


O advento de uma sociedade

- Um, aban.

Eu, na minha coerência granítica, remeto o um para o início. A história dos garifuna rompe a aurora no século XVII, na Ilha de São Vicente, território sob a jurisprudência da actual Belize que, devido à sua topografia e inexistência de metais preciosos, nunca seduziu os europeus que, já um século antes, haviam conquistado a América do Sul e a América Central. São Vicente era então habitada pelos kalinago, provenientes do Delta de Orinoco, cujas origens abandonaram atraídos pela oferta piscatória nas Pequenas Antilhas. Não obstante a sua baixa estatura, os homens desta tribo eram robustos e não sentiram grande dificuldade para eliminar os arawak, optando por manter as mulheres para com elas contraírem matrimónio. A união entre os dois grupos resultou numa nova sociedade conhecida por kalipuna, em certos círculos também designados Caribes Amarelos, Caribes Vermelhos e Ameríndios. 

O barco prepara-se para sulcar de novo as águas dóceis do Rio Dulce e eu, sentindo-me observado, planto os olhos na pequena que, com a sua camisola bordeaux, a sua saia azul e uns pés descalços, me fita demoradamente, como se diagnosticasse uma despedida sem regresso naquele momento para mim tão intenso.

- Dois, biama

Em 1635, dois navios espanhóis carregados de escravos provenientes de África (algumas teses defendem a Nigéria, outras o território hoje ocupado pelo Gana), naufragaram nas proximidades da Ilha de São Vicente, alegadamente induzidos em erro pelos kalipuna que, com alguma frequência, davam falsas coordenadas, atraindo as embarcações para as margens do rio, onde lhes saqueavam toda a carga e matavam os membros da tripulação. Ansiosos por estabelecer laços de amizade e evitar a sua compra por parte dos proprietários, os escravos foram acolhidos pelos indígenas e rapidamente adoptaram os seus costumes, dando início a um processo de aculturação que os tempos se encarregaram de exacerbar, com forte impacto na religião, na música, na gastronomia e na língua, uma verdadeira identidade cultural que nunca, ao longo de quase quatro séculos, deixou de ser preservada.

- Ürüwa.

E eu, como aluno disciplinado, registo, três, e repito:

- Ürüwa.

Shajida Franzua, anuindo, encara-me com uma expressão séria.

- Vê-se que te interessas pela história do povo. Muitos, entre tantos turistas, fitam os garifuna como um objecto. Fico feliz por olhares para lá desse horizonte, por não te limitares a meia dúzia de fotografias, como se estivesses de visita a um jardim zoológico.

Ainda no século XVII, uma drástica mudança ocorre na sociedade vicentina devido ao rápido crescimento geográfico da comunidade negra, motivado pela conquista de Barbados e Santa Lúcia. Recusando-se a aceitar as novas regras impostas pelos colonizadores, os nativos destas duas ilhas reuniram os seus bens e, zarpando em canoas, não tardaram a chegar a São Vicente, aliando-se aos kalipuna. As constantes lutas pelo poder e as disputas territoriais acabaram por provocar uma divisão e, a despeito de kalipuna e garifuna temerem que esse foco de tensão fosse aproveitado pelos europeus, centrando neles a sua atenção, os garifuna, homens altos e corpulentos, não tardaram a forçar a retirada dos kalipuna para a parte mais ocidental da ilha. Quando a notícia sobre os problemas internos entre as duas tribos chegou a França, os franceses optaram por apoiar os kalipuna, instalando-se nas terras ocupadas por estes, enquanto os garifuna, guerreiros bravos e temidos, resistiam a qualquer tentativa de colonização europeia.

- Gádürü é quatro.

