O aceno da manhã / Com as preces da água e o grito das gralhas e gaivotas / E o chocar dos barcos contra o muro emaranhado de redes / Para que de súbito me pusesse de pé / E descortinasse a imóvel cidade adormecida
O comboio lança um último suspiro e os passageiros enchem o cais de vida até que, de olhar perdido no cinzento do passeio ou no matiz de cobre de um céu ameaçador, todos eles envolvidos nas teias dos seus sonhos, cada um segue o seu rumo ao encontro da rotina diária na cidade que começa a despertar. Em poucos segundos, aquele frémito dá lugar à quietude e o silêncio, ainda que efémero, volta a abraçar a rua, concedendo-me serenidade para admirar, como um turista num museu, aquele quadro de cores vivas que tenho à minha frente, uns fartos caracóis que não cobrem umas orelhas proeminentes mas que emolduram uma expressão que teima em envolver-me com um olhar doce.
Solitário, apenas na companhia do estigma motivado pelas palavras de Dylan Thomas, o poeta nascido na ugly lovely city, parto à descoberta de Swansea sob a abóbada do mundo pintada de nuvens acasteladas, embrenhando-me pela, àquela hora, quase deserta High Street, em tempos a mais importante rua de comércio da cidade e actualmente alvo de um projecto de regeneração que envolve artistas locais. Na fachada de um prédio decrépito, um mural de cores vivas funciona como antecâmara para um conjunto de humildes casas em tons de pastel e, uma vez deixada para trás a Castle Street, em parte poupada pelos bombardeamentos durante a II Guerra Mundial, alcanço a Castle Square, dominada pelo seu castelo em ruínas. Erguido no século XIV, foi parcialmente destruído em 1648 por Oliver Cromwell, tenente-general enviado por Londres para colocar um ponto final na rebelião no sul de Gales e que, depois, se estendeu a outras zonas – um período que mais tarde justificou a designação de II Guerra Civil.
No outro extremo da aprazível praça, encimando árvores em flor e relva viçosa onde as mães dão liberdade aos filhos para brincar, um ecrã gigante mostra imagens de Abertawe – que significa “na foz do Tawe” -, como é conhecida em galês a cidade que Dylan Thomas me encorajou a não visitar na minha errância por um país com vastos motivos para ser percorrido. Mas, decidido a romper com essa imagem que se me plantava no cérebro e céptico em relação à ausência de estética de Swansea, avanço estimulado pelas promessas de abertura da cortina do céu. Lanço um olhar às casas sumptuosas em estilo Tudor (descendentes de galeses) que decoram um dos lados da Castle Square e, caminhando sem pressas, deixo que os meus passos me conduzam ao Dylan Thomas Centre, situado num imponente edifício em pedra, a curta distância das águas do rio Tawe.
- Dylan Thomas foi um grande escritor e o que mais admiro nele é a diversidade da sua obra, tendo em conta – não apenas mas também – a sua curta existência. Ele escreveu peças de teatro, poemas, contos e histórias infantis. E escreveu porque adorava escrever - e isso revela grande inspiração.
Katie Bowman, assistente do centro, conduz-me pelas salas que retratam a vida de Dylan Thomas, uma exposição que é um dos pontos altos do programa de comemoração do centenário do nascimento do poeta galês, e hesita quando lhe peço que escolha o seu poema preferido.
- Gosto de Do not go gentle, In my craft and sullen heart e Death shall have no dominion. Aprecio particularmente as imagens fortes que ele criou sobre a vida, o amor e a morte.
E a morte perderá o seu domínio / Nus, os homens mortos irão confundir-se / Com o homem no vento e na lua do poente; / Quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos / Nos seus pés e braços brilharão as estrelas
Na sala, na semipenumbra, passa um documentário baseado em testemunhos de muitos daqueles que se identificam com a vida e a obra de Dylan Thomas. Katie Bowman fica por momentos em silêncio, como se as suas palavras, embora elogiosas, pudessem ofender a memória do homem.
E a morte perderá o seu domínio / Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar / Não morrerão com a chegada do vento; / Ainda que, na roda da tortura, comecem / os tendões a ceder, jamais se partirão; / Entre as suas mãos será destruída a fé / e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento / Embora divididos eles manterão a sua unidade / E a morte perderá o seu domínio
Katie Bowman é uma grande entusiasta da divulgação do trabalho de Dylan Thomas e, a exemplo do que sucede com a maioria dos habitantes de Swansea, sente um enorme orgulho em falar do escritor.
- Verdadeiramente notável é a peça de rádio, Return Journey, na qual Dylan Thomas, enfatizando o carácter dramático, calcorreia a cidade após os bombardeamentos alemães durante a II Guerra Mundial. É a história de um homem desesperadamente à procura da sua infância e das ruas e dos prédios tal como eram antes de serem destruídos em apenas três dias.
Marina de cara lavada
Saio para a rua com a promessa de voltar mais tarde ao Dylan Thomas Centre, um espaço inaugurado em 1995, numa cerimónia que contou com a presença do antigo presidente norte-americano Jimmy Carter, grande fã de um escritor com um estilo muito pessoal, sempