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Recife, onde o sertão se cruza com o mar e o mundo

Por Manuel Carvalho

A mais próspera cidade do nordeste brasileiro curou muitas das suas feridas do passado e apresenta-se hoje como uma cidade que vale a pena conhecer. Ali se confrontam o sertão com o mundo urbano, o passado de Olinda com a modernidade de Boa Viagem, os sabores negros e indígenas com o tempero português. Para quem gosta de cidades diferentes.

O escritor norte-americano John Steinbeck escreveu que todas as cidades são iguais, até na mania que têm de se julgarem diferentes. Recife, capital do Pernambuco, cidade símbolo do ciclo do açúcar do Brasil colonial, não se julga apenas diferente: considera-se acima de tudo superior.

Foi nas colinas de Olinda, que hoje é um apêndice urbano da cidade, que se fizeram as primeiras grandes igrejas, foi lá que se escreveu o primeiro livro do Brasil, que se fundou a primeira sinagoga das Américas, foi daí que partiram os judeus expulsos pela Inquisição para fundar numa ilha algures no Norte (Manhattan) o embrião do que viria a ser Nova Iorque, foi nas casas grandes e nas senzalas dos engenhos da sua periferia que se construiu o alicerce económico do país, foi a cidade que os holandeses cobiçaram em primeiro lugar quando decidiram desarticular o domínio português no hemisfério sul, foi aí que viveu Clarisse Lispector, que Gilberto Freire ou Joaquim Nabuco construíram as suas obras geniais, é aí que se encontra a maior avenida do Brasil. Com tantos pergaminhos na cartola, não faz sentido a reclamação de uma certa superioridade?

Pode ser que sim, mas quando se discute o sentimento de superioridade bairrista dos habitantes de Recife tem de se perceber que em causa não está uma atitude sectária ou arrogante. Sempre que eles dizem que a sua cidade é o paraíso, fazem-no com um sorriso malandro, que denuncia ironia e anula toda e qualquer suspeita de presunção. Seja a guia turística, o homem do café ou o jovem técnico da Porto Digital, uma fantástica rede de empresas da nova economia instalada no centro ainda há bem poucos anos degradado de Recife, todos dizem sempre as mesmas coisas para glorificar a cidade sem deixarem de a ver como ela é: desigual, bela, hesitante, fragmentada, ainda perigosa, síntese de hábitos e ritmos urbanos com as inspirações rurais que lhe chegam do sertão. Uma cidade cheia de luz mas ainda assim algo misteriosa, que se estende desde a Olinda colonial ao luxuoso bairro da Boa Viagem, deixando no meio a cidade antiga em luta pela recuperação da sua aura dourada.

O mar é o elo de ligação de todos estes fragmentos que, de alguma forma, contam a história de um aglomerado humano que começou no século XVI na colina de Olinda, desceu à zona portuária do actual bairro do Recife um século depois e, já mais recentemente, se prolongou pela praia da Boa Viagem. Um mar com as cores dos trópicos, rasgado na perpendicular à costa por recifes — Pernambuco vem da palavra tupi “parnampuka”, que significa “o mar que bate nas rochas”.

A alguns quilómetros de distância, em Porto de Galinhas, formam uma admirável barreira natural cheia de vida, mas nas praias urbanas os recifes têm uma outra função: a de defender os veraneantes dos ataques dos tubarões. Na maré vaza da praia da Boa Viagem formam-se deliciosas piscinas que convidam ao mergulho e aí sim, é seguro estar na água; nos outros momentos há que procurar destinos mais remotos no estado de Pernambuco para viver as delícias do sol e do mar dos trópicos. As políticas do Turismo do Estado incentivam essa diversificação.

Recuperada e brilhante

Passar pelo Recife e por Olinda é por isso uma experiência que recomenda outras virtudes além da praia. As da cultura, a da vida urbana, da história, das tradições, da gastronomia. Em Olinda, desde que haja fôlego para vencer os declives acentuados das suas ladeiras, a experiência é única.

No Recife, uma cidade luminosa, onde os rios Beberibe e Capibaribe “se juntam para formar o Oceano Atlântico” — esta é mais uma das máximas que denunciam o fervor dos recifenses pela sua cidade. Ou, fazendo da cidade um ponto de partida, Caruaru, já na zona do Agreste, para não falar de uma viagem mais longa (uns 300 quilómetros) para se chegar a essa zona das “solidões vastas e assustadoras” que é o sertão do Brasil. O lugar de onde emergiu uma cultura popular antiga, feita de cruzamentos entre elementos coloniais, negros e índios, que resultou no maracatu ou no forró que Luís Gonzaga transformaria num modo de expressão da identidade nordestina.

