Fugas - Viagens

  • Budva é um lugar emblemático do turismo de sol e praia, com uma vida nocturna que parece não ter fim; por seu lado
    Budva é um lugar emblemático do turismo de sol e praia, com uma vida nocturna que parece não ter fim; por seu lado STEVO VASILJEVIC/REUTERS
  • Sveti Stefan, com as suas casinhas de pedra pequenas e arranjadinhas, poderia servir de cenário para as Viagens de Gulliver
    Sveti Stefan, com as suas casinhas de pedra pequenas e arranjadinhas, poderia servir de cenário para as Viagens de Gulliver STEVO VASILJEVIC/REUTERS
  • Crna Gora
    Crna Gora ALAN COPSON/REUTERS
  • Kotor
    Kotor
  • Perast, na base da colina de Santo Elias, e com as suas casas ancoradas na baía, é o perfeito postal ilustrado; em baixo, nova perspectiva de Crna Gora
    Perast, na base da colina de Santo Elias, e com as suas casas ancoradas na baía, é o perfeito postal ilustrado; em baixo, nova perspectiva de Crna Gora ALAN COPSON/REUTERS

Tantas e tão desconhecidas são as jóias do Montenegro

Por Sousa Ribeiro

De Perast a Budva, de Kotor a Sveti Stefan, ao longo do Adriático, sem ignorar o interior, a antiga capital, Cetinje, e o Mosteiro de Ostrogh, este estado tão jovem da Europa, com uma área tão exígua e uma população que cabe toda em Lisboa, é o exemplo mais flagrante de que o tamanho não importa.

O agente rodeava o carro, como se o cheirasse, perscrutando aqui e ali, embora deixasse no ar a ideia de que não lhe haveria de faltar um motivo para aplicar uma sanção, mesmo antes de o abarcar com o olhar.
- Dobro jutro.
- E, eu, dando os bons-dias, respondi:
- Dobro jutro.
No rosto, uma expressão sisuda.
- Temos de o multar…
- Por que razão?
- Falta-lhe o dístico do país de aluguer da viatura.
Não respondi mas amaldiçoei o maldito autocolante que deveria contemplar as letras HR, de Hrvatska, da Croácia, e mais ainda o esquema tão ridículo e mesquinho que ameaçava estragar-me um dia que nascera tão radioso. Pedi um momento e, entrando no carro, procurei o telemóvel. Recordara-me de ver, há já muitos anos, num jogo entre o Benfica e o Sporting, o defesa-esquerdo dos leões, Budimir Vujacic, com um chapéu de polícia na cabeça, festejando de forma efusiva o golo que Amunike acabara de marcar. Eu tinha o número de telemóvel do antigo futebolista montenegrino, que não demorou a atender e a pedir-me, sem demoras, que passasse o aparelho a um dos agentes.

Se o tempo é dinheiro, teria sido preferível pagar a multa, mas a repentina boa disposição daqueles dois homens fardados, abordando um tema que lhes era tão grato, ora colocando questões, ora emitindo a sua opinião sobre a realidade do futebol português, inebriou-me com uma energia de tal forma positiva que, ao despedir-me, estreitando as mãos dos agentes, sentia que nenhum obstáculo me poderia deter para desfrutar os encantos de um país estranhamente tão ausente dos radares turísticos.

- Dovidjenja.
E eles, em coro, responderam:
- Dovidjenja.

Materializado o adeus, de novo instalado no carro, olhei pelo retrovisor e avistei, ao fundo, no final de uma recta, uma viatura aproximando-se e, desviando o olhar para os agentes, apercebi-me da sua inquietação através de movimentos rápidos que terminaram com a ordem para o carro encostar na berma da estrada. E, desfazendo uma curva, nada mais vi porque tudo queria ver, deixando que em todo o meu ser se instalasse uma ansiedade eufórica que apenas se atenuou quando, subitamente, Perast, banhada por um céu azul-cobalto, se perfilou no meu horizonte. A cidade, com as suas casas ancoradas na baía, na base da colina de Santo Elias, parecia estar ao alcance da mão mas a estrada teimava em serpentear pela margem, como se Perast brincasse às escondidas comigo ou como se pretendesse manter-se oculta dos olhares que lhe lançava.

A melancolia das memórias

Reina a calma, apenas o bulício de um ou outro pescador e os gritos dos meninos que jogam à bola no adro da igreja de São Marcos, em plena Praça Velha, fintando-se a eles próprios e a um conjunto de estátuas em bronze que ornamentam o recinto empedrado, quebram aquele silêncio belo e inquietante.

- Zdravo, foto?

Correspondo ao cumprimento da criança que se faz acompanhar de um pequeno rafeiro de olhar meigo e aguardo que os seis se organizem, abraçados, indiferentes a vitórias e derrotas, o cão assente nas patas traseiras, logo na primeira fila, a bola amarela de borracha pousada nos joelhos do mais novo, um rosto delicado emoldurado por fartos caracóis que lhe caem até aos ombros, tendo como fundo uma austera porta de madeira pintada de verde, perfeitamente enquadrada com a torre sineira que se recorta no azul do céu.

- Hvala, hvala.

Educados, agradecem e regressam às suas vidas, pontapeando a bola com as sandálias já gastas por tantas horas de entrega àquele jogo e protegidos pela sombra da imponente igreja. Eles fazem parte do futuro de Perast, mesmo se Perast parece viver no passado, adormecida, como alguém que se recolhe após um período de esplendor, quase tão efémero como a infância destas crianças ou a minha. Imerso numa profunda nostalgia, erro até à margem da baía e, virando as costas para as águas serenas, fito a cidade com as suas casas e os seus telhados de grande beleza estética, aceitando com naturalidade a visão de alguns guias turísticos que definem Perast como um pedaço de Veneza que, flutuando ao longo do Adriático, ancorou sobre a baía.

O sentimento de melancolia exacerba-se à medida que vou caminhando pelas suas ruas órfãs de ruídos, testemunhas oculares de um tempo de glória que as suas 16 igrejas e 17 antigos grandes palácios, confinados a um espaço tão reduzido, se limitam a confirmar. Um destes últimos, o Palácio Bujovic, foi convertido em museu e retrata na perfeição o orgulho das suas gentes perante os feitos e a rica história de navegadores de um tempo de antanho, quando, imbuídos de um forte espírito de lealdade, desempenharam papel importante na luta contra o avanço dos otomanos, beneficiando, desta forma, de inúmeros privilégios que lhes concediam os venezianos.

O museu, particularmente interessante, contém documentos históricos, roupas e armas mas é uma bandeira de guerra de um navio russo, oferecida por Pedro, o Grande a um capitão de Perast (Matija Zmajevic) pela sua ajuda na batalha contra os suecos, próximo de Gangut, há precisamente 300 anos, que se destaca no interior do palácio que se debruça sobre a baía, bem guardado pelas suas estátuas de leões – um sinal claro e inequívoco da riqueza de capitães e armadores que, com os seus barcos ancorados no porto, aqui viviam nesse tempo aristocrático tão distante.

A tradição da Facinada

Não é um capitão mas um humilde pescador que me conduz, sob um céu onde não corre uma única nuvem, até à minúscula Gospa od Skrpjela, uma ilha artificial construída no século XV que encerra uma lenda assombrosa. Reza a história que pescadores de Perast encontraram um dia, sobre um rochedo, um ícone de Nossa Senhora e o Menino (alegadamente o mesma que se destaca no altar da igreja mas na realidade uma obra também de finais do século XV, da autoria de Lovar Dobricevic), uma descoberta que os levou a afundar no local mais pedras e carcaças de velhos barcos vítimas de naufrágio em quantidade suficiente para formar uma ilha sobre a qual seria construída uma igreja com o nome de Nossa Senhora do Rochedo. Desde esse momento, sempre que saíam para o mar, os fervorosos pescadores cumpriam a promessa de lançar uma pedra naquela zona da baía, de forma a contribuírem para a estabilidade da fundação da estrutura religiosa.

- É pena que não possa assistir à Facinada.

O padre António, que me irá acompanhar na curta viagem de regresso a Perast, fala-me então da tradição com um fascínio contagiante.     

- É uma cerimónia muito interessante que acontece todos os anos, desde 1452, no dia 22 de Julho, pouco antes do pôr do sol. Os barcos, carregados de peregrinos e enfeitados com ramos de choupos, percorrem a distância entre Perast e a Gospa od Skrpjela em fila indiana, transportando o maior número possível de pedras que lançam à água nas imediações da ilha. Apenas os homens, descendentes de famosos navegadores, altos dignatários da vila, cantores e remadores, acompanhados do padre, podem tomar parte nesta tradição ancestral, destinada a cumprir as promessas dos seus antecessores, enquanto as mulheres e as crianças se perfilam ao longo da margem acenando aos fiéis que cumprem o trajecto ao som da Bugarstica.

A Bugarstica é uma balada poética épica que, até ao século XVIII, gozava de grande popularidade entre sérvios e croatas, uma tradição oral cuja existência é anterior ao século XV e que relata a história de grandes batalhas e de outras em menor escala, tendo por palco Perast e a baía de Kotor, bem como de eminentes figuras do feudalismo de entre os séculos XIV e XVI, da Sérvia, da Hungria, da Croácia e da Bósnia.

- É um dia especial na baía, uma festa à qual se juntam habitantes de lugares vizinhos, como Kostanjica, Stoliv, Strp e Durici, entre outros. Quando os barcos se aproximam da ilha, ouvem-se as badaladas do sino, dando as boas-vindas aos peregrinos que, de forma entusiástica, continuam a entoar os seus cânticos. Depois, já na igreja, reza-se o terço. No passado, após a celebração religiosa, era servido um modesto jantar composto de pão, cordeiro assado, queijo e salada, mas essa prática foi abandonada há já alguns anos.  

A vizinha Sveti Dorde

O padre, de nacionalidade italiana, regressa ao interior da igreja e eu, mudo, sem o perturbar, sigo-lhe os passos, não sem antes admirar o bonito pórtico da fachada com um frontispício e uma pequena estátua da padroeira com uma aparência arcaica. Existem documentos que comprovam a existência de uma estrutura religiosa neste lugar desde finais do século XV mas a Gospa od Skrpjela, um dos mais importantes memoriais culturais da baía, foi erguida em 1630, com ampliações mais ou menos frequentes, uma vez que a ilha tem avançado sobre as águas ao longo de mais de quatro séculos de história. Já no interior, sob um silêncio sepulcral, planto olhares no tecto e nas paredes, nos frescos e nas quase sete dezenas de pinturas a óleo em tela que retratam cenas da vida de Nossa Senhora e outras, a um nível inferior, do Velho Testamento e dos Antigos Profetas, todo um misticismo que, ainda assim, me faz sentir mais numa galeria de arte do que numa igreja. As obras, algumas da autoria de Tripo Kokolja, um discípulo da escola veneziana e nativo da baía de Kotor, outras de grandes mestres do Barroco, estão misturadas com pratos de prata que mostram, em relevo, os barcos doados pelos navegadores locais sempre que partiam para o mar, em sinal de gratidão para com a padroeira que, estivessem eles onde estivessem, se encarregava de os proteger.

Caminhando até uma das extremidades, com Perast à minha frente, aproveito a elevada distinção arquitectónica de um arco para emoldurar a pitoresca Sveti Dorde (São Jorge), erguendo-se sobre um recife a pouco mais de cem metros de distância. Tendo como fundo colinas caindo suavemente para as águas da baía e rodeada de frondosos ciprestes, recorta-se no centro a abadia que foi fundada pelos beneditinos, já mencionada em documentos no século XII. Estudos relativamente recentes defendem, no entanto, com base em alguns dos adereços da sua estrutura, que era já um local de culto dos monges da ordem no século IX. Verdade ou não, a ilha e a abadia encerram múltiplas histórias dramáticas, ora vítimas da fúria de invasores, ora de terramotos, o mais grave dos quais em 1667, provocando o colapso do tecto e da abside no momento em que decorria a missa de Páscoa. Contando com uma colecção única de emblemas heráldicos dos Casadas, as doze famílias nobres que, cada uma a seu tempo, presidiam aos destinos da comuna durante a Idade Média, Sveti Dorde serviu, até 1866, como o único cemitério de Perast.

Volto a colocar o olhar na mais distinta, mais graciosa e mais colorida Gospa od Skrpjela, na sua história tão singular e, ao mesmo tempo, tão diferente da que corre em círculos menos turísticos ou religiosos: a construção ter-se-á ficado a dever ao facto de nesse tempo Sveti Dorde estar sob a jurisdição de Kotor (situação que se prolongou até 1634) e, de forma a rivalizar com os seus vizinhos, os habitantes de Perast iniciaram a tarefa hercúlea de criarem a sua própria ilha.

