Fugas - Viagens

A floresta de Sandokan é do tempo dos dinossauros

Por Ireneu Teixeira (texto e fotos)

Cinco vezes maior do que a ilha da Madeira, incrustado no coração da península malaia, subsiste o pulmão verde tropical mais antigo do planeta. Com 130 milhões de anos e tendo passado incólume às várias idades do gelo e caprichos da natureza, Taman Negara corporiza a magia e atracção pela selva impenetrável, abrigando uma babilónia de fauna e flora. Os orang asli, que integram o grupo dos batek, a vetusta tribo que significa, literalmente, “povo originário” da Malásia, rematam o cenário encantador.

Em vão, clamo contra a negritude de uma noite escura por natureza. No cais de embarque de Wakaf Bharu, sob o pontilhado céu estrelado, a hora adiantada permite-me vislumbrar meus semelhantes, entenda-se estrangeiros, pela primeira vez 24 horas.

Largas horas antes, petiscava eu no Pasar Malam, mercado nocturno de Kota Bharu, quando me vi protagonista de um filme do qual não lera o guião. A minha figura não passava incólume entre os autóctones, atingindo o clímax do alvoroço já os braços do sol se contraíam após um dia a abrasar a crosta terrestre. Por entre incontáveis “hellos” e acenos emoldurados por sorrisos encantadores, lá consegui explicar a minha proveniência, perfeitamente entendida mediante a esperada reacção “sim, sei, tal como Cristiano Ronaldo”. Quanto a explicar onde fica, no mapa-mundo, este rectângulo singular, a conversa já era outra...

A curiosidade justificava-se já que, na província de Kelantan, de onde se avista o Sul da Tailândia, imperam as leis do partido islâmico da Malásia, significando maior conservadorismo entre os locais – as mulheres são obrigadas a tapar a cabeça com o tudong, parente próximo do véu islâmico hijab – e criando um injustificado temor entre a comunidade visitante, que apenas utiliza a cidade como plataforma de passagem para os arquipélagos paradisíacos no mar do Sul da China, para a vizinha Tailândia ou, ainda, e como no meu caso, para apanhar o “Jungle Train”, o célebre comboio da selva. O facto de ter lido e escutado tais receios redundou num efeito contrário, levando-me a permanecer por terras regidas por um sultão remetido a uma fausto palácio vedado a olhares curiosos.

A contrastar com a cavaqueira da noite anterior, o taxista da madrugada era de poucas falas mas, através da penumbra, lá me transportou até à vizinha estação ferroviária. A modorra assaltava o condutor de baixa estatura, valendo-me o facto de o vagaroso veículo conhecer o caminho como os sulcos dos pneus entretanto carecas. São 6h30 da manhã. A alvorada traz consigo uma orquestra de sons desconcertados e desconcertantes dos insectos e pássaros dissimulados na densa vegetação que circunda os seres e construções humanas. São poucos os passageiros que aguardam pela chegada do cavalo de ferro. O atraso (im)previsto possibilita o abastecer de mantimentos, altura em que olhares cúmplices perpassam entre os viajantes. Devidamente embarcado, a jornada remete-me, instintivamente, à curta viagem anterior: os vagões deslizam pachorrentamente sobre os carris, levando uma eternidade, leia-se mais de seis horas, para alcançar Jerantut, porta principal de acesso a Taman Negara. Quase deserta e sob um frio polar expelido por um perverso ar condicionado, a minha carruagem parece reservada aos turistas. A meu lado, encostada à janela, Isabella, uma florentina trintona de cabelos mel desprendidos em cachos, juntou o melhor de dois mundos: escrita e viagens. A explicação.

“Já fui médica, sabia?” Prosseguiu num tom apressado coadjuvado por uma linguagem afincadamente gestual, genuinamente transalpina. “Era ortopedista, viajava bastante em trabalho, para participar em colóquios e congressos, até resolver abandonar a actividade e abraçar o jornalismo free lancer.” Estimei a audácia por desprender-se da sua zona de conforto e arriscar na felicidade sensorial.

Sem uma ruga sequer a subtrair beleza aos pequenos olhos verde-tímido, a italiana era de uma simpatia ternurenta. Na fila posterior à nossa, viajava um casal holandês com quem havia cruzado olhares no cais de embarque. De estilo hippie, a pele enegrecida e carcomida pela acção do sol acrescenta-lhes uns a mais nos cartões de cidadão. Ele ou dorme ou mantém-se acordado com olhos fechados; ela esforça-se por memorizar os vários guias que comportava na algibeira. E é só. Quatro “camones” arremetidos a um amplo compartimento desprovido de qualquer luxo mas com dois enormes plasmas, um em cada entrada, a passar uma comédia policial dos anos 1980.

Pela moldura da janela baça, o filme é bem mais interessante, colorido e, sobretudo, natural. Desfilando em modo compassado, a paisagem adquire outro chamariz quando trespassa densas zonas florestais ou atravessa pontes sobre o rio Kelantan, cujas águas barrentas são ladeadas pela selva intransponível. A animação surge às primeiras paragens. Os locais preenchem os (muitos) lugares disponíveis com a algazarra estudantil a avivar um compartimento desenxabido. Sem espanto, o quarteto de turistas é alvo fácil da curiosidade alheia, tornando mais jovial uma jornada que ansiamos célere. A viagem, de fio a pavio, ou de Tumpat a Gemas, percorre 526 km, mas o epíteto de “comboio da selva” foi granjeado na secção que corresponde à área de Taman Negara. Notamos as razões quando a vegetação afaga as paredes das composições e nos engole, a todos, como se o comboio fosse um comprimido natural, em determinadas secções do trecho. Infelizmente, também percebo por que razão a Malásia apresenta a maior taxa de desflorestação mundial – tem vindo a perder 0,65 pontos percentuais/ano da sua área florestal, devido à urbanização e, sobretudo, à conversão da floresta em imensas áreas de palmeiras (de onde se extrai óleo) e árvores da borracha. Ainda assim, três quartos da Malásia são locais compostos por espaços verdes, dos quais dois terços são espaços naturais virgens. É esta a percentagem que busco.

O apito furioso da locomotiva desperta-me dos meus pensamentos anti-civilizacionais. Uma placa singela anuncia Jerantut, o destino do grupo dos quatro. A cidadezinha é o portão de entrada em Taman Negara que significa, à letra, “Parque Nacional”. A maior parte dos visitantes passa aqui a noite, mas esse não era o meu plano, nem de nenhum dos comparsas. As lojas chinesas tomaram de assalto a rua principal, a Diwangsa, muito apreciadas por transaccionarem álcool e tabaco, contrariando a lei seca imposta pelos muçulmanos. Os holandeses muniram-se de uma quantidade inusitada de bebidas, enquanto eu e a italiana nos despedimos, sem alaridos, porque, ao contrário do casal, que ia de táxi directamente para Kuala Tahan, a aldeia que serve de acesso ao parque, eu e a toscana enveredámos pela via mais prazenteira, mesmo que demorada. Primeiro, de autocarro até a Kuala Tembeling e, dali, de canoa rio acima ao longo de três horas insubstituíveis.

Acomodado na proa, senti, finalmente, o poder da selva a desfilar, com exuberância, diante dos meus olhos extasiados. Este aperitivo exponenciava os já de si elevados níveis de adrenalina, inquieto com o que me aguardava. Termino o dia como o comecei: a clamar contra o lusco-fusco, resignando-me, porém, às leis da natureza. Em Kuala Tahan elas fazem-se notar na sua plenitude. As trevas sonegam um gigantesco jardim zoológico ao ar livre, de insectos, repteis e aracnídeos. Já sem Isabella por perto, que partira numa excursão previamente organizada de vários dias de caminhada, a longa jornada embala-me num sono profundo. Sonhei com as sardaniscas e respectivos parentes que, comigo, dividiram, sem pagar, o quarto do bungallow.

O ás das copas

Desperto com dois olhos minúsculos e negros a jogarem ao sério comigo. Toda a noite, a alvacenta osga não se moveu um centímetro. E esta não gracejava. “Conheci uma osga que ria – há muitos anos, na floresta de Taman Negara, na Malásia. Nunca mais a esqueci”, recordou José Eduardo Agualusa para justificar o porquê de atribuir a uma lagartixa a narração de O Vendedor de Passados. Já o presente oferece-me uma janela escancarada para o Éden, engalanado com todos os matizes de verde, ocultando mistérios e segredos nunca revelados. Os órgãos sensoriais remetem-me, uma vez mais, para o escritor angolano. “Na Floresta de Taman Negara, a luz é uma matéria fluida, que se cola à pele e tem sabor e cheiro.”