Como Ouro Preto, em Minas Gerais, Olinda, a pequena cidade na colina, com as suas 21 igrejas e um casario barroco envolvido pela vegetação dos trópicos onde se destacam os coqueiros, é uma entidade quase irreal. A prova cristalizada de um passado glorioso, quando a capitania do Pernambuco foi a capital mundial da produção de açúcar, quando os senhores dos engenhos instalados no interior ali construíam as suas mansões e financiavam as igrejas.

Como a do mosteiro de São Bento, que sendo de traça barroca (a fachada é de 1761), não deixa de apresentar originalidades muito especiais. À falta de granito, a construção foi feita com blocos de rocha dos recifes — as conchas abundam na sua superfície. Na ausência de castanheiros ou de carvalhos, as imponentes obras de carpintaria foram feitas com jacarandá.

Investir um dia em Olinda não pode, por isso, passar sem uma revisitação da história. De Pernambuco, do Brasil, mas também de Portugal. Foi naquela cidade que se reflectiu a síntese da Casa Grande e da Senzala dos engenhos de açúcar, o processo que, segundo o grande autor Gilberto Freire (ele próprio um pernambucano) impulsionou o luso-tropicalismo e a miscigenação que forneceria abundância de almas para colonizar o país-continente.

A conquista holandesa do Nordeste brasileiro, em 1630, remeteria Olinda para um esquecimento forçado. A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais preferiu instalar o seu quartel abaixo de Olinda, na zona da foz do Capibaribe, e quando os colonos portugueses expulsam os invasores, em 1654, Olinda é uma cidade devastada e empobrecida.

Em 1689, Varela Barredo escreveria que Olinda “ficou arruinada de todo”, na qual não havia mais do que “umas memórias dos arruinados edifícios que ainda hoje estão mostrando o que foram”. Com os senhores dos engenhos a rumarem para as suas Casas Grandes nas zonas do Agreste ou do Sertão, Olinda tornou-se um refúgio para os brancos pobres, para os “pardos” ou para os escravos libertos. Foram eles (e a sua pobreza) que lhes conservaram as casas e cuidaram das igrejas. São eles os responsáveis pelo facto de essa jóia da arquitectura colonial portuguesa ser considerada Património Mundial da UNESCO.

Hoje, Olinda está recuperada e brilhante. Uma casa razoável na sua zona histórica chega a custar 600 mil euros. Um roteiro que comece no mosteiro de São Bento, suba ao convento de São Francisco, passe pela catedral, espreite a loja do frevo que lhe fica no bordo, observe a belíssima linha da costa até à Boa Viagem no miradouro em frente, desça a íngreme Ladeira da Misericórdia e passe um resto de tarde nos bares do casario histórico, é obrigatório. Rezam as crónicas que Duarte Coelho, primeiro capitão donatário de Pernambuco e fundador de Olinda, na primeira metade do século XVI, terá subido os seus morros, avistado a paisagem e dito: “Ó linda vista para se fazer uma cidade”. É lenda, mas se tiver um fundo de verdade não espanta ninguém.

Recife cosmopolita

Mais jovem, logo mais irreverente, Recife é feita de outro extracto. Como cidade que nasceu em torno de um porto de onde saíam o açúcar e o pau-brasil e entravam europeus, roupas, vinho e ideias, a sua feição cosmopolita é inegável. Nos bares, nos restaurantes, nas ruas, na música, onde o mangue beat articula a cultura popular (o forró e outros ritmos sertanejos) simbolizada pelos mangues, onde vivem os pobres, com o hard rock. Onde o artesanato ou a lírica popular testemunham uma evidente devoção ao banditismo social do interior do estado protagonizado por heróis populares e românticos como Lampião e Maria Bonita — o “banditismo por uma questão de classe”, que Chico Science, a grande figura do mangue beat, cantava.

O melhor método para se divagar pela cidade é começar no Marco Zero, de onde todas as distâncias de Pernambuco são calculadas, onde o Carnaval se estreia, onde a cosmovisão dos recifenses tem a sua origem. A partir dessa grande bola inscrita no chão, como um alvo, a cidade antiga, está-se ao alcance dos bairros centrais do Recife, São José, Santo António e Boa Vista. Nas imediações, enquanto o Cais do Sertão não abrir (talvez lá para o final de 2014 esteja completo), pode-se voltar as costas à urbe, olhar o mar e ver sobre o recife em frente a série de esculturas de Francisco Brennand a celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Há quem goste.