Eu prefiro a lenda e, embora não o interrogando sobre essa matéria, acredito que, para o padre António, agora sentado ao meu lado no barco que se prepara para partir, ambos escutando o som débil das vagas, é muito mais do que uma questão de preferência - é uma questão de fé. De costas voltadas para a igreja, tanto um como outro, rumamos a Perast mas eu não resisto a lançar um último olhar àquelas cúpulas azuis-turquesa encimando um conjunto tão harmonioso.

O abuso de Tito

Despeço-me do padre mas não da baía de Kotor, daquela tranquilidade tão ordeira que, ainda ao longo de uns quilómetros, entra pela moldura da janela do carro. A tarde reserva muitas horas de luz, o ar está perfumado, tudo é quietude e pouco ou nada se altera quando, daí a pouco, a troco de algum dinheiro e já depois de abrir a boca de espanto perante cenário tão idílico, me embrenho pelas casinhas de pedra de Sveti Stefan, tão pequenas e tão arranjadinhas que poderiam servir de cenário para as Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Entre o século XV e meados do século passado, a pequena ilha (não mais de 12.000 m2), ligada ao continente por um istmo artificial, abrigava uma modesta comunidade de pescadores, vivendo tranquilamente sob graciosos telhados de terracota. E assim teriam perpetuado a sua existência humilde não fosse o abuso do poder levado a cabo pelo regime de Tito, na década de 1950, utilizando os militares para expulsar os pescadores e nacionalizar a ilha para nela implantar um hotel de luxo, durante anos e anos refúgio predilecto de políticos e estrelas de Hollywood e desde 2009 nas mãos de uma cadeia de hotéis com sede em Singapura, com direito a explorar o espaço por um período de 30 anos e com um preço mínimo de mil euros por noite.

O sol começa a dourar as águas quando me ergo das areias da praia de Sveti Stefan com a firme determinação de caminhar até Przno para gozar da luz crepuscular que se aproxima tão vagarosamente como as ondas cheias de espuma que lambem as duas enseadas. Estas, uma vez contempladas das alturas, assemelham-se a um 3 virado ao contrário, magnificentes nas suas tonalidades de azul em perfeito contraste com o verde envolvente da natureza, um quadro tão do agrado dos piratas turcos numa época em que a zona vivia sobre o domínio de Veneza. Mas é quando chego a Przno, outra antiga aldeia de pescadores, que o espírito mais se apazigua, um encantamento que só as primeiras luzes nocturnas se encarregam de quebrar.

Sobre uma pequena ilha, uma casa de pedra sem telhado, o sol lançando as suas cintilações, o suave murmúrio do mar e a animação que se começa a sentir nos bares da praia, sobrepondo-se aos sons da natureza no seu estado puro. Não dou mais do que meia dúzia de passos, sou obrigado a virar-me para trás e, sentado, com o pensamento em lado nenhum, por ali fico, escutando, vendo as águas namoradeiras da areia.

Ausência, ausência
Si asa um tivesse
Pa voa na esse distância
Si um gazela um fosse
A noite cai e eu, imóvel.
Ai solidão, tô’ me
Sima sol sozim na céu
Sô ta brilhà ma ta cegà
Na sê clarão
Sem sabe pa onde lumia
Pa onde bai

Sei para onde vou, para a noite de Budva, acompanhado dos acordes de Goran Bregovic e da voz de Cesária Évora.

Da noite para o dia

Budva é um lugar emblemático do turismo de sol e praia, com uma vida nocturna que parece não ter fim, onde grupos de ucranianos e especialmente russos esbanjam dinheiro como quem, tendo muito para gastar, acaba de receber uma notícia anunciando o fim do mundo.

Às primeiras horas do dia, deixo-me embalar pela atmosfera sonolenta para vaguear pela Stari Grad, a parte velha da cidade que é assim uma espécie de Dubrovnik em tamanho reduzido, com as suas ruas de mármore e os seus muros venezianos subindo das águas cristalinas. Muito do que hoje se vê foi destruído em 1979 na sequência de um forte sismo e, de então para cá, muitos dos habitantes locais viram as suas antigas casas serem ocupadas por bares, restaurantes e lojas de comércio. Um curto passeio junto ao mar leva-me até à bem mais interessante cidadela, com as suas panorâmicas soberbas, um pequeno museu e uma livraria com uma vistosa colecção de antigos mapas e tomos.