A ladeira descendente leva-me directamente ao rio Tahan, onde proliferam os barcos-restaurante e pequenas embarcações que unem as margens do caudal que corre cheio. A curta travessia deixa-me em solo sagrado de Taman Negara. Finalmente, estou entregue à mãe natureza, inebriado pelos sons quentes e por ténues feixes de luz que penetram por entre a frondosa vegetação. Sou recebido por macacos e pelo pipiar de aves cuja designação científica jamais memorizarei. Sem delongas, alcanço a famosa ponte suspensa, ou “canopy walk”, de Taman Negara. Esta impressionante obra de engenharia leva-nos a percorrer, durante quase uma hora, os 510 metros de extensão, tornando-a na mais longa do mundo. A caminhada entre árvores gigantes é realizada com a ajuda de passadiços elevados e instáveis, formados por madeira, cabos e cordas. Uma experiência que desafia a coragem mesmo de quem não se debate com vertigens – o caminho faz-se entre os 25 e 40 metros de atitude. O facto de abrir ao público apenas algumas horas por dia, quando a luz solar é mais intensa, implica uma demanda massiva e desagradável, com algumas normas básicas de segurança a não serem respeitadas, desvanecendo o efeito relaxante de se estar só e em contacto directo com a natureza. Gorada a diligência por uma intimidade maior com o reino selvagem, resolvi procurá-la no rés-do-chão, noutro ponto, depois de descer umas escadas de fazer parar o batimento cardíaco.

Os tigres andam por aí

Embrenho-me pela selva dentro, seguindo uma espécie de carreiro pedregoso e escorregadio ziguezagueante por entre um mar de intimidatórias árvores de raízes, descomunais e de difícil transposição. Rumo ao miradouro de Butik Teresek, a 334 metros de altitude, mas a caminhada (será escalada?) faz-se a tracção total, sob uma humidade sufocante que ensopa e embacia tudo à sua volta. Situo-me nas franjas do imenso parque nacional, espraiando-se por uma área cinco vezes maior do que a Madeira e do mesmo tamanho do Minho. São 4343km2 repartidos por três regiões malaias distintas. Atinjo o meu objectivo enquanto penso nestes números assombrosos. A visão desde Butik Teresk é arrebatadora: selva para lá do horizonte e de uma densidade assustadora. A mescla de calor com humidade faz-me delirar, levando-me a imaginar quantos animais ferozes não estarão ocultos na vegetação. Vem-me à memória a saudosa série Sandokan, o Tigre da Malásia. Poderia ser Ianes, o amigo português inseparável do herói que marcou a infância de toda uma geração. A série foi filmada na Malásia e na ilha do Bornéu, onde, na parte malaia, existe uma cidade com o nome... Sandakan. Coincidência? Segundo um estudo realizado neste parque, existem cerca de 1500 tigres em liberdade, muitos dos quais “andam por aí”, pode ler-se.

Os meus receios desvanecem-se com o aproximar de visitantes. O respirar ofegante e alguns gemidos provocados pelo cansaço são perceptíveis à distância. Pela fisionomia e língua familiar, depreendo que sejam malaios. São três mais um guia do parque, que eu dispensara por considerar que o percurso seria tangível de forma autónoma. Dois deles retiram sanguessugas dos gémeos ensanguentados. O guia utiliza uma pequena faca de mato e uma espécie de lima para soltar estes hematófagos tão comuns nestas paragens. Valeram-me as calças dentro das meias grossas ou, então, o meu tipo de sangue não aguçou o apetite dos parasitas.

A descida faz-se a passo de caracol; todos os cuidados são poucos face ao perigo de uma queda iminente e à quantidade de pequenos animais, rastejantes e voadores, que enxameiam o lugar. Já os de maior porte são de raro avistamento, habitando no interior da selva, a vários dias de caminhada.

De volta ao minúsculo cais de embarque, escuto uma conversa curiosa entre um miúdo e o seu pai. Diria, pela pinta florida, tratarem-se de norte-americanos.

“Esta selva tem muitos bichos?”

“Tem, sim, tigres, rinocerontes de Sumatra, cobras, ursos, lagartos, formigas, gigantes...”

“E dinossauros?”

“Penso que não, mas, sabes, filho, esta floresta, que é a mais antiga do Mundo, é do tempo dos dinossauros, só não sei se eles andaram por aqui.”

O homem estudara os manuais. Com 130 milhões de anos, mais dez do que a Amazónia, por exemplo, Taman Negara é a única floresta do planeta a ter sobrevivido às Eras do Gelo e caprichos da natureza, subentenda-se terramotos, actividade vulcânica e outros sobressaltos geológicos.

