Fugas - Viagens

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Moçambique: A sul, tudo de novo

Por Ricardo Santos

De jipe, através de uma reserva de elefantes, em paisagem protegida até ao paraíso prometido. No sul de Moçambique, Ponta do Ouro e Ponta Mamoli são segredos tão bem guardados que nem apetece contar o que por lá se passa.

Depósito cheio. Pressão dos pneus verificada. Roda suplente na bagageira. Dois garrafões com cinco litros de água no banco de trás. Os 115 quilómetros de asfalto esburacado, terra batida, areia e lama assustam, mas a recompensa promete fazer esquecer as agruras do percurso entre a Catembe e a Ponta do Ouro, extremo austral de Moçambique, a dez quilómetros da fronteira com a África do Sul.

“Vale a pena o caminho”, reforça Fernando Costa, o português morador na Matola que cede o seu jipe para a aventura - “Só dá para ir em 4x4, nem pensem em ir num carrito normal.” Informações na Internet não há muitas. Em português são escassas, em inglês apontam para hotéis e pousadas, restaurantes, bares e uma praia de sonho. “Só lá indo é que se percebe como aquilo é bonito”, garante Fernando. E despede-se com um aperto de mão numa rua quase deserta da Matola, subúrbio residencial a menos de vinte quilómetros de Maputo.

Da capital moçambicana, do cais não muito longe da estação ferroviária, parte às meias horas um ferryboat da Transmaritima para a Catembe, a pequena localidade do outro lado da baía de Maputo. A ligação também pode ser feita por estrada (em direcção a Boane e, depois, ao sul), mas ganha-se tempo desta forma. Não chega a 300 meticais (pouco mais de sete euros) a travessia para dois adultos e um veículo todo-o-terreno. São cerca de vinte minutos de viagem e uma boa oportunidade para ver a cidade desde a Baía de Maputo. No regresso, à noite, o impacto será ainda maior.

A saída do barco é tranquila. À beira da estrada asfaltada há bancas de rua, gente com sacos às costas e trouxas na cabeça. As capulanas coloridas que envolvem os corpos das mulheres dão vida à multidão que se apressa para chegar ao ferry e cruzar para o outro lado. Ainda não são onze da manhã e o calor já deixa marcas de transpiração. No jipe com mais de dez anos o ar é condicionado pela velocidade a que se circula. As janelas variam entre abertas e fechadas, ao sabor da quantidade de veículos que surgem na direcção contrária e do pó que fazem saltar do piso. Não existem placas de sinalização e na cabeça só se repete o conselho de Fernando: “Quando saírem do barco, vão sempre em frente.”

Os primeiros dez quilómetros passam tão rapidamente quanto o alcatrão. As falhas na estrada passam a buracos e destes a crateras. Dos 70km/h depressa se passa para os cinquenta, trinta e vinte numa gincana para fugir à possibilidade de se partir um dos eixos. No banco de trás, as mochilas já estão cobertas por uma fina camada de pó. O espelho retrovisor confirma que também a cara já ganhou um tom de pele diferente. À sombra de uma árvore, dois polícias refugiam-se do sol, indiferentes ao pouco trânsito que circula.

Bela Vista é a localidade que serve de bússola. Está 40 quilómetros a sul de Catembe e cerca de 18 antes de Salamanga. O caminho é o correcto, até agora não há enganos. No mostrador do jipe, o indicador de temperatura do motor aconselha uma paragem sem desligar a máquina. É tempo de recorrer ao primeiro dos garrafões de água e matar a sede ao radiador. As “chapas” – carrinhas de nove lugares que substituem os transportes públicos – passam a uma velocidade que se julgaria impossível para a qualidade do caminho. Abrandam e do seu interior alguém pergunta se é preciso ajuda. Voltam à sua velocidade de cruzeiro enquanto a temperatura do todo-o-terreno regressa à normalidade. Salamanga já está bem perto e logo a seguir não há como falhar a entrada para a Reserva de Elefantes, hora e meia depois do desembarque do ferry.


