Fugas - Viagens

Belém: Vamos comer o Pará

Por Alexandra Prado Coelho

Começámos com o açaí com peixe frito, tomámos o tacacá da dona Maria à hora do lanche, como convém, ficámos com a boca dormente do jambu, provámos maniçoba e, com o chef Thiago Castanho, descobrimos como essa despensa mágica que é o Pará mudou a forma como os brasileiros encaram a sua gastronomia.

Faltam ainda uns dez minutos para as cinco da tarde mas as cadeiras de plástico colocadas ao longo da parede na Avenida Nazaré, a principal de Belém, no estado brasileiro do Pará, já estão quase todas ocupadas. São sobretudo senhoras, por volta dos cinquenta, sessenta anos, que aguardam pacientemente, ao lado de uma banca de rua. Estamos no sítio certo, porque um cartaz confirma que é aqui o célebre Tacacá da Dona Maria.

À nossa frente, na avenida, decorre uma operação policial, com a polícia a fiscalizar todas as motos que passam, um espectáculo que mantém entretidos os clientes da dona Maria. Crianças saem do Colégio Nazaré, ali ao lado. Um miúdo faz uma birra porque quer um brinquedo que um vendedor ambulante expõe. A mãe tenta resistir à birra, diz que é muito caro, e, perante o choro que aumenta, resolve telefonar ao marido para perguntar o que fazer.

Nisto pára, ali mesmo no meio da confusão, uma carrinha. Do interior saltam várias pessoas que, atarefadíssimas, começam a tirar grandes panelas do interior. Cada um sabe exactamente qual a sua função. Uns começam a preparar a banca, estendem toalhas, abrem espaço, outros colocam as panelas e organizam as cuias, as pequenas cabaças escuras onde se serve o tacacá. Os clientes já se puseram de pé e fazem fila.

Tomar o tacacá como quem toma o chá das cinco é uma tradição no Pará, e o tacacá da dona Maria é uma instituição com mais de trinta anos de história, sempre aqui nesta grande avenida de Belém. Não é atracção turística, é de verdade mesmo. Depois de servidas, as pessoas voltam a sentar-se nas cadeiras brancas, sorvendo o caldo, feito de tucupi, um molho amarelo extraído da raiz da mandioca brava, cozido para eliminar o veneno e depois fermentado durante alguns dias, com jambu, uma erva que provoca uma ligeira sensação de anestesia na boca, goma de tapioca e camarões.

Primeira lição: açaí

Comer em Belém do Pará exige uma aprendizagem. Tudo começa com os nomes. Pacientemente, Cleber e Adriana, os nossos incansáveis guias nesta viagem, repetem vezes sem conta como se chama cada fruto, cada planta, cada parte da mandioca. Mas não há meio de decorarmos.

A nossa primeira lição, ainda antes do tacacá, é com algo que aparentemente — mas só aparentemente — nos é muito mais familiar: o açaí. Vamos então contar esta história de descoberta de sabores pela ordem em que a vivemos.

Acabámos de aterrar em Belém. É hora do almoço. Cleber espera-nos no aeroporto para nos levar até ao hotel e durante o caminho vai-nos explicando que aqui há a hora da chuva, e que esta pode acontecer de manhã ou à tarde, mas sempre mais ou menos a horas certas. Dura para aí uns vinte minutos, mas convém planearmos os nossos dias pensando nela: marcamos o encontro para antes ou depois da chuva?

Para já, não chove e vamos almoçar. Apanhamos Adriana no hotel e seguimos para o Lá Em Casa, restaurante que fica na Estação das Docas, antigo Porto de Belém, renovado em 2000. Pioneiro do trabalho que tem estado a ser feito em torno da gastronomia do Pará — e dos inúmeros produtos exóticos que fascinaram os mais famosos chefs brasileiros, a começar por Alex Atala, do DOM, em São Paulo, considerado o 6.º melhor restaurante do mundo e o 2.º melhor da América Latina na lista dos World’s 50 Best —, o Lá Em Casa é o sítio certo para ficarmos a conhecer os pratos mais emblemáticos da região.

É no buffet do Lá Em Casa, com vista para a baía do Guajará, sobre a qual começam já a adensar-se algumas nuvens, que começamos a descoberta da gastronomia paraense. Avançamos então para o pato no tucupi (o tal suco da mandioca brava usado no tacacá), que leva também jambu; o pirarucu, um dos peixes mais utilizados no Pará, que pode ser um animal enorme, atingindo os 80 quilos, e que é muitas vezes comido seco, à semelhança do bacalhau; e ainda a deliciosa maniçoba, um prato muito trabalhoso porque é feito com a folha da mandioca, que tem que ser moída e ferver durante quatro dias até se transformar numa pasta verde servida depois com carnes várias, secas, fumadas e enchidos, à semelhança da feijoada.

