Fugas - Viagens

Guatemala: A história singular dos garifuna numa viagem pela 'terra de Deus'

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

De Rio Dulce a Livingston, sentindo o pulsar do lago Izabal. A natureza em todo o seu esplendor até chegar ao maior assentamento guatemalteco de uma comunidade com uma cultura e uma identidade preservadas ao longo de quase quatro séculos e cuja língua, dança e música integram, desde 2001, a lista de obras-primas do Património Oral e Intangível da UNESCO.

Sob uma luz moribunda, mosquitos voltejando o feixe vertical lançado pela fraca lâmpada, algumas bancas permanecem abertas, esperando a chegada de mais um autocarro. O meu, em idade de reforma, tivera um furo pouco depois da Cidade de Guatemala e agora, envolto naquela semipenumbra, pisando bermas de estrada enlameadas, nada mais restava do que a sonoridade de um nome que facilmente seduz e preenche imaginários de viandantes: Rio Dulce. Poderia idealizar, para lá das precárias barracas, a paisagem magnificente mas teria de aguardar por um novo dia para me embrenhar nesse território ignoto e misterioso onde a natureza se manifesta em todo o seu esplendor.

A mulher parecia pouco interessada em alugar o quarto, tinha o pensamento distante, tudo o que rogava, com o olhar furtivo que me lançava, era que, fosse qual fosse a decisão, a tomasse rápido. Resignado, optei por pernoitar na Bendition de Dios, uma verdadeira bênção para o corpo que carreguei para a rua, ao início de uma manhã com um céu coberto de nuvens brancas e cinzentas, caminhando sempre na direcção do ancoradouro, de onde chegam aos meus ouvidos conversas indecifráveis. Sentado num restaurante, com um elegante alpendre em madeira pintado em tonalidades suaves, testemunho a agitação produzida pelo regresso do mar de pequenas embarcações de onde os pescadores descarregam o peixe para o cais. Uma criança contemplativa, encimada por um anúncio à cerveja Gallo, está sentada ao lado dos seus modestos chinelos, pernas e olhos caindo sobre a água envolta pela bruma que, a pouco e pouco, começa a dispersar-se.

O barqueiro liga o motor e faz sinal aos passageiros, ainda sonolentos, para se instalarem nos bancos de madeira protegidos por uma cobertura na parte superior. De um lado e do outro, logo que o barco rasga as águas do lago, o verde intenso da natureza que não merecia castigo tão pesado a ligar as suas margens, uma inestética ponte em betão, cinzenta e fria, que é parte da auto-estrada que liga, mais a norte, Flores e Tikal. Sob a pesada estrutura, um monumento aos pescadores, um homem abraçando um peixe, e a bandeira nacional drapejando ao vento. Até finais da década de 1970, quando Rio Dulce vulgarmente se designava por Fronteras, topónimo cada vez mais em desuso, o barco era o único meio de transporte que garantia a travessia do lago de Izabal, o mais extenso da Guatemala.

- Não é bonita mas é de grande utilidade para as populações e teve um forte impacto no incremento do turismo em Flores e Tikal, antigamente servidas por estradas que a chuva deixava intransitáveis durante largos períodos do ano.

Shajida Franzua está de volta a Livingston após uns dias de visita à família, em Rio Dulce. No horizonte, para ocidente, projecta-se uma estrutura austera, muros enegrecidos pela humidade rodeando um conjunto de torres que se elevam em matizes mais claros; meia dúzia de palmeiras adorna uma área profusamente verde muito popular entre os habitantes locais para um barbecue ou um simples piquenique, de preferência intervalados com um mergulho nas águas cálidas do lago que, com ondas suaves, se assemelha a uma grande toalha estendendo-se até beijar as fortificações do castelo do qual espreitam 19 canhões. Construído entre 1595 e 1651 pelos espanhóis, o Castelo de San Felipe de Lara serviu como base de defesa face aos constantes ataques dos piratas na zona, tão ávidos de saquear os aldeões como as caravanas comerciais que cruzavam o Izabal. Se contribuiu, em parte, para dissuadir os bucaneiros, essa espécie que existe desde que existe o comércio marítimo, em 1686, impotente perante a força dos corsários, a fortaleza não tardou a ser capturada e posteriormente lançada às chamas que a haveriam de consumir, vivendo incógnita durante quase um século e ressuscitando como prisão quando os mares das Caraíbas já se encontravam livres de piratas. Votado, mais tarde, ao esquecimento, a estrutura não passava de uma ruína até que, em meados do século passado, as autoridades iniciaram os trabalhos de reconstrução, integrando o castelo num parque natural preservado que constitui uma das maiores atracções do Izabal. A panorâmica, desde o torreão mais alto, é sublime, o lago correndo para o rio e o rio apressando-se para o mar perante o olhar perscrutador de Shajida Franzua.  

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