Safari ecológico

Em 1932, quando os elefantes por aqui andavam em grande número, surgiu a primeira tentativa de criação da Reserva Especial de Maputo. As fronteiras actuais ficaram definidas apenas em 1960, delimitadas pela baía de Maputo a Norte, o oceano Índico a Este, o rio Maputo e a estrada a Oeste e os lagos Xingute e Piti a Sul. São mais de 750 km2 de superfície onde, além dos paquidermes, já abundaram antílopes e o rinoceronte branco. Se os anos de Guerra da Independência (de 1964 a 1975) e de Guerra Civil (de 1977 a 1992) foram arrasadores para a população humana, o mesmo ocorreu com as restantes espécies animais. Durante esses períodos de conflito a fauna foi caçada e apanhada no meio dos combates, o que originou a sua quase total extinção. Desde a década de 1990 essa tendência inverteu-se e hoje há cerca de meio milhar de elefantes na área protegida. Hipopótamos, crocodilos, antílopes, macacos, cobras, cabritos e uma grande variedade de aves – paraíso para os ornitólogos - compõem a lista de espécies que podem ser avistadas neste diversificado ecossistema que inclui florestas de solo arenoso e de terras húmidas, mangais ou dunas. A componente paisagística é impressionante pela sua variedade. Tão depressa se está numa praia do Índico a mergulhar num recife de coral como se caminha pela savana rasteira ali bem perto.

Pesca e canoagem são actividades permitidas e eleitas pelos muitos visitantes moçambicanos, mas também pelos oriundos das vizinhas Suazilândia e África do Sul. A Reserva Especial de Maputo pode ser visitada todos os dias do ano entre as 7h30 e as 16h30 (bilhetes a partir de 50 meticais, para jovens entre os 13 e os 20 anos, e 200 meticais para adultos - 1,20 e 4,80 euros respectivamente). No seu interior as estradas são de areia solta, o que implica alguma perícia na condução em 4x4. A vegetação densa esconde recantos selvagens e é comum avistar guardas em alguns dos locais mais inóspitos. Garantem a segurança de quem passeia pelo território, mas também trabalham para localizar e capturar caçadores furtivos que conhecem a região como ninguém. Ao longo da costa, praias como Chemucane, Benbene ou Milinbagala surpreendem por serem zonas de nidificação de tartarugas marinhas. E no mar é comum avistar baleias e golfinhos.

Pernoitar na Reserva é uma hipótese a considerar. Há empresas vocacionadas para este tipo de turismo, como a Bushfind (www.bushfind.com), de empresários portugueses. Um dos seus programas inclui saída de Maputo em viatura todo-o-terreno, guia especializado, alojamento de duas noites em tendas, alimentação e roteiro pela Reserva. A experiência é única, mas o objectivo agora é outro – chegar ao destino final antes do anoitecer.

Quatro horas são suficientes para percorrer os 115 quilómetros entre Catembe e a Ponta do Ouro. Desde que não haja furos, avarias ou rodas atascadas. E é logo a seguir à Reserva dos Elefantes que a animação aumenta de intensidade. A terra batida dá lugar a areia solta e a picada transforma-se numa faixa com dois sentidos. A solução é ir ao mato sempre que duas viaturas se cruzam. Por esta altura já há tanto pó dentro como fora do jipe. As bifurcações sucedem-se e há cada vez menos gente a quem se possa perguntar a direcção certa. Andar perdido faz parte da experiência. A solução passa por tentar seguir vestígios de civilização, como postes de electricidade, trilhos de pneus e vislumbre de casas ou cabanas. O segundo garrafão de água está quase vazio e o fumo que sai do capot não é um sinal tranquilizador.

Sucedem-se as paragens para arrefecimento. Dos ânimos e do radiador. A semelhança com um rali Dakar não é pura coincidência, com a agravante de não haver assistência em viagem ou carro de apoio. O objectivo intermédio é chegar a Zitundo, uma pequena aldeia a meia hora da Ponta de Ouro, mas não é fácil quando se tem de parar a cada cinco quilómetros para desenterrar as rodas ou “dar de beber” ao jipe. Em momentos de desespero, as sábias palavras de Fernando Costa voltam a ecoar - “Vale a pena o caminho.”


