Fugas - Viagens

  • Roberta Medina
    Roberta Medina João Cordeiro
  • Roberta Medina junto ao Tejo
    Roberta Medina junto ao Tejo João Cordeiro
  • Roberta Medina no Parque da Bela Vista, o centro do Rock in Rio
    Roberta Medina no Parque da Bela Vista, o centro do Rock in Rio João Cordeiro

A Lisboa de Roberta Medina

Por Alexandra Prado Coelho

A garota Rock in Rio ainda passa temporadas no Rio mas é cada vez mais uma lisboeta. Quando chegou, em 2003, mal sabia para onde vinha. Apesar de ter um avô do Porto, cresceu num mundo onde os EUA eram a referência e pouco (ou nada) se falava de Portugal.

Foi logo na Avenida Gago Coutinho, ao sair do aeroporto, que Roberta Medina, brasileira e carioca, se sentiu enganada. Afinal Lisboa não era nada como lhe tinham contado. Ou, pensando bem, na verdade não lhe tinham contado quase nada. Lisboa era uma cidade sobre a qual a filha de Roberto Medina, o criador do Rock in Rio, nunca tinha pensado muito.

“Falei ‘não é possível’. A expectativa que eu tinha era chegar a um sítio mais parecido com a Ribeira, no Porto, ou com o Bairro Alto de Lisboa, um sítio completamente diferente do Rio, de onde eu vinha. E afinal era tudo igual”, conta Roberta.

A relação com Lisboa — onde hoje vive — foi sendo construída ao longo do tempo. Acabou por se apaixonar pela cidade sobre a qual ninguém lhe tinha falado quando era pequena. Mas esse processo de enamoramento passou por vários (pequenos) choques culturais.

Apesar de ter um avô português, da Rua de Cedofeita, no Porto, Portugal não era assunto lá em casa. “O meu avô faleceu quando eu tinha uns 10, 11 anos. Lembro muito dele, mas não lembro de sotaque nenhum. Ele foi para o Brasil muito novo, primeiro com nove anos, depois voltou a Portugal e acabou por ir de vez com uns 17 anos”, recorda, sentada no Café Piazza di Mare, junto do Tejo, um dos locais que escolheu para falar à Fugas da sua relação com Lisboa.

Quando entrámos no restaurante, Roberta teve uma hesitação. “Está diferente. Puseram uma tenda.” O que ela gosta é precisamente da esplanada frente ao rio, e hoje só há meia dúzia de mesas no exterior. Pergunta a um empregado se vai ficar sempre assim, e ele garante que não, que é só enquanto o calor não chega de vez, que esta Primavera tem estado traiçoeira. Mais descansada, Roberta decide ficar. Tentamos primeiro o exterior, mas o vento frio desanima qualquer um e acabamos a conversar no interior. É aí que Roberta recorda como Portugal esteve ausente da sua infância.

“Tinha até uma babá [ama], que tinha sido babá do meu pai e dos meus tios, que esteve na família 40 anos, e que era portuguesa e tinha um sotaque super-acentuado. Mas eu não tinha essa referência [de Portugal].” Acredita que não era a única. “Infelizmente no Brasil, e embora ache que isso está mudando, a cultura é totalmente americanizada. A gente estuda a história do mundo na escola, Portugal faz parte disso de uma forma muito intensa, mas a sensação que tenho é que tudo isso fica lá em 1500. A partir daí entra a coisa mais caricata, as anedotas, os portugueses das padarias, e, pelo menos na minha geração, não tinha a parte moderna da história de Portugal.”

Foi o 11 de Setembro que, indirectamente, acabou por aproximar os brasileiros da Europa, diz. “Para brasileiro, os Estados Unidos foram sempre rota de escape. Como a gente cresceu com o Brasil podendo dar errado a qualquer momento, se tudo desse errado íamos para os EUA. Por isso, a referência de entretenimento sempre foi a Disney, a referência de compras era Nova Iorque. Quando acontece o 11 de Setembro, os EUA deixam de ser o porto seguro. E sinto de lá para cá uma abertura de olhar onde a Europa passa a estar muito presente.”