Nos dias que correm, caminhar livremente pelo coração do Recife não é a aventura de há 20 anos. As ruas da cidade velha acusam ainda anos de incúria e de esquecimento, mas estão hoje mais limpas, e a exposição crua da pobreza e marginalidade urbana deixou de se sentir. Há anos que as taxas de violência regridem no Recife e o que outrora foi uma das cidades mais perigosas do Brasil apresenta hoje índices mais baixos em crimes como roubo ou homicídio. Mas estamos a falar em valores médios do Brasil. O que quer dizer que, se hoje é possível cruzar o centro do Recife, durante o dia, com uma confortável margem de conforto e segurança, isso não quer dizer que se recomende a despreocupação.

No bairro do Recife, a curta distância do Marco Zero, é incontornável o cruzamento da pequena rua do Bom Jesus. Pela feição arquitectónica, sem dúvida, mas mais pelos vestígios que aí se encontram da sinagoga de Kahel Zur Israel, fundada em 1642, época da colonização holandesa, e logo arrasada pela intolerância religiosa dos colonos portugueses. Na ausência de um museu de cera, procure-se a Embaixada dos Bonecos Gigantes, uma galeria de gigantones da tradição dos grupos Zé Pereira, que são um dos ícones do Carnaval de Olinda. Encontrará ali em tamanho XXL o Papa Francisco, Che Guevara, Dilma Rousseff, Rita Lee ou Neymar. E sim, claro que Lampião, o famoso bandido do cangaço do princípio do século, também tem lá a sua figura.

Do bairro do Recife para os vizinhos a caminhada faz-se por pontes. Recife orgulha-se de ter a mais antiga ponte das Américas (e não, não é mais uma exibição de excesso de amor próprio), o que é fácil de perceber. O grande centro do Recife são afinal três ilhas ligadas por 39 pontes. Nos bairros de São José, Santo António e Boa Vista pode-se encontrar nas igrejas ou no que resta do casario setecentista a expressão do tempo em que Olinda é esquecida e os senhores da cidade se instalam mais abaixo. Não se espere ver aqui a grandiosidade da arte sacra da velha cidade vizinha. O que aqui vale a pena procurar é o torvelinho (o “vucuvucu”) das ruas populares, como o da Rua Direita nas horas de ponta. Ou o colorido do mercado de São José, onde se compra carne ou tambores, pássaros vivos ou sementes e frutas caleidoscópicas.

É bom caminhar pelo centro do Recife e ainda mais nas margens dos seus rios, onde a brisa permanente do mar tempera o calor húmido. Como compete a uma cidade brasileira, os vendedores de água de coco abundam. E dificilmente haverá algo mais animador para se andar do que uma água de coco gelada. Entre lojas que variam do padrão chinês à singularidade do artesanato ou da indústria nordestinas, vão-se encontrando pequenas jóias da arquitectura ou da cultura local. Uma visita ao Real Gabinete Português de Leitura, um edifício do princípio do século XX onde estão catalogados 80 mil volumes, alguns dos quais remontam aos séculos XVII e XVIII, é obrigatória. Vale a pena passar pela zona do Palácio do Governo, no Campo das Princesas e reparar no magnífico baobá — uma árvore africana rara — que se encontra ao lado.

Saindo do centro, entra-se na esfera das zonas residenciais indiferenciadas. Na Boa Viagem, o mar azul-turquesa dos dias mais límpidos acompanha-se ao longo de uma calçada de quilómetros, onde há sombras de coqueiros e o conforto de esplanadas. No morro da Conceição, um bairro popular, há uma ampla vista sobre a cidade. Na zona do Pina háshoppings modernos. Na Brasília Teimosa (uma favela contemporânea da fundação de Brasília, em 1960, que “teimou” em resistir a todas as ordens de demolição das autoridades) há uma belíssima praia popular, que aos fins-de-semana se enche de moradores do bairro ou da vizinha zona do Pina. Uma bebida refrescante no primeiro andar do célebre bar Biruta permite-nos perceber a relação descontraída, natural, que os recifenses têm com a areia e o mar.

Conhecer Recife e Olinda é por isso uma oportunidade de conhecer uma fatia diferente e muito especial do Brasil. Com 1,5 milhões de habitantes, Recife, a mais rica cidade do Norte e do Nordeste do Brasil, é um mosaico de experiências capaz de satisfazer os interesses dos que gostam de história, de vida urbana, de arte ou de culturas vincadas como a que cruza o Sertão com o mundo moderno. Como todas as cidades brasileiras, não é capaz de se catalogar sob a égide de um denominador comum. Recife não é parecida com Natal nem com Belém nem com Salvador nem com o Rio — e ainda menos com São Paulo. É uma cidade com os seus pergaminhos, virtudes e defeitos.