O sol abre as suas cortinas e as árvores e a densa vegetação, reflectindo-se na água como num espelho, enchem a moldura que emite sons de pássaros. O lago El Golfete, a meio do percurso entre Rio Dulce e Livingston, era o antigo portal dos caminhos maias, dos conquistadores espanhóis e dos piratas, a curta distância do Mar das Caraíbas. Área protegida desde 1955, é habitada por mais de 350 espécies de pássaros e um número significativo de plantas, animais e insectos raros ou em vias de extinção, um verdadeiro paraíso para entomologistas e etnobotânicos, mas também para o comum dos mortais que aprecia a beleza, a diversidade, a complexidade e a magia deste lugar no meio da selva, tão arrebatador e tão tranquilo.

Os franceses, não obstante algumas tentativas, foram céleres a assimilar que estavam perante uma comunidade praticamente impenetrável e, capitulando, estabeleceram uma relação pacífica com os garifuna, enquanto estes, sentindo-se fortalecidos, assimilaram alguns dos costumes dos europeus: a moeda para trocas comerciais, o gosto pelo vinho e não pelo rum e incorporaram inclusive palavras francesas no seu dialecto.  

- Se reparares, alguns dos números têm fortes semelhanças com o francês. Cinco, seingü, não tanto, mas sisi, seis, não deixa grandes dúvidas, não te parece? E sedü? E widü?

- Mais devagar -, protesto.

- Não tarda, estamos a chegar a Livingston. Já viste aquele mural?

Sigo a trajectória do indicador de Shajida Franzua. Numa rocha escarpada destaca-se um grande número de graffiti. É a La Pintada. Segundo a lenda, a população local deixa aqui a sua marca desde há mais de 300 anos mas ninguém detecta uma pintura anterior à década de 50 do século passado.


O desterro em Roatán 

São Vicente e as ilhas vizinhas convertem-se, de forma gradual, em zonas estratégicas para um eventual controlo do território e o avanço dos ingleses sobre estas é iminente. Os anos que se seguem ficam marcados pela rivalidade entre franceses e ingleses, uma guerra sem tréguas em que os garifuna, apoiando os primeiros, impõem, numa fase inicial, sucessivas humilhações aos segundos. As hostilidades chegaram ao fim após um ano caracterizado pelo que se denominou guerra de exaustão, culminando com o ataque inglês, levado a cabo por 4000 homens, que conduziu à rendição dos garifuna. Mas nem assim diminuíram os receios dos novos colonizadores, fortemente alicerçados no elevado número de negros a viver na ilha. A solução passava por transformá-los em filhos do desterro. Os números do êxodo são pouco claros mas suspeita-se que, no dia 2 de Fevereiro de 1797, nove navios deixaram São Vicente carregados com mais de cinco mil homens, muitos dos quais pereceram após uma longa e penosa travessia que os levou até Roatán (desde 1742 uma colónia britânica), na Baía das Honduras, onde não desembarcaram mais de 2500.

“São Vicente era o nosso território, os brancos expulsaram-nos dali, por isso navegámos de costa em costa, procurando os nossos irmãos gariganu (como também são conhecidos os garifuna).”

Ainda hoje, sempre que o dia é de festa, barcos carregando orgulhosos garifuna entoam cânticos como este, que remetem para as suas origens, bandeiras ufanando ao vento, uma manifestação religiosa e, ao mesmo tempo, patriótica de quem preserva raízes há muito semeadas. 

No início do século XIX, a América Central vive de novo ensombrada pelo fantasma da guerra, Espanha e Inglaterra lutando pelo domínio da costa. Em Roatán, as terras eram difíceis de cultivar e os garifuna, temendo pela sua sobrevivência, intercedem junto dos espanhóis para que os conduzam a Trujillo (principal forte de defesa na costa hondurenha), um pedido que os colonizadores aceitam mais por interesse do que por compaixão. Em mente, a ocupação pacífica de Roatán mas também a garantia de mão-de-obra para os trabalhos agrícolas, a incorporação de alguns deles no exército e a sua utilização em missões de espionagem, facilitada pelo facto de muitos garifuna se dedicarem ao contrabando.