Mas não foi por causa do 11 de Setembro que Roberta Medina veio parar a Lisboa — foi porque o seu pai decidiu fazer o primeiro Rock in Rio fora do Brasil e decidiu fazê-lo em Portugal. Ela, que começou a trabalhar com 17 anos, e que estava muito habituada a viajar em trabalho para diferentes países, aterrou em Lisboa com um automatismo: “Viajou, falou inglês”. E de repente estava num país onde não só se falava português como as pessoas pareciam saber muito mais do Brasil do que ela sabia de Portugal.

“O choque para mim foi que quando cheguei aqui as pessoas sabiam falar as gírias que eu falo, e eu ficava me perguntando: ‘Mas porque é que estas pessoas sabem que eu falo né, e eu não sei nada daqui?’”. Percebeu rapidamente que muito desse conhecimento tinha chegado a Portugal através das telenovelas brasileiras, da música brasileira. E aos poucos foi-se adaptando ao novo mundo que descobria.

“Vim com uma mentalidade muito aberta para entender a cultura local. Uma das minhas maiores amigas tinha, por coincidência, vindo morar para aqui um ano antes, e uma coisa que me fazia alguma confusão era como ela continuava se aborrecendo com a diferença de lógica. Tá perdendo seu tempo, né? Tá na casa dos outros e fica-se aborrecendo por causa de como os outros pensam? Pensei que tinha que fazer exactamente o oposto.”

O boneco Michelin

Os choques culturais continuaram. A primeira semana em Lisboa, para começar a preparar o Rock in Rio 2004, passou-a num hotel perto da zona de São Sebastião. “É uma sensação estranha porque a gente se sente muito estúpida. Queria comprar uma fita métrica, que a gente no Brasil chama de trena. Nada acontece ali ao fim-de-semana, e na única lojinha aberta a gente pedia uma trena, e o sujeito dizia ‘ãhh’? Aí a gente bloqueou e nunca mais tentou comprar. Até hoje não entendo como é que não percebemos que o El Corte Inglés era ali ao lado. Achávamos que estávamos no meio do nada.”

Comprou um mapa e pôs-se a explorar Lisboa a pé. Com o responsável pela engenharia do Rock in Rio, passou dias medindo com uma fita de nove metros (tinha dez inicialmente, mas “quebrou”) o Parque da Bela Vista, o local onde o festival ia acontecer, e aproveitando o resto do tempo para percorrer Lisboa a pé. Outro choque que teve foi com a alimentação. “Lá acaba por ser uma alimentação mais leve, se bem que não necessariamente mais saudável, tem mais sucos naturais, sanduíches, saladas. Aqui é comida a sério. E eu pensava ‘Como é que faço para comer assim todos os dias?’ Outra coisa que me chamou a atenção é que no Brasil está tudo identificado com a tabela das calorias, eu tinha o hábito de ler aquilo tudo, e aqui quando cheguei não tinha.” Tal como na publicidade, as garotas não tinham a “barriga de tanquinho”, toda delineada. “A gente vem do Brasil cheia da paranóia do exercício, a cultura do corpo no Rio vira uma doença. E é um alívio chegar aqui e não ter essa paranóia”, confessa, embora acrescente que não passa sem o paredão para correr, na linha de Cascais, onde vive.

E depois havia o frio, que não existe no Rio. “Carioca nem sabe o que é frio. Eu chegava aqui e botava 150 roupas, sentia-me o boneco da Michelin.”

Mas a pouco e pouco Lisboa ia-se entranhando, e, quase sem se dar conta, Roberta ia-se apaixonando pela cidade. Quando a Fugas lhe pede para escolher os locais preferidos, ela marca encontro junto da fonte da Praça do Império, frente ao Mosteiro dos Jerónimos. A escolha tem a ver com a sua geografia pessoal, que passa pelos grandes projectos que tem organizado desde que chegou. Belém é, para Roberta, o local da primeira Maior Árvore de Natal da Europa.