Ouvir os seus habitantes dizer que a sua cidade é a Veneza da América, o lugar onde se fez a primeira ponte do continente ou onde os franciscanos se instalaram pela primeira vez não deve ser, por isso, visto como presunção. É apenas um instrumento para afirmarem que gostam de si próprios, do maracatu e do mangue beat, dos canais e do Campo das Princesas, da Rua da Aurora e do Pina, dos ensinamentos do banditismo social e do frevo, do Carnaval que deu origem ao Galo da Madrugada, um bloco que reúne mais de 1,5 milhões de pessoas, do tradicional Luís Gonzaga, do ousado Chico Science ou do moderno Lenine, do humanista Joaquim Nabuco ou do tolerante Gilberto Freire. Eles divertem-se a apregoar a excelência da sua cidade e quem for capaz de a entender e apreciar pode até pensar que eles poderiam usar um tom mais sério na sua apologia.

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GUIA

Como ir
A TAP voa seis vezes por semana para Recife a partir de Lisboa. Os voos saem a meio da tarde, chegam à hora de um jantar tardio e, no regresso, partem à noite e terminam em Lisboa a tempo do pequeno-almoço. Juntamente com a Air Condor, a TAP é a única companhia aérea a fazer ligações directas com a Europa. Na época alta há vários programas na região de Recife, com destaque para Porto de Galinhas.

Onde ficar
A zona onde se encontram os hotéis mais recomendáveis é na zona da Boa Viagem. A desvalorização do real no último ano tornou os preços mais comportáveis — espere pagar uma média de 80/100 euros por noite, em quarto duplo. Na marginal ou nas perpendiculares há um conjunto de serviços capazes de acudir todas as necessidades. E uma viagem de táxi até ao centro raramente custa mais do que 8/10 euros. Olinda fica mais longe, no outro extremo do Recife, e uma corrida pode custar 25/30 euros.

O que fazer
Subir e descer as ladeiras de Olinda é obrigatório. Visitar as suas igrejas e perceber como funciona a arquitectura barroca num contexto tropical também. Percorrer os bairros centrais, com tempo e descontracção, é obrigatório. Cruzar a Rua Direita e apreciar a animação popular é recomendável. E, ao final da tarde, há que aproveitar o extenso passeio à beira-mar na zona da Boa Viagem. Vale a pena fazer um cruzeiro pelas pontes da cidade. A Catamaran Tours, na ilha do bairro de Santo António, cobra 38 reais por viagem (uns 10 euros).

Onde comer
A gastronomia pernambucana, que cruza sabores portugueses, negros e indígenas, é deliciosa e no Recife há mil e uma maneiras de o provar. Carne de sol, macaxeira, queijo coalho, o sarapatel, a cartola, o bolo de rolo, são alguns dos exemplos que exigem perseverança na prova. Restaurantes para o fazer não faltam. O Entre Amigos, que tem dois espaços, um na Boa Viagem, outro no Espinheiro, na zona Oeste, é um bom lugar para se provar bode (cabrito). O Leite, no centro histórico, é um clássico de gastronomia portuguesa e vale também a pena pela patine que o tempo e a história lhe deixaram. No Rio Mar Shopping há um restaurante do chef português Rui Paula que cruza as suas criações com as influências locais. O Bargaço, na Boa Viagem, tem uma soberba moqueca de peixe. Se preferir opções mais populares, tente o Bragantino, no Mercado da Encruzilhada, ou o obrigatório Biruta, na Brasília Teimosa, mesmo em frente ao mar. Em Olinda, vale a pena o conceituado Beijupirá (reserve com antecedência), o Oficina do Sabor ou o Maison Bonfim. Nos restaurantes de topo prepare-se para pagar uma média de 100 reais por pessoa (cerca de 30 euros), pelo menos.

O que comprar
Artesanato e têxteis. Há peças para todos os gostos e para todos os preços. Os artigos mais baratos, desde artefactos de barro a toalhas bordadas, encontram-se no Centro Cultural, uma cadeia recuperada que se situa no centro. Há um centro de artesanato mesmo ao lado do Marco Zero, com obras de qualidade superior. E de preços também.

O que ler
Os Sertões, de Euclides da Cunha, mesmo descrevendo um combate no interior da Bahia, é um livro obrigatório para se aceder à mentalidade dos sertanejos que tanto influencia o Recife. Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, apesar de questionado nas suas teses sobre a bondade do luso-tropicalismo, continua a ser uma obra essencial para se perceber como é que “um povaréu” de um milhão de pessoas, os portugueses, puderam criar uma unidade cultural e politica da dimensão do Brasil. Além das suas teses, esta obra é de leitura deliciosa. Mais recentemente, a jovem historiadora recifense Kalina Vanderlei Silva publicou Nas solidões vastas e assustadoras que descreve a conquista do sertão a partir de Olinda e do Recife

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