Fugas - Viagens

A floresta de Sandokan é do tempo dos dinossauros

Por Ireneu Teixeira (texto e fotos)

Cinco vezes maior do que a ilha da Madeira, incrustado no coração da península malaia, subsiste o pulmão verde tropical mais antigo do planeta. Com 130 milhões de anos e tendo passado incólume às várias idades do gelo e caprichos da natureza, Taman Negara corporiza a magia e atracção pela selva impenetrável, abrigando uma babilónia de fauna e flora. Os orang asli, que integram o grupo dos batek, a vetusta tribo que significa, literalmente, “povo originário” da Malásia, rematam o cenário encantador.

Em vão, clamo contra a negritude de uma noite escura por natureza. No cais de embarque de Wakaf Bharu, sob o pontilhado céu estrelado, a hora adiantada permite-me vislumbrar meus semelhantes, entenda-se estrangeiros, pela primeira vez 24 horas.

Largas horas antes, petiscava eu no Pasar Malam, mercado nocturno de Kota Bharu, quando me vi protagonista de um filme do qual não lera o guião. A minha figura não passava incólume entre os autóctones, atingindo o clímax do alvoroço já os braços do sol se contraíam após um dia a abrasar a crosta terrestre. Por entre incontáveis “hellos” e acenos emoldurados por sorrisos encantadores, lá consegui explicar a minha proveniência, perfeitamente entendida mediante a esperada reacção “sim, sei, tal como Cristiano Ronaldo”. Quanto a explicar onde fica, no mapa-mundo, este rectângulo singular, a conversa já era outra...

A curiosidade justificava-se já que, na província de Kelantan, de onde se avista o Sul da Tailândia, imperam as leis do partido islâmico da Malásia, significando maior conservadorismo entre os locais – as mulheres são obrigadas a tapar a cabeça com o tudong, parente próximo do véu islâmico hijab – e criando um injustificado temor entre a comunidade visitante, que apenas utiliza a cidade como plataforma de passagem para os arquipélagos paradisíacos no mar do Sul da China, para a vizinha Tailândia ou, ainda, e como no meu caso, para apanhar o “Jungle Train”, o célebre comboio da selva. O facto de ter lido e escutado tais receios redundou num efeito contrário, levando-me a permanecer por terras regidas por um sultão remetido a uma fausto palácio vedado a olhares curiosos.

A contrastar com a cavaqueira da noite anterior, o taxista da madrugada era de poucas falas mas, através da penumbra, lá me transportou até à vizinha estação ferroviária. A modorra assaltava o condutor de baixa estatura, valendo-me o facto de o vagaroso veículo conhecer o caminho como os sulcos dos pneus entretanto carecas. São 6h30 da manhã. A alvorada traz consigo uma orquestra de sons desconcertados e desconcertantes dos insectos e pássaros dissimulados na densa vegetação que circunda os seres e construções humanas. São poucos os passageiros que aguardam pela chegada do cavalo de ferro. O atraso (im)previsto possibilita o abastecer de mantimentos, altura em que olhares cúmplices perpassam entre os viajantes. Devidamente embarcado, a jornada remete-me, instintivamente, à curta viagem anterior: os vagões deslizam pachorrentamente sobre os carris, levando uma eternidade, leia-se mais de seis horas, para alcançar Jerantut, porta principal de acesso a Taman Negara. Quase deserta e sob um frio polar expelido por um perverso ar condicionado, a minha carruagem parece reservada aos turistas. A meu lado, encostada à janela, Isabella, uma florentina trintona de cabelos mel desprendidos em cachos, juntou o melhor de dois mundos: escrita e viagens. A explicação.

“Já fui médica, sabia?” Prosseguiu num tom apressado coadjuvado por uma linguagem afincadamente gestual, genuinamente transalpina. “Era ortopedista, viajava bastante em trabalho, para participar em colóquios e congressos, até resolver abandonar a actividade e abraçar o jornalismo free lancer.” Estimei a audácia por desprender-se da sua zona de conforto e arriscar na felicidade sensorial.

--%>