No final, quando provamos os doces, trazemos uma tigela de açaí, sem saber exactamente qual a melhor abordagem. À primeira colherada, o açaí mostra-se pouco amigável e Cleber e Adriana aconselham-nos a juntar açúcar. De facto, com açúcar o açaí muda completamente, e já o comemos bem, acompanhado por farinha-de-água, ou tapioca, leve e crocante. No entanto, não é assim que os paraenses fazem, como vamos aprender nessa noite.

Quando saímos do restaurante começa a chover, mas, ao contrário das promessas, não dura 20 minutos. Chove durante horas e abrir as janelas do quarto é um erro que se paga caro: o nível de humidade é tão alto que tudo fica imediatamente molhado. Mesmo assim, algumas horas mais tarde, arriscamos sair do hotel para ir jantar ao Point do Açaí, onde tudo é servido acompanhado por açaí na tigela. Nas mesas há logo uma tigela e dois tipos de farinha (a de água e a tapioca) para juntar ao açaí. Rendemo-nos à tradição e pedimos pirarucu frito.

Para quem vem de fora é uma estranha mistura de sabores — o açaí frio, ligeiramente amargo, a farinha crocante, o peixe, salgado e intenso. Começamos a perceber a ideia. Mas só no dia seguinte, no Mercado Ver-o-Peso, compreendemos a real dimensão que esta tradição ainda mantém aqui: logo de manhã, nas bancas de comida do mercado, começa-se a preparar o açaí, moendo os grãos, extraindo a polpa, enchendo grandes recipientes com o creme roxo escuro, e fritando o peixe. Em breve, os vendedores do mercado, que chegaram ali de madrugada, começam a aproximar-se para comer o seu açaí com peixe frito.

Só nessa noite é que, finalmente, encontramos Thiago Castanho, que, com o seu irmão, Felipe, é hoje o grande responsável pela redescoberta dos extraordinários produtos do Pará e por uma importante mudança na forma de os trabalhar – e que assinará também os menus dos voos da TAP de Belém para Lisboa, a inaugurar em Junho. Jantamos no seu Remanso do Bosque, o restaurante que abriu com Felipe, precisamente para fazer uma cozinha mais arriscada do que a do Remanso do Peixe, o primeiro restaurante da família Castanho, fundado pelo pai.

As pesquisas de Thiago

“O primeiro chef a trabalhar com ingredientes daqui e a ter orgulho nisso foi o Paulo Martins do Lá Em Casa”, recorda Thiago, voz calma, sorriso doce, olhos enormes. “Durante muito tempo, no Brasil, a alta gastronomia restringia-se a fazer ode a coisas de fora, à cozinha francesa. A gente saía para restaurantes e não imaginava comer um menu todo com produtos da terra. Isso, na cabeça dos clientes, não era o luxo que eles procuravam.”

Quando ele começou deparou-se com esse preconceito. “Logo no início do nosso trabalho, a gente fez um jantar numa importadora de vinhos e um dos clientes, quando fez a reserva, pediu o cardápio. Quando leu, cancelou a reserva, dizendo ‘tapioca, eu como na feira’. O cara não imagina que a gente trabalha a tapioca de outras formas, por isso na cabeça dele não tem valor. Isso hoje já mudou muito. Pelo facto de muita gente estar usando ingredientes de uma boa forma, e fora do Pará, o próprio Pará começou a entender que temos coisas a que devemos dar muito valor.”

Thiago e Felipe fazem esse trabalho desde o início. “O nosso trabalho tem vários momentos. Há um momento em que a gente pesquisa e lê muito. Tem a parte de pesquisa de campo quando a gente vai numa comunidade para ver como se consome”, conta. “Eu sou muito novo, tenho uma vivência diferente do meu pai, que viveu o interior, pescou. Eu nunca precisei de pescar na minha infância para me sustentar. Estou cada vez mais querendo viver isso para entender. Isso influencia a criação de um prato.”

Quando diz que o pai “viveu o interior”, Thiago quer dizer que ele conhece bem as gentes ribeirinhas, que vivem para o interior do Pará. É para aí que ele viaja agora, à procura de novos ingredientes, de técnicas, de histórias — porque, diz, tudo isto não faz sentido sem as histórias das pessoas. “Muitas vezes, o que a gente coloca num menu de degustação não é mais do que um prato tradicional do interior do Pará, um modo de fazer local de algum lugar.”

É assim, por exemplo, com o beiju de tapioca na folha de bananeira, que abre o menu de degustação no Remanso do Bosque. Inspirado nos beijus, os pequenos bolinhos de fécula de mandioca que as mulheres ribeirinhas fazem, Thiago juntou-lhe apenas o queijo. Usa-os também noutra versão para o beiju cica com coalhada de leite de búfala (o Marajó, arquipélago junto a Belém, é conhecido pelos seus queijos de búfala). Pelo meio apresenta uma brincadeira, a tacacachaça, uma espécie de tacacá mas feito com cachaça de jambu.

Todo o menu é baseado nestes produtos da terra que dantes tanto assustavam a fina-flor de Belém: há um magnífico creme de pupunha (fruto de palmeira-pupunha) com pele de arroz e manteiga de castanha; há sururu (um bivalve) de São Caetano com farofa de suruí; pirarucu defumado com nhoque de banana da terra e farofa de castanha; filhote (outro peixe muito popular na Amazónia, de carne branca, firme e saborosa) assado na brasa com leite de coco, camarão seco, abóbora e dendê; mel de abelha nativa uruçu com farinha e limão; arroz de pato com tucupi e jambu; e, como sobremesa, bacuri (deliciosa fruta amazónica de polpa branca), sagu de café e toffee de cumaru; e por fim, num vaso de plantas e com uma pequena pá, a jardinagem de chocolate e cupuaçu da ilha do Combu.

“No prato do pirarucu, por exemplo, peguei nos mesmos ingredientes de um prato tradicional que é o pirarucu de casaca, o peixe com banana e farofa, e criei o mesmo sabor mas de outra forma”, explica Thiago. “O filhote assado na brasa, que vem na folha de bananeira, é quase um moquém [moquear é a técnica usada pelos indígenas para tratar o peixe], se eu deixasse mais tempo para secar, virava um peixe moqueado.”

Cada viagem para o interior do Pará é uma nova descoberta para Thiago. “A gente está só no início”, conta, explicando que só começou a olhar para os ingredientes de outra forma, no início da sua carreira, depois de ter passado seis meses em Portugal a estagiar com Vítor Sobral. “Vi o que ele fazia com os ingredientes da terra e o que eu podia fazer com técnicas aqui. Quando fui, olhava para os ingredientes como qualquer paraense, mas quando voltei já olhava com mais liberdade, mais livre daquela prisão cultural da tradição.”

Bendita mandioca

Estes mundos da Amazónia e do Pará vão chegando cada vez mais longe — em grande parte porque Thiago e Felipe os têm divulgado, em parte porque outros chefs, como Alex Atala ou Ana Luísa Trajano, começaram a levá-los também para São Paulo e outros pontos do Brasil e do mundo.

Mas aqui em Belém, e sobretudo depois da morte, em 2010, do pioneiro Paulo Martins, fundador do Lá Em Casa (que hoje tem à frente a sua mulher e filhas), são os irmãos Castanho os grandes embaixadores da gastronomia paraense. Foi por isso que na manhã do dia em que jantámos no Remanso, Thiago esteve no Mercado Ver-o-Peixe a gravar uma peça para a televisão local. E foi por isso que, apesar do cansaço, aceitou fazer outra madrugada e no dia seguinte (ou seja, dali a algumas horas) encontrar-se connosco novamente no mercado para gravar um vídeo explicando tudo o que se pode fazer com a mandioca. Encontro marcado, vamos dormir.

No dia seguinte, quando chegamos, o mercado já está em actividade há várias horas. Marcámos encontro ao pé da zona da mandioca e Thiago senta-se entre os homens que, com facalhões assustadores e gestos certeiros, descascam as mandiocas, sentados em bancos baixinhos, enquanto as cascas se amontoam à volta. Ao lado estão as bancas que vendem os produtos retirados da mandioca.

Numa banca de maniva (a tal pasta verde feita da folha da mandioca, em versão “pré-cozida” ou “cozida 7 dias”), uma mulher tritura as folhas verdes numa máquina onde se lê “Deus dê forças aos meus inimigos para que assistam de pé à minha vitória”. Outra distribui por sacos de plástico a pasta destinada a fazer a maniçoba. Outros vendem tucupi em garrafas, jambu cozido, macaxeira (inhame) ralada e coco ralado.