O barqueiro parece adormecido ou vivendo apenas no encantamento provocado pelo cenário magnificente. O barco, sem pressas, penetra numa imponente garganta, a Cueva de la Vaca. Shijada Franzua permanece desperta.

- Nefu é nove.

É em Trujillo que a tribo se solidifica, criando uma identidade linguística muito forte mas, a despeito da presença de colonos negros, a população garifuna apenas se integra com um grupo de haitianos que chega a Trujillo mais ou menos na mesma altura. Uma integração que resulta em alguns casamentos e que acentua a presença do francês crioulo na língua destes valorosos guerreiros. Mas, uma vez mais por dificuldades de subsistência, cinco anos após a chegada a Trujillo, os garifuna começam a dispersar-se pelas zonas costeiras da América Central. Um dos lugares onde assentaram foi na baía de Amatique, no Departamento de Izabal, fundando a comunidade de La Buga, que mais tarde se tornará Livingston. E, já no início do século passado, quando mais de 100 empresas iniciaram a exploração do rentável negócio de exportação de bananas, fortemente implantado em Livingston e Puerto Barrios, o número de garifuna a viver em Izabal – bem como em outras cidades ao longo da costa, da Nicarágua às Honduras, passando pelo Belize – aumentou exponencialmente, registando uma diminuição acentuada quando, já na segunda metade do século, se instalou uma grave crise económica que levou elevada percentagem à procura do sonho americano (a população garifuna a residir nos Estados Unidos ronda os 100 mil e em toda a América Central os 300 mil).


A vida é uma festa

- Dîsi é dez.

Ao fundo, depois de avistar as águas do rio Tatin, sobre a minha esquerda, vislumbro um conjunto de casas.

- É Livingston.

A rua sobe íngreme, deixando ver de ambos os lados casas pintadas em tons garridos. Num enorme cartaz pode ler-se: Yo soy amigo del turista. Shijada Franzua, sempre com o seu sorriso franco, potenciou ao máximo esse lema e dela me despeço com afecto.

Ao início da tarde, volto a entrar num barco e os meus olhos não se demoram a observar um golfinho executando elegantes movimentos junto a uma embarcação que segue a escassos metros de distância, juncando as águas da baía de Amatique. Embrenho-me, solitário, pela beleza infinita de Siete Altares, com as suas múltiplas cascatas e piscinas naturais, escuto um ou outro queixume de um pássaro, o sol dardejando por entre a folhagem e, ainda com umas horas pela frente até o disco laranja pousar no horizonte, estendo-me na Playa Branca, com as suas areias finas e as suas palmeiras, mais uma partícula desta terra de Deus.

- Quieres jugar al fútbol?

Aceito o convite de Nelgo, que vive com a família na Playa Blanca, e com ele faço equipa, contra Marvin e Ronaldo, a frágil bola de plástico rolando sobre a areia, as ondas morrendo num suave murmúrio na praia. Quando, finalmente, o crepúsculo se anuncia, já em Livingston, caminho por entre as casas dos garifuna, detenho-me para uma troca de palavras com crianças afáveis e, logo que a noite cai, vou ao encontro dos sons festivos, da música ecoando nos meus ouvidos. Entro na Cantina El Puente, vejo e escuto como rufam os tambores, como os garifuna dançam sem alguma vez levantarem os pés e aceito o convite de gente que não se cansa de sorrir para beber uma Gallo.     

A noite avança cheia de pressa quando decido beber uma última cerveja. Homem e mulher, sentados na mesma esplanada, escutando passos rápidos ou sons musicais que se cruzam como sinos pouco sintonizados, teimam numa discussão tão viva como deve ser uma fogueira numa noite invernosa. O céu enche-se de estrelas, sem brilho, a lua esconde-se, ele tem uma mortalha e um pouco de tabaco na mão.

- Convidaste-me para vir de férias, até Livingston, o paraíso prometido. Só se for para ti. Acho que a sonoridade do nome te está a perturbar. Era de Livingston que falavas ou de Living Stoned? Parece que não tens mais nada para fazer na vida!