A vontade de tomar um café faz-me sentar numa praça com panorâmica para a cidadela e um conjunto interessante de igrejas, um espaço sereno onde aproveito para repousar antes de me embrenhar pelos muros que protegem a vila e de ir ao encontro do museu arqueológico que, ao longo de três pisos, traça os caminhos da complicada história – que remonta a 500 anos a. C. - de Budva.

Não é que tivesse prometido ao padre António, em Perast, mas prometera a mim próprio regressar à baía de Kotor, com mais tempo para lhe dispensar do que a Budva, antes de abandonar a costa e internar-me pelo interior deste jovem estado, independente desde 2006.

A meio da manhã, após um constante e delicioso ziguezague por uma estrada onde não é difícil ser vítima de um acidente, de tal forma o viandante se sente deslumbrado com a paisagem, chego a Kotor com a certeza de que não abandonarei esta elegante cidade antes do dia seguinte, gozando da sua atmosfera relaxante sem qualquer mapa nas minhas mãos.

Património da Humanidade da UNESCO, a baía deixa-se abraçar pelo “único fiorde do sul da Europa”, como proclamam os folhetos turísticos mas uma outra comparação, salvas as devidas distâncias, com a baía de Halong, no Vietname, não é de todo descabida. O sentimento que me acompanha, logo após as primeiras impressões em Kotor, é muito semelhante ao que vivi em Perast, uma indolência que se entranha de forma agradável, lentamente e, ao mesmo tempo e de imediato, uma manifestação óbvia de beleza. O primeiro impacto sente-se mal se penetra no recinto amuralhado da parte velha através da entrada principal, a Vrata od Mora, a porta virada para o mar desde meados do século XVI que me conduz à Trg od Oruzja.

Uma vez na Praça das Armas, os olhos passeiam-se sem saber onde cair, de tal forma o viajante se sente cercado por palácios e residências senhoriais que não são mais do que uma viva herança (uma vez mais) de quatro séculos de domínio veneziano. Deslumbrante a Torre do Relógio, do início do século XVII; curiosa uma pedra com a forma de pirâmide, mesmo em frente da torre, que no passado era utilizada como pelourinho para envergonhar os cidadãos rebeldes; sumptuosa toda a praça quando abarcada com um olhar global. Por aqui, por estas ruas sem carros, e por estreitas vielas empedradas, vai-se descobrindo Kotor, as suas igrejas, as suas lendas, todo um misticismo que nos absorve sem demora.

Uma das mais imponentes, talvez mesmo a mais impressionante, é a catedral de St. Tryphon, construída no século XII mas alvo de múltiplos restauros após alguns terramotos que assolaram a região ao longo dos tempos. Sem pressas e praticamente sem companhia, aqui e acolá entregue mesmo à minha solidão, percorro o interior, com tanto para admirar: os seus frescos do século XIV, a sua arquitectura ao estilo romanesco-gótico, as suas esbeltas colunas coríntias alternando com pilares de pedra-rosa erguendo-se como apoio aos tectos abobadados e, last but not least, o altar, com artefactos em prata e ouro, bem como uma pedra ornamentada que retrata a vida do santo protector de Kotor.

Ao longo do dia vou entrando, sem hora marcada, noutras igrejas, ora católicas, ora ortodoxas, ora apreciando os ícones na de São Nicolau, ora descansando na de São Lucas, um verdadeiro paradigma de tolerância, ou não tivessem coexistido aqui, durante um século e meio, um altar católico e outro ortodoxo entre as suas paredes. Deixo para o final uma incursão ao Museu Marítimo, num palácio do século XVIII que se estende por três pisos e que se torna visita obrigatória para quem quer aumentar os seus conhecimentos sobre o poder naval de Kotor, um dos maiores motivos de orgulho das suas gentes.

Uma visita que me faz sentir uma enorme vontade de ver o mar, onde me quedo até que as luzes da cidade se espelhem nas águas do Adriático, tornando ainda mais bela esta verdadeira jóia do Montenegro.

Majestoso Ostrogh

Correm uns fiapos de nuvens pela abóbada do mundo quando, ao fim de 17 quilómetros e de um número de curvas – cada uma com uma panorâmica mais soberba do que a outra sobre a baía de Kotor – que não me cansei a contar, me sinto mais próximo do céu, como se o padre António continuasse a acompanhar-me, vendo nesse o momento ideal para me deter e por ali permanecer uns bons minutos com os olhos postos nas fortificações (para quem gosta de números são 1350 escadas) e na cidade namorando as águas de um azul intenso. O monte Lovcen, com os seus quase 1800 metros, sobe ainda mais, representa toda uma nação, está no coração dos montenegrinos, a ele se deve o nome do país – é a montanha negra, a Crna Gora, e crna significa preto e gora quer dizer monte.

De volta à estrada, não tardo a fazer uma nova escala.

- Gostas do queijo?

Dirijo-me à bagageira do carro, retiro uma garrafa de vinho comprada na Bósnia-Herzegovina e convido Vesko Paraca para me acompanhar. Ele afasta-se e entra na sua cabana feita de finos troncos de árvore, a porta funcionando como um alçapão, um telhado de chapa. Duas placas de madeira ladeiam uma janela onde se reflecte o verde da natureza que nos abraça naquele lugar perdido na montanha. Numa pode ler-se: Dobro nam dosli e eu sinto que sou bem-vindo; na outra, bife, pod, bukvom, que não ouso questionar. À volta, nem uma casa, nem um ruído, apenas um ou outro carro cruzando o asfalto. Vesko Paraca, com a sua camisa às flores, regressa para se sentar ao meu lado, bancos e mesa também de madeira, tudo muito rudimentar. Pousa um prato sobre a mesa.

- Prova, é presunto, vais gostar.

E levanta o copo, deixando que o sol lhe confira uma tonalidade menos carregada.

- Zivjeli.

E eu brindei à saúde dele.

- Zivjeli.

Sozinho, neste recanto do mundo, tão contrastante com a costa montenegrina, Vesko Paraca sente-se feliz, ouvindo os pássaros e atendendo, de longe a longe, um ou outro cliente. Não fosse a necessidade de me fazer à estrada por ali teria ficado, com prazer, bebendo a outra garrafa de vinho que ainda tinha, comendo queijo e presunto.

Se este momento, pela espontaneidade, me fica gravado na memória, a tarde desse mesmo dia proporciona-me uma das imagens mais marcantes em toda a viagem pelo Montenegro. Entalada nas rochas que caem na vertical, douradas pelos raios solares, a fachada de um branco quase imaculado – pelo menos à distância – do Mosteiro de Ostrogh, uma aparição dramática que nos transporta para lugares como o Tibete ou Ladakh, na Índia, tantas são as semelhanças com alguns dos templos que se erguem nesses lugares recônditos. Construído no século XVII por São Basílio, um bispo da Herzegovina altamente venerado pelos sérvios ortodoxos, e de longe o lugar mais sagrado do país, o mosteiro, vulgarmente designado como o milagre de São Basílio, recebe mais de um milhão de peregrinos por ano e, se a sua fachada é majestosa, o interior é de uma grande simplicidade, com grutas originais cobertas de frescos pintados nas rochas.

A noite espreita quando chego a Cetinje, a antiga capital que repousa sobre um vale, cidade com alguns dos melhores museus do país e um mosteiro imperdível, uma e outra vez destruído pelos otomanos, uma e outra vez reconstruído pelos habitantes locais.

Amanhã é outro dia.

Agora, tudo o que me apetece é sentar-me numa esplanada, junto à estrada, bem próximo do centro, saboreando os sucessivos petiscos que vão sendo colocados na minha mesa. Abandono o restaurante sob uma luz quase moribunda que quase não deixa ver o passeio e, de carro, para lá do centro da cidade, não tardo a ver-me no meio de uma total penumbra, rogando pragas ao meu habitual sentido de orientação. Avisto um polícia a quem pergunto sobre a localização do hotel, no alto de uma colina.

- Não é fácil. Eu acompanho-te e tu depois trazes-me de volta.

Quase não trocámos uma palavra mas cinco minutos depois estávamos à porta do hotel. Encetei o caminho de regresso e agradeci-lhe o gesto. No momento em que lhe apertei a mão, calorosamente, fui tomado por um impulso que tive dificuldade em controlar. Fitava-lhe o chapéu e sentia-me tentado a pedir-lho emprestado para festejar como o Budimir Vujacic. Não um golo numa baliza de futebol, marcado por Amunike, mas um golo na baliza da vida.