A pouco e pouco, alguns nomes vão-se tornando mais familiares. Mas quando, depois de uma lição sobre o aproveitamento total da mandioca, herança dos indígenas, descemos a outra zona do mercado, estamos perdidos de novo. “Este é que é o cupuaçu?”. “Como se usa o jenipapo?”, “Não tinha percebido que a pupunha era assim.” Abrimos a boca de espanto perante uma jaca com mais de dez quilos que um vendedor simpaticamente segura no ar para podermos fotografar e diligentemente tomamos nota de todos os nomes que nos dizem, do tucumã ao biribá, do taperebá ao piquiá (mais tarde, Cleber há-de enviar-nos por email uma longa lista com todos os nomes, fotos e descrições de cada fruta que vimos).

Há imagens da Virgem da Nazaré, enfeites coloridos de Natal e televisões com apresentadores eufóricos e acompanhantes meio despidas. Homens cortam castanhas de caju em bancadas de madeira que, de tantos anos de uso, ganharam já as marcas profundas de cada golpe que receberam, outros abrem cocos, um velhote mói cominhos, os cheiros misturam-se no ar, e ainda nem chegámos à zona das ervas que curam tudo e tudo prometem. Frascos pendurados em molhos anunciam óleo de linhaça e arnica, ao lado de outros identificados como cicuta.

É aí que encontramos Beth Cheirosa, verdadeira instituição local — nem vale a pena perguntar-lhe como tudo começou, porque ela desaparece no meio das fotos tiradas ao lado de celebridades várias e vai logo buscar uma folha A4 com o seu currículo. Aí lê-se que tem 48 anos de Ver-o-Peso, mas a sua fama ultrapassa fronteiras, e que dá até palestras em escolas e universidades, transmitindo o conhecimento dos poderes das ervas amazónicas que recebeu da avó, a Mãe Velha, e da mãe, já conhecida como dona Cheirosa.

Com Thiago, Cleber e Adriana andamos pela zona das farinhas para nos mostrarem como a mandioca se transforma em tanta farinha que serve para tanta coisa diferente, da goma usada no tacacá às farinhas que se juntam ao açaí. Mas é a tapioca com coco do senhor Davi — e a boa disposição deste homem de 73 anos, 47 de Ver-o-Peso, que garante que não sabe fazer mais nada do que vender farinha, mas que sobre farinha sabe tudo — que mais nos encanta. Thiago já o tinha dito: “Não são os ingredientes, são as pessoas, e as histórias das pessoas, que nos transformam, que nos fazem crescer.” E no Pará, a aventura está apenas a começar.

Próxima paragem? Ilha do Combu, em busca do cacau orgânico da dona Nena, aquele que Thiago usa nas suas sobremesas. 

O cacau da dona Nena faz-se no quintal

Dona Prazeres é baixinha, magrinha e um poço de simpatia. Não tínhamos ido até à ilha de Combu por causa dela, mas foi ela a primeira pessoa que encontrámos. Recebeu-nos no seu restaurante sobre estacas, o Saldosa Maloca, com o rio a passar ali ao lado, e ofereceu-nos um sumo misterioso, deixando-nos a adivinhar de que seria. Nem os nossos guias, Adriana e Cleber, vindos do outro lado do rio, de Belém, no barquinho que não demora nem 15 minutos a chegar aqui, conseguiram adivinhar. “Vocês lá em Belém não sabem o que tem aqui”, riu-se dona Prazeres.

Trouxe inhame frito e pirarucu para petiscarmos, depois encheu-nos de repelente e convidou-nos a passear por entre as árvores enormes que rodeiam o restaurante. “Esta é uma samaomeira, os índios chamam-lhe a árvore-mãe”, diz, indicando uma árvore gigante. “Batiam na raiz para entrar em contacto com as outras tribos.” Mostra-nos o buriti ou miriti, usado para fazer os bonecos levíssimos do artesanato local, a andirobeira, cujo óleo é usado como anti-inflamatório, a seringueira, de onde é tirada a borracha que no passado foi a riqueza do Pará, o jenipapo do qual os índios extraem uma tinta que usam para pintar o corpo.

Prazeres cresceu aqui no meio destas árvores e sabe tudo sobre elas. Passou a infância no Combu, quando vivia na ilha tão pouca gente que “quando se ouvia o ruído de um barco sabia-se logo quem era”. Dava para ouvir o estalar do ouriço da seringueira, que assim, quebrando-se ao sol, espalha as suas sementes. Mas a ilha cresceu e hoje vivem no Combu, nas casas sobre estacas a que só se chega de barco, mais de 1800 pessoas.

A samaomeira que nos faz sentir anões está comprometida por causa da erosão provocada pelo rio — o próprio restaurante, construído em 1982, ficava nessa altura dentro da floresta e hoje está dentro do rio. Dona Prazeres tira um fruto do cacau, bate com ele na árvore e mostra o interior, uma espécie de dentes brancos, os grãos cobertos por uma polpa fina. É delicioso. E é, afinal, daí que é retirado o sumo que nos ofereceu à chegada: suco de cacau.

Lembra-se de quando era pequena ir de barco com o irmão ao longo da ilha para recolher o cacau que os pais, que iam pela floresta, apanhavam. Tudo começou com o avô, que veio de Portugal para Belém, voltou para “ir buscar a avó à Granja” e instalou-se definitivamente aqui abrindo uma fábrica de gelo. Mais tarde comprou uma ilha e dedicou-se ao cacau.

Foi o cacau que nos trouxe até aqui. Não o suco, que nem sabíamos que existia, mas o chocolate orgânico (na verdade 100% cacau) da dona Nena, tia de Prazeres, e a mulher que recuperou o trabalho do cacau que a família praticamente abandonara. Para chegarmos a casa desta mulher de cabelos negros e rosto simpático temos que ir de barco. Fica a menos de cinco minutos da Saldosa Maloca.

Cacau na folha

A casa de dona Nena é também a sua “fábrica” de cacau orgânico. “A nossa família sempre produziu cacau, mas só para os amigos que nos vinham visitar. Tem um padrão de fermentação e de secagem que é bem da família, tudo muito rústico.” Mas dona Nena estava com problemas em trabalhar o chocolate e resolveu pedir a opinião de um chef que conhecia a Prazeres do Saldosa Maloca: Thiago Castanho. “Ele veio cá e disse ‘por favor, não muda o seu chocolate’”.

Hoje o cacau orgânico do Combu, que dona Nena vende na feira orgânica em Belém, faz parte das sobremesas do Remanso do Bosque, o restaurante dos irmãos Castanho, e vai ganhando fama. Ela mostra-nos como o faz. Mais simples não podia ser. Os cacaueiros ficam por detrás da casa. É só apanhar os frutos, tirar os grãos, deixá-los fermentar, secá-los (há alguns a secar no interior da casa), torrá-los e, por fim, moê-los. A máquina é básica, dona Nena vai buscá-la para a afixar à mesa e mostrar-nos como mói o cacau, enquanto discute com um vizinho a melhor forma de adaptar a máquina para a tornar mais eficaz.

Já chove sobre o pátio palafita da casa de dona Nena. Chove sobre o rio de água castanha. A floresta parece ainda mais verde, o cão corre de um lado para o outro, agitado com a chuva. Continua a fazer calor. Dona Nena, de calções brancos, camisola vermelha, cabelo muito negro, vai moendo devagar os grãos de cacau. Do outro lado sai uma pasta castanha escura, brilhante. Ela junta uma quantidade e embrulha numa folha de bananeira. É assim que vende o seu cacau na feira. O cão sossega. A chuva já vai parar.

A Paris na selva (e outras maravilhas de Belém)

Era o tempo em que os habitantes de Belém se cumprimentavam com um Vive la France!. No final do século XIX, início do XX, a cidade brasileira no meio da Amazónia vivia a euforia do Ciclo da Borracha, a Belle Époque, o seu porto explodia de actividade, e os seus políticos sonhavam transformá-la na Petit Paris – ou, como era chamada, a Paris n’América.

Enquanto muito do Brasil ainda vivia na pobreza e no atraso, Belém (tal como a sua eterna rival, Manaus) resplandecia, com a chamada “estética higienizadora”. Não só já tinha luz eléctrica, água canalizada e esgotos, como tinha carros eléctricos e avenidas largas, e um magnífico teatro, o Theatro da Paz, frequentado pela elite fascinada por Paris.

Por detrás desta profunda transformação sofrida por Belém estava o intendente António Lemos (que governou a cidade entre 1897 e 1911), uma figura visionária e que ainda hoje marca a história da cidade. Nas novas avenidas e boulevards, Lemos mandou plantar centenas de mangueiras, que levaram os paraenses a brincar, dizendo que era preciso usar chapéus-de-chuva para se protegerem não da chuva que cai todos os dias à mesma hora, mas das mangas que caíam das árvores.