Não me sentia no direito, e muito menos na obrigação, de ouvir o final. Levantei-me quando escutei as últimas palavras da senhora com uma expressão furiosa. Os lençóis estavam limpos, respiravam asseio, da janela do meu quarto via as mesmas estrelas, escutava a canção do mar mas o sono não entrava nem pela mais pequena fresta. Já não acreditava na história dos carneiros mas pus-me a contar, pausadamente, com suaves hesitações:

aban,biama,ürüwa,gádürü,seingü,sisi,sedü,widü,nefu e dîsi.

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Informações

Quando ir

Não se pode falar de uma altura má para visitar a Guatemala mas a época das chuvas, entre meados de Maio e finais de Outubro – no Norte e na parte ocidental estende-se até Dezembro -, pode tornar penosa a circulação em algumas estradas não pavimentadas. Isto não significa que chova durante todo o dia mas poucos são aqueles, neste período, em que não ocorrem aguaceiros. O Verão, por vezes com temperaturas muito elevadas e altos índices de humidade, vai de Novembro a Abril, altura do ano em que o país regista a maior afluência de turistas (no Natal e na Páscoa, quando uma larga percentagem de guatemaltecos goza as suas férias, é fundamental reservar hotéis com antecedência). Mas entre Junho e Agosto os menos prevenidos podem também encontrar dificuldades em termos de alojamento, tantos são os norte-americanos que procuram a Guatemala para uns dias de descanso a preços muito convidativos.

Como ir

A melhor tarifa (980 euros) para o trajecto entre Lisboa e o aeroporto La Aurora, na Cidade da Guatemala, tendo em atenção o número de escalas e de horas de voo, é oferecida pela Iberia. A KLM também serve a capital guatemalteca mas obriga a paragens em Amesterdão e em Atlanta – a partir daqui a ligação é feita pela Delta Airlines -, enquanto a United Airlines, em conjunto com a TAP, cumpre o percurso com paragens em Londres e Houston. Tanto num caso como no outro, os valores praticados, muito próximos dos que são proporcionados pela Iberia (apenas uma escala, em Madrid), não compensam o dispêndio de energia e de tempo. Da Cidade da Guatemala (15ª Calle, 10-40, Zona 1), partem de meia em meia hora (o primeiro às 4h30 e o último às 19h) autocarros da empresa Litegua com destino a Puerto Barrios (aproximadamente cinco horas). A melhor opção, no entanto, pelas atracções que possibilita a partir daqui, é escolher como destino Rio Dulce (um total de seis horas desde a capital, apenas quatro autocarros por dia mas qualquer um que segue para Flores o deixa em Rio Dulce), onde pode pernoitar antes de iniciar a viagem que o levará até à foz do rio, em Livingston. Quer de Rio Dulce, quer de Puerto Barrios, é importante reter que o barco é o único meio de transporte que lhe permite chegar àquela vila costeira. Da primeira, saem colectivo lanchas, às 9h e às 14h (cerca de dez euros) que transportam entre oito e dez passageiros - mas também é possível alugar uma lancha e chegar a Livingston em menos tempo (um desperdício perante tanta beleza); do embarcadouro municipal, no final da 12ª Calle, em Puerto Barrios, partem dois ferries por dia, às 10h e às 17h (regressos às 5h e às 14h), para Livingston, um percurso de uma hora e meia (pouco mais de dois euros) que, se não chegar ao porto uma hora antes, terá de fazer de pé. Uma vez mais, as lanchas, mais pequenas e mais rápidas, constituem uma alternativa, cumprindo o trajecto (zarpam apenas quando têm uma dúzia de passageiros) em cerca de trinta minutos mas por um pouco mais do dobro do preço dos ferries.  