A selva cerrada antecipa o crepúsculo precipitado, impondo um regresso rápido à outra banda. Embalo o estômago num restaurante que balouça sobre águas pachorrentas. Estava ansioso por partilhar as novidades com a minha amiga osga antes de voltar a sair para o safari nocturno.

Encontros imediatos

A natureza local é infinitamente variada e abriga uma série de raros e extraordinários animais como o lagarto monitor, do grupo dos dragões de Komodo. O seu porte avantajado intimida e com este optei por não jogar ao sério, contornando o bichinho que circundava a porta do meu isolado mini-apartamento. Como não há duas sem três, voltei a vociferar contra o breu nocturno - ou terá sido contra os meus receios (in)conscientes?

Juntei-me ao reduzido grupo de temerários que partiram em duas carrinhas de caixa aberta, vulgo pick-up, à procura de emoções fortes. O lamacento e caudaloso rio Tahan faz de fronteira entre o misterioso mundo de Taman Negara e a parte onde vivem os humanos, não implicando, porém, menor fauna e flora do lado “de cá”. Mais de 350 espécies de pássaros, 14.000 de plantas e 210 de mamíferos podem ser encontradas dentro e fora do parque nacional mais antigo da Malásia, fundado em 1937. Um por cento destes números sobraria para saciar o meu apetite aventureiro, mas o tempo e o holofote apenas avistavam algumas aves a dormitar em samambaias, outras nas gigantes árvores de nyatuh ou nas jelutong – as maiores, com 80 metros, estão dentro do parque e chamam-se tualang, bem como as raflésias, as maiores flores do mundo.

O desalento assenhoreava-se do meu estado de espírito quando, sobressaltado e de lanterna na mão, o guia salta do capot da viatura para segurar a longa cauda de uma enorme pitão. A descomunal cobra, a caminho dos três metros, não se debate, estando apenas interessada em prosseguir o seu caminho. O guia esforça-se por travar-lhe a marcha, esperando pelo segundo jipe, de modo a partilhar este encontro tão desejado pelos turistas. A pitão impacienta-se, dando mostras visíveis do seu desagrado. De máquina fotográfica em riste, estou a poucos metros da acção. A pitão abre as goelas ao jovem guia e este deixa-a cair no chão. O breu é total, um arrepio trespassa o meu corpo, ninguém sabe onde está o furioso animal. Aqueles cinco segundos pareceram-me uma eternidade, até que a luz do holofote ilumina o palco de uma batalha que termina com um vencedor óbvio. O guia é mordido no pulso e, acto contínuo, é transportado para o hospital na “minha” carrinha. Enquanto espero pela chegada do outro grupo de aventureiros que perdeu este tenebroso espectáculo, imagino se tudo não passou de um documentário fictício. Mas não. A natureza volta a dar uma lição: “A liberdade é um bem inalienável e não é privilégio do Homem”.

Ainda sobressaltado, revejo as imagens que captara, a maioria de forma casual. Disparava sem medir as consequências. Utilizara o flash para ver e não tanto para captar imagens. No regresso ao ponto de partida, avistámos, de fugida, um gato-leopardo asiático e uma outra cobra verde-fluorescente, quase imperceptível, a repousar nos canaviais. Apesar do tamanho reduzido, esta poderia ser venenosa, ao contrário da pitão. Estava ansioso por contar as desventuras à amiga osga. Sem sucesso: abalara para parte incerta e acabei por adormecer sozinho.

Índios e caras pálidas

Atribulada, a madrugada foi pautada por raios e coriscos, próprios do clima tropical, mas que serviram para atenuar uma humidade que entorpece corpos e matéria, que avoluma a madeira e os meus dedos. De manhã, preparo-me para uma jornada que promete ser de exigência física acentuada, fazendo fé a escritos e relatos.

Recorri a um guia para cumprir um caminho de hora e meia tangível pela maioria, mas que me poderia ser útil no interior da gruta Gua Telinga, como se veio a verificar.  O acesso não é recomendável a claustrofóbicos - as galerias são escuras, o chão escorregadio e pérfido e do seu âmago é expelido um odor putrefacto, justificado pelo amontoado de excremento de milhares de morcegos que ali vivem. O local é atravessado por um ribeiro subterrâneo que ensopa os membros inferiores, e, também, os superiores quando somos obrigados a rastejar. Não avistei o Batman, nem tão-pouco as cobras brancas que aí habitam e se banqueteiam à custa dos pequenos mamíferos voadores. São trinta minutos de algum suplício num sítio esconso, que se percorre com o auxílio de uma corda que ladeia as paredes cavernosas. Vejo finalmente a luz do dia após uma custosa saída a lembrar um parto difícil. A experiência é assombrosa. Se a repetia?