Finalmente lá

Há um carro que se aproxima em sentido contrário. O fumegante motor do jipe faz com que pare e ofereça ajuda. “Já estão perto”, tranquiliza o homem com perto de 60 anos que segue com a mulher para a capital. “Têm onde ficar na Ponta do Ouro?”, pergunta. É proprietário de uma pequena pousada na localidade e, pelo telefone, avisa os funcionários que vão chegar novos clientes. Ao mesmo tempo pede a um mecânico para ir à entrada da povoação esperar pelos tripulantes do jipe que está quase a dar as últimas.

Poucos quilómetros à frente, o perito está à beira da estrada, faz um primeiro diagnóstico pouco animador e indica o caminho até à Bouganvilla Sol Guest House. Ponta do Ouro é uma pequena vila de ruas não asfaltadas onde a oferta turística se destaca. Passaram cinco horas desde a travessia de barco, o dia está a chegar ao fim e é tempo de estacionar, tirar a bagagem do carro e tomar um merecido banho. Um último olhar para o jipe revela mais um revés – um furo. O pneu dianteiro do lado direito está furado. Há que escolher entre o macaco e uma cerveja gelada. Deixá-lo estar furado. Amanhã será outro dia.

Os bares e restaurantes começam a ficar com clientes a partir do momento em que o sol se põe. Os turistas são na sua grande maioria sul-africanos. A fronteira está a cerca de dez quilómetros, no norte da província de Kwazulu-Natal. Durban dista 460 quilómetros e Joanesburgo fica a 630. Os grelhados estão na ordem do dia, a cerveja é rainha da ementa e o vento que vem do mar obriga a um agasalho. O caminho de regresso à pousada é feito com a sensação de dever cumprido e o lamento por não se ter chegado a tempo de ver a praia com a luz do dia.

Tudo se resolve às primeiras horas da manhã e a surpresa não poderia ser melhor. A areia branca, o mar azul, a vegetação pelos montes, tudo se conjuga para um postal de férias como aqueles das capas de revista. São 18 quilómetros de areal virados para uma Reserva Marinha que procura o reconhecimento da UNESCO como Património da Humanidade. A proposta foi entregue em 2011 pelo governo moçambicano, com o apoio da Suazilândia e da África do Sul, mas a distinção ainda não saiu. A oficial, porque a oficiosa é dada por quem cá consegue chegar. Este já é um dos destinos de eleição dos sul-africanos em Moçambique e isso percebe-se pela quantidade de cartazes em inglês e pela enorme variedade de infra-estruturas de apoio, como hotéis, restaurantes, bares, lojas, escolas de mergulho – mais de 20 locais para imersão - ou centros de desportos náuticos. Não faltam as oportunidades de saídas em barco para pesca no alto mar, onde atuns e espadartes aguardam pelos aventureiros.

O recife de coral estende-se a outra praia digna de visita: Mamoli. Já com o pneu reparado, será esse o destino seguinte. A condição da estrada não melhora, e a do jipe muito menos. Os garrafões de água estão novamente cheios e os 18 quilómetros até à Ponta Mamoli são suficientes para os vazar. As moto-quatro são os veículos de eleição para estes terrenos sinuosos, arenosos e confusos. Cruzam a picada, entram na floresta com os seus ocupantes devidamente acondicionados por capacetes e fatos quase de competição.

A busca agora é pelo White Pearl Resort (www.whitepearlresorts.com/), um hotel referenciado como um dos mais luxuosos do país, oferta única na região. Na encosta sobre uma praia de dois quilómetros de extensão, 21 cabanas foram construídas viradas para o oceano Índico. Seis têm piscina privativa e acesso exclusivo a um areal que já foi votado como uma das dez melhores praias de África. A cada um destes chalets de luxo está atribuído um mordomo para resolver qualquer questão que possa ocorrer. E há um problema que precisa ser solucionado – o jipe. O eixo dianteiro deixou de funcionar e é necessária uma peça para o substituir. Nessa mesma noite, o mecânico do hotel é enviado à África do Sul para tratar do sucedido.