Onde comer

Excepção feita ao peixe e ao coco, uma refeição em Livingston pode, se comparada com a maior parte dos lugares na Guatemala, tornar-se cara. Quase todos os produtos são transportados de barco, acarretando maiores despesas aos locais e, consequentemente, um certo impacto nas carteiras dos turistas de passagem. Não deixe de provar a especialidade local, o tapado, um estufado confeccionado com peixe, marisco e leite de coco e temperado com coentros. E, entre as bebidas, vale a pena saborear um coco loco, um coco verde aberto numa das extremidades e misturado com uma dose saudável de rum. O Restaurante Gaby, na Calle Marcos Sánchez Diaz, oferece alguns dos melhores pratos de marisco a preços razoáveis (entre os três e os cinco euros) e, na Calle Principal, não deixe de visitar o McTropic, de preferência sentado numa mesa no exterior, vendo o mundo passar à sua frente enquanto se delicia, uma vez mais, com a rica gastronomia feita à base de marisco, incluindo saborosa comida tailandesa (preços oscilam entre os quatro e os dez euros).

Onde dormir

Se precisar de passar uma noite em Rio Dulce, o Hotel Backpackers (casaguatemala@guate.net), situado sob (literalmente) a ponte de betão que liga as duas margens, é uma alternativa a ter em conta, com quartos básicos mas com preços muito em conta. Com embarcadouro privado, Internet gratuita e um restaurante agradável, o Backpackers é gerido pela Casa Guatemala, uma instituição que apoia crianças órfãs e abandonadas – mais uma razão para pernoitar neste espaço acolhedor. Em Livingston, face ao incremento do turismo nos últimos anos, tem vindo a aumentar o número de hotéis e de guesthouses, algumas de qualidade duvidosa. Os preços são, de uma forma geral, muito acessíveis mas meia dúzia de euros podem proporcionar um conforto suplementar e melhores condições de higiene. Entre os mais baratos (cinco a quinze euros), estão o Hotel Maya Quirigua, na Calle Marcos Sánchez Diáz, com um ambiente familiar, o Hotel Rio Dulce, na Calle Principal, com boa panorâmica desde as suas frondosas varandas e comida deliciosa no restaurante, e o Casa de la Iguana, também na Calle Marcos Sánchez Diáz, com quartos asseados e uma decoração elegante. Para um pouco mais de um luxo, nada como experimentar o Hotel Villa Caribe (www.hotelvillacaribe.com/), na Calle Principal, um exemplo de modernidade, com jardins tropicais e uma piscina com bar, com preços que variam entre os 60 e os 80 euros.

 

Vistos
Os cidadãos portugueses não necessitam de visto para entrar na Guatemala, apenas um passaporte com a validade de seis meses que será carimbado no aeroporto (ou em qualquer fronteira terrestre) e permite ao visitante a permanência no país por um período de 90 dias. Se pretender, ao fim de três meses, alargar a sua estada, deve dirigir-se ao Departamento de Extranjeria (6ª Avenida, 3-11, Zona 4, Cidade de Guatemala), munido de uma fotocópia do cartão de crédito (de ambos os lados), outra do bilhete de avião (saída do país) ou, na ausência destes documentos, comprovar que está na posse de pelo menos 500 dólares americanos, de preferência em cheques de viagem. A extensão do visto é, por norma, concedida ao fim de 24 horas (os serviços funcionam de segunda a sexta, entre as 8h e as 14h30). É importante ter em conta que a Guatemala integra, desde 2006, o CA-4 (Centro América-4), um acordo comercial que permite a livre circulação de pessoas e bens entre El Salvador, Nicarágua, Honduras e Guatemala – significa que, uma vez num destes países, o turista pode percorrer a região durante 90 dias sem ter de solicitar visto depois de carimbado o passaporte e sem grandes burocracias nas fronteiras.

 

 

Moeda
Um euro equivale a 11 quetzales, a moeda guatemalteca, mas em muitos locais os dólares americanos têm forte aceitação e, à excepção das zonas mais remotas, há caixas de multibanco um pouco por todo o lado.

 

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