 

Guia prático

Quando ir

A exemplo do que acontece um pouco por todo o Mediterrâneo, a costa do Montenegro desfruta de um clima suave no Verão e ameno no Inverno. As mais altas temperaturas, entre os 20 e os 30 graus (mínima e máxima), ocorrem nos meses de Julho e Agosto, enquanto Janeiro goza habitualmente do estatuto de mês mais frio, com os termómetros a marcarem quatro e doze graus (uma vez mais mínima e máxima). Para a prática de esqui, é aconselhável que o faça entre Dezembro e Março e, de forma a evitar um grande afluxo de turistas, o ideal é aproveitar a acalmia, as muitas horas de sol e uma média de 20 graus durante os meses de Maio, Junho, Setembro e Outubro.

Como ir

O Montenegro faz fronteira com a Albânia, o Kosovo, a Sérvia, a Bósnia-Herzegovina e a Croácia, pelo que, dependendo dos lugares a visitar neste pequeno país com menos de 700 mil habitantes, são múltiplas as possibilidades que se perfilam. A melhor delas, e talvez a mais rentável e menos cansativa, passa por ligar Lisboa a Dubrovnik e, desde esta cidade na costa croata, de autocarro ou de carro alugado (mais apelativo) até Herceg Novi, um percurso que se cumpre em duas horas e com um custo aproximado de dez euros. Para chegar a Dubrovnik, tendo como base o mês de Abril, a Lufthansa proporciona a melhor ligação e o melhor preço. Efectuando escalas em Munique, a companhia aérea alemã tem tarifas a partir dos 290 euros, apenas mais 40 do que a Vueling que, com uma paragem em Barcelona, também serve Dubrovnik, embora com a desvantagem de ter de passar uma noite na cidade catalã no voo de ida.

Onde comer

Ristorante Tramontana - Na esplanada do Hotel Splendido, em Kotor
Knez Konoba - Mitrov Ljubise, Budva
Vila Drago - Slobode, 32, Sveti Stefan

Onde dormir

Palazzo Radomiri - Dobrota, Kotor
Hotel Astoria - Njegoseva 4, Budva

Hotel Adrovic - Jadranski put, Sveti Stefan


A visitar

Além dos lugares referenciados, o Montenegro, mesmo sendo um país que se percorre facilmente, dada a sua escassa área, oferece outros lugares que, com um pouco de tempo, vale a pena visitar. Entre eles, o Parque Nacional de Skadar, o maior lago dos Balcãs com a sua forma de golfinho, cauda e dois terços no país e o resto na Albânia, cobrindo uma área entre os 370 e os 550km2, consoante a época do ano em que se visita.

Imperdível é o Parque Nacional Durmitor, com cenários soberbos onde o gelo e a água se encarregaram de dotar a paisagem calcária de cenários dramáticos que contemplam 18 lagos glaciares conhecidos como gorske oci, os olhos da montanha. Na capital, Podgorica, a antiga Titograd, situada na confluência de dois rios, Moraca e Ribnica, pouco ou nada acontece mas alguns espaços verdes e outras tantas galerias podem ajudar a mudar a opinião do viajante, bem como o coração da antiga parte otomana, conhecida entre os locais como Stara Varos.

Entre as cidades, se sentir vontade de perceber como se vive na Albânia sem cruzar a fronteira, deve passar pelo menos umas horas em Ulcinj, com uma população albanesa que ultrapassa os 70%, impressionantes minaretes e a música que se escuta nas bancas que vendem kebab, sem esquecer um passado que fala de piratas, a maior parte deles proveniente de Malta, Argélia e Tunísia, mas também de uma montra do comércio de escravos que, vindos do Norte de África, na sua grande maioria, eram avaliados na praça principal da cidade. Outro lugar a não perder mas por onde os turistas passam fugazmente, é Herceg Novi, no Norte, com as suas águas cristalinas na foz da baía de Kotor, praias tranquilas e fortalezas cheias de história e de histórias.

Informações

Os cidadãos portugueses apenas necessitam de passaporte para visitar o Montenegro, garantindo uma permanência de 90 dias cuja extensão é facilmente obtida junto das autoridades. O cartão de cidadão também é válido mas pode tornar-se problemático se pretender visitar algum dos países vizinhos. O Montenegro adoptou o marco alemão em 1999, mas o euro é hoje a moeda local, apesar de o jovem estado estar ainda em negociações tendo em vista a sua entrada na União Europeia.

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