“Tenho fotos tão lindas aqui! O pessoal vinha parando desde lá atrás para ver a árvore. Tão bacana… A gente só não continuou aqui porque no ano seguinte tinha a largada do Dakar, que saiu daqui. A árvore tem que estar num local que tenha uma referência forte da cidade, porque é um elemento de promoção internacional”. Mudaram então para o Terreiro do Paço.

Depois da paragem para conversar ao abrigo do frio, no Piazza di Mare, onde Roberta bebe um guaraná, seguimos para o incontornável Parque da Bela Vista, em Marvila, onde as estruturas para o próximo Rock in Rio (de 25 de Maio a 1 de Junho) estão já a ser montadas.

Falamos das rotinas de Roberta em Lisboa, onde vive actualmente com o marido, Ricardo Acto, e com a filha, Lua, e da diferença entre a vida aqui e a que tinha no Brasil. No Rio, Roberta, filha de pai famoso, cresceu num condomínio dentro do qual existia tudo o que era necessário para a sua vida de criança: piscina, “um clube onde todo o mundo ia” e até a escola e os amigos. Hoje, quando está no Rio, vive também num condomínio na Barra da Tijuca. E porque é “muito caseira”, não sai assim tanto e não tem o hábito de frequentar a praia, a não ser para correr, mas isso tem que ser aí pelas 6h30.

Tem, no entanto, os seus sítios de eleição, claro: a lagoa Rodrigo de Freitas, onde chegou a fazer remo (“Não dá para descrever o paraíso de ver o sol caindo, ao final da tarde, no meio da lagoa, que fica dourada e num silêncio impressionante”), o Parque Lage, com o seu palacete à beira de um lago e aos pés do morro do Corcovado, o topo do luxuoso Hotel Fasano, em Ipanema.

Uma das principais diferenças entre a vida nas duas cidades é a relação com a segurança. “Só aqui, em Lisboa, percebi como a gente vive no Brasil em estado de alerta constante, que é um stress para o corpo, para a cabeça, que você nem percebe. Percebi que lá você está olhando para os lados o tempo todo. Aqui não, você pensa em segurança em alguns momentos específicos, mas não é um elemento do seu dia-a-dia. No Brasil é 24 horas, e isso é muito angustiante.”

Garota alfacinha

Se quando chegou a Portugal Roberta sofreu vários choques culturais, agora, que, para além de carioca, é também lisboeta, sofre choques quando regressa ao Rio. “O maior foi em relação às diferenças sociais. Aqui não tem isso. Lá a gente cresce se calejando. Aprende a lidar com aquilo. Uma pessoa que seja minimamente sensível não pode ficar bem naquela situação. A cena é: você dentro do carro comendo um sanduíche, no ar condicionado óptimo, vidro trancado, vem uma criancinha descalça e com fome e você tem medo dela. Isso é de uma incoerência e agressividade que não tem tamanho. Mas você aprende a não se sentir culpado.”

Optimista por natureza, sentiu apenas alguma tristeza ao ver como os portugueses mergulharam na crise. “A falta de alegria do português não está relacionada com a crise”, afirma. “O único problema que este país tem é pessimismo e baixa auto-estima. Não há outro. Bastava ter mais atitude, acreditar mais, querer construir…”. Diz que não sabe se é do peso do passado histórico “de um país que já dominou o mundo e ficou pequenininho”, mas sente que “as pessoas aqui estão sempre com a sensação de estar perdendo”.

Lisboa começou a mudar Roberta. Mas Roberta — com árvores de Natal gigantes e concertos com as maiores estrelas mundiais num parque que a cidade tinha esquecido — também está a mudar Lisboa. Foi em Outubro de 2005, quando voltou para fazer o segundo Rock in Rio Lisboa, que decidiu ficar. “Aí percebi que tinha voltado por opção.” A garota carioca era já um bocadinho alfacinha.

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