Agora há que aproveitar ao máximo um resort como há poucos no mundo. E há muito para fazer. Entre a praia e a piscina o tempo vai passando de forma tranquila. Os cocktails fazem esquecer as dores de costas da viagem, tal como o jantar gourmet no restaurante do White Pearl. Há uma ementa fixa, mas cada cliente pode escolher aquilo que quer comer no jantar da noite seguinte. Tudo é permitido, sem custos extras. Mimar o hóspede é a função dos diversos funcionários do hotel. E se alguém quiser um café e um pastel de nata a mais de oito mil quilómetros de Portugal, os desejos serão rapidamente concretizados.

No dia seguinte, um helicóptero aproxima-se do White Pearl Resort. É um serviço personalizado (a partir de 290 euros por pessoa, ida e volta) que leva - e traz - os clientes para Maputo. A viagem tem a duração de 45 minutos, sobrevoando uma paisagem protegida onde não faltam motivos para exclamações de espanto. Bem mais rápido que as quase seis horas de jipe. Entretanto, a peça que faltava foi feita de novo e a viatura está pronta para fazer o caminho de volta. A vontade de sair deste pequeno paraíso é proporcional à de entrar novamente no todo-o-terreno e enfrentar a poeira do caminho. Mas o que tem de ser, tem muita força. Cinco quilómetros depois, com o fim do dia a chegar, o jipe de Fernando Costa entrega os pontos. A junta da cabeça do motor está queimada e não há salvação à vista. O pôr do sol em África é coisa já descrita em centenas de livros e filmes.

À beira da estrada, sem transporte, com os mosquitos a iniciarem a sua actividade, percebe-se o impacto da imensa bola amarela na paisagem. A poucas centenas de metros um homem termina o dia de trabalho a cortar canas. Carrega-as para a palhota. Todos os dias faz o mesmo, no seu ritmo, indiferente ao que se passa no resto do mundo. É esse o sentimento que se impõe, o da relativização de todos os problemas. A boa vontade dos funcionários do hotel faz com que se volte a Zitundo, a reboque. A venda da aldeia é o ponto de encontro com a alma caridosa que Fernando envia para ir buscar os viajantes. O jipe, esse, fica por ali, à espera de um milagre.

O último ferry para Maputo parte às 23h45 de Catembe. Os edifícios mais altos da capital moçambicana estão iluminados. Atravessar a baía de Maputo àquela hora é outra das muitas recompensas da viagem. Não há como fugir à máxima budista – não há caminho para a felicidade, a felicidade é o caminho.

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Informações

Onde dormir

Ponta do Ouro

Bouganvilla Sol Guest House
46, Ponta do Ouro
Matutuine
Tel.: 00258 82 306 909000258 82 306 9090/ 00258 82 310 436000258 82 310 4360
Quarto duplo a partir de 60 euros por noite sem pequeno-almoço

Ponta Mamoli
White Pearl Resort
Zitundo
Tel.: 00258 84 605 811200258 84 605 8112
Suite dupla a partir de 524 euros por noite com pequeno-almoço e jantar
www.whitepearlresorts.com


Onde comer

Ponta do Ouro

Fishmongas Restaurant & Grill
Marisco e grelhados são as especialidades. Não perca o camarão de Moçambique e os bem servidos pequenos-almoços. Preço médio: 15 euros com bebidas.
Tel.: 258 84 398 8364258 84 398 8364
www.pontainfo.com/restaurants

Florestinha do Índico Restaurant, Bar e Disco
Propriedade de moçambicanos, é um bom local para provar camarão e frango com piripiri. Funciona como bar e discoteca, um dos locais mais animados de Ponta do Ouro.
Tel.: 00258 84 303 929000258 84 303 9290

Fernando's Bar
É o bar mais famoso de Ponta do Ouro, graças ao seu cocktail de rum e framboesa. Construção em madeira junto ao mercado local onde toda a gente cumpre o ritual de provar a especialidade da casa.

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