Enquanto cismo na resposta, sou assomado pela eterna questão do viajante incapaz de abarcar o mundo de uma só vez: esquerda ou direita? Neste caso, as cascatas de Lata Berkoh ou conviver com os batek, a tribo originária da Malásia e habitantes por excelência deste parque? Resta-me este dia para desfrutar de Taman Negara e parece-me que os rápidos pedregosos, a cerca de duas horas de barco (ou um dia de caminhada), vão ficar para outras núpcias.

Embarco num passeio memorável pelo rio Tahan. A canoa comprida e de fundo chato – com dois tripulantes, um capitão e um guia – passa veloz contra a corrente, esquivando-se das rochas com assaz mestria para gáudio dos turistas. Lagartos estirados sobre as rochas observam os movimentos ao largo, enquanto pássaros tropicais fazem a sua cantoria. Finalmente, a embarcação atraca numa pequena praia fluvial de pedras e areia grossa e morena. Encosta acima, um trilho conduz a um acampamento.

“Vamos visitar a tribo originária da Malásia e que há milhares de anos habita Taman Negara. Vão ensinar-nos a fazer fogo e mostrar-nos a táctica de caça, com dardos venenosos”, anunciou, Joe, com um entusiasmo que não partilhei.

Os orang asli, da família dos batek, fazem lembrar os pigmeus, devido à coloração das suas peles e, sobretudo, à baixa estatura. Nesta zona vivem entre 10 a 20 famílias  em casas abertas, protegidas por árvores frondosas, com camas de bambu elevadas de modo a evitar répteis e insectos. Vários dos seus elementos dependem em exclusivo do turismo, abdicando dos seus costumes e tradições. Dão lições rápidas de sobrevivência na floresta para gáudio dos caras pálidas, como se assistissem a um episódio de survive do destemido Bear Grylls. Faço gazeta à aula e enveredo pela floresta, buscando o centro da aldeia. Reservadas, as mulheres evitam o contacto visual, ocultando-se na densa vegetação como felinos predadores. Duas crianças nuas, como setas mortíferas, passam por mim a voar. Sinto-me como um fantasma ignorado no local, certamente habituado à presença de curiosos. Atarefadas, as mulheres tratam das habitações precárias, colhem frutos e vão à pesca. A caça fica  por conta dos homens. Um ancião fita-me com interesse. Apresenta-me um simpático binturong, uma espécie de mangusto, que não é urso nem gato, mas, antes, uma mistura dos dois. Afável, parece ser o animal de estimação do acampamento e de uma utilidade extrema, por se alimentar de pequenos roedores e, até, de algumas cobras, para além de folhas, frutas e ovos.

Desço o carreiro íngreme de volta ao fandango que se vive na sala de aula improvisada. Lá se foi o meu momento zen. Vários turistas de Taiwan continuam a friccionar uma espécie de liana em torno de um pedaço de madeira na tentativa de fazer fogo, tão essencial para quem vive na floresta. Depois dá-se uma espécie de concurso de tiro de dardos por meio de canudinhos. Não me parece lugar indicado para uma feira popular. Os indígenas divertem-se com a falta de arte e engenho dos visitantes. Questiono o guia sobre a viabilidade de me banhar no rio de águas opacas. Recebo luz verde e refresco-me nas águas tisnadas de castanho barrento que não deixa enxergar um palmo sequer. Do outro lado do rio, por entre a vegetação do Parque Nacional, uma inscrição numa tabuleta de madeira incorpora o significado de Taman Negara: “O que elas expiram nós inspiramos. Conserve-as!”

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Guia prático

Como ir
A companhia aérea Emirates liga Lisboa a Kuala Lumpur com escala no Dubai. Da capital malaia partem quatro autocarros/dia para Jerantut numa viagem de apenas três horas. Daqui, a maior parte dos visitantes opta por apanhar um novo autocarro até ao cais de Kuala Tembeling e dali um barco até Kuala Tahan, a vila de acesso ao parque Nacional Taman Negara. Em Jerantut também pode ir directamente para Kuala Tahan, numa viagem mais curta e barata, porém menos prazenteira para os sentidos. Atenção aos últimos horários de autocarros e dos barcos, pois nem sempre coincidem com o pré-estabelecido.

Quando ir
A Malásia continental e insular (a parte Norte da ilha do Bornéu) situam-se imediatamente a Norte da linha do Equador, pelo que o clima é tropical ao longo do ano todo, com temperaturas entre os 20 e os 30 graus. Já a humidade do ar atinge os abafadiços 90%. A melhor altura para viajar é, seguramente, durante a estação seca, entre Fevereiro e Setembro, sendo que o pico do turismo se verifica nos meses estivais, Junho a Agosto. A partir de Outubro chegam as chuvas que podem inviabilizar as caminhadas em Taman Negara.

O que fazer
Este é o item mais ingrato de aconselhar face à panóplia de ofertas naturais vigentes em Taman Negara. Para além das minhas investidas – canopy walk, miradouro de Butik Teresek, safari nocturno, as grutas de Gua Telinga e um passeio de canoa a motor, que passa por rápidos, até ao acampamento da tribo dos orang asli – existem outras tantas a exigir aquilo que sempre faltará ao viajante: tempo e, neste caso,  apurado espírito aventureiro. Existem caminhadas de dez (ou mais) dias pela floresta, que pode fazer de modo independente ou com guia. Se optar por seguir só ou com amigos, lembre-se que só os experimentados o podem e sabem fazer, sob pena de se perder ao fim de algumas horas – relatos nesse sentido são mato. Ainda na floresta, pode visitar as grutas Gua Kepayang e Gua Daun Menari, onde habitam colónias de insectos e répteis. Se optar por escalar o monte Gunung Tahan, o maior da península malaia, com 2187 metros, faça-o com um guia e lembre-se que terá de transportar a própria comida e o material para pernoitar numa caminhada que pode prolongar-se por uma semana. O rio Tahan, um dos que atravessa o parque, é um paraíso para os desportos radicais: pesca desportiva, canyoning ou rafting. Na zona de Sungai Tanum refresque-se nas águas translúcidas e apanhe peixes à... mão.

O que comer
Muçulmanos e hindus são as duas maiores populações do país; os primeiros não comem porco, os segundos não tocam na vaca, portanto quem paga as favas é o frango. E há-os para todos os gostos: do estilo tailandês, vietnamita, chinês, indiano, indonésio, japonês e por aí fora, quase sempre temperados com caril, picante, gengibre, manteiga de amendoim e outras tantas especiarias que conferem um sabor forte ao prato. Nos barcos-restaurante pode ainda encontrar os famosos noodles (mi goreng), o arroz frito (nasi goreng), satay (espetadas de frango)  ou os spring rolls (crepes). O arroz branco cozido está sempre presente como acompanhamento, ao contrário das saladas, raras por uma região rica em frutas.

Onde ficar
Localizado à beira do rio Tahan, o complexo Mutiara Taman Negara oferece chalets de madeira rústicos e bungalows, que não destoam da selva ao redor. O restaurante ao ar livre tem vista para o rio e serve pratos malaios e ocidentais. O hotel tem vários guias experientes em passeios pela região. Se optar por menos glamour, na pouco dispendiosa Kaula Tahan, do outro lado do rio, fora do Parque Taman Negara, existe uma miríade de ofertas para todos os gostos, por entre pequenos e despretensiosos hotéis e pequenos chalets espalhados pela vegetação.

INFORMAÇÕES
Os cidadãos portugueses não precisam de visto para uma permanência máxima de 90 dias na Malásia, considerado um dos 16 países mais ricos em diversidade biológica no planeta. Dada a relativa proximidade a Kuala Lumpur, Taman Negara está a ser alvo de uma demanda invulgar, principalmente nos fins-de-semana da estação alta. Portanto, evite, se possível, a época do Verão para desfrutar da selva na sua plenitude. Pode contratar as excursões ou guias na capital ou à chegada, junto dos operadores locais. Informe-se, porém, se as verbas recaem a favor das comunidades de Taman Negara. Apesar de a língua oficial ser o malaio, o inglês é perceptível por grande parte da população letrada. É importante possuir um seguro de saúde válido em todo o mundo e que assegure explicitamente a repatriação da Malásia em casos de emergência. Além disto, recomenda-se o consumo de água engarrafada; os frutos devem ser descascados e as verduras e legumes deverão ser cozidos. Visto haver perigo de infecção, leve um pequeno kit de remédios. Vacine-se contra hepatite A, tifo, poliomielite, difteria e tétano. O calor e humidade da selva implicam uma boa dose de repelente e roupas largas que cubram o corpo.

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