Apesar da riqueza da borracha se ter desvanecido, é possível encontrar ainda hoje em Belém muita da herança dessa “Paris na selva”. Um dos locais a não perder é o Museu Paraense Emílio Goeldi.

Museu Paraense Emílio Goeldi – Aos fins-de-semana, as famílias brasileiras (as meninas com os melhores vestidos e os cabelos cheios de trancinhas elaboradas, os rapazes a amachucarem a roupa de domingo) fazem fila para vir ao museu ver a preguiça pendurada na árvore, os macacos, as araras, o mutum, a cutia, o tucano, a ariranha e muitos outros animais e plantas exóticas (entre as quais o lago das magníficas vitórias-régias). O Museu Goeldi, fundado no final do século XIX, na altura das expedições naturalistas, é a mais importante instituição de pesquisa científica sobre a Amazónia brasileira.

Mangal das Garças – Outro passeio imperdível para quem visita Belém, o Mangal das Garças, na margem do rio Guamá, foi inaugurado em 2005. Inclui um borboletário, um orquidário, um viveiro de pássaros (os guarás, com o seu cor-de-laranja vivo, são lindos), um viveiro de plantas, um Museu da Navegação e uma torre-mirante de onde se pode ver a cidade de Belém e a paisagem nas margens do rio.

Basílica da Nazaré – Erguida em 1852, no lugar onde o caboclo Plácido encontrou uma imagem da Nossa Senhora, alberga essa imagem, que sai em procissão durante o Círio da Nazaré, a mais importante festa religiosa da cidade, em Outubro. Mas em qualquer domingo normal a missa na Basílica está cheia de devotos paraenses, num ambiente alegre.

Theatro da Paz – Construído com o dinheiro da borracha, e inaugurado em 1878, o edifício neoclássico é o maior símbolo da Paris n’América do final do século XIX, e competiu sempre com a Ópera de Manaus, recebendo na época as mais famosas companhias líricas do mundo. Hoje continua a ter uma programação musical, incluindo um festival de ópera, e a poder ser visitado.

Complexo Feliz Lusitânia – Foi este o nome que os colonizadores portugueses deram ao núcleo inicial da cidade de Belém. É aí que fica o Forte do Presépio, construído em 1616, o Palacete das Onze Janelas, de Domingos da Costa Bacelar, dono de um engenho de açúcar, o Museu de Arte Sacra instalado no convento dos jesuítas e a Catedral da Sé. Do muro do Forte pode ver-se a feira do açaí, onde todas as madrugadas o açaí vindo das zonas ribeirinhas do interior é descarregado.


GUIA

Como ir
A partir de 3 de Junho a TAP voa para a Amazónia, realizando três voos semanais (às terças, sextas e domingos). O voo para Manaus terá a duração de 9h10, a que se somam 3h para Belém do Pará: sai às 9h30 de Lisboa, chega às 13h40 a Manaus, de onde sairá às 14h40 para aterrar às 17h40 em Belém. Com destino a Portugal: sai às 19h10 de Belém e chega às 6h45 a Lisboa (7h20 de voo).

Quando ir
No Pará há duas estações: a da seca, de Abril a Outubro (em que chove menos), e a chuvosa, de Novembro a Março. Em Belém, chove todos os dias uns 20 minutos, geralmente a meio da tarde, mas o clima é quente e húmido. Os paraenses aconselham a visita na altura da festa do Círio de Nazaré, que começa no segundo sábado de Outubro, e dura 15 dias. Atenção: a vacina contra a febre-amarela (que é válida por dez anos) é obrigatória para esta região.

Onde ficar
Em Belém, uma boa opção, com óptima localização, é o Hotel Hilton, que fica no centro da cidade, na Avenida Presidente Vargas, em frente da Praça da República e do Theatro da Paz. Preço da diária: a partir dos 80 euros.

Onde comer
O melhor restaurante da cidade é o Remanso do Bosque (Travessa Perebebuí, em frente ao Bosque Rodrigues Alves), dos irmãos Felipe e Thiago Castanho (pode também ir conhecer a outra casa da família Castanho, o Remanso do Peixe, na Travessa Barão do Triunfo). Para o tradicional açaí com peixe feito, o Point Açaí (Rua Veiga Cabral, 450) é o sítio certo. Para uma visão geral da cozinha paraense, o ideal é começar pelo buffet do Lá Em Casa, (na Estação das Docas) e noutro dia ir conhecer o do Manjar das Garças (no Mangal das Garças).

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A Fugas esteve em Belém a convite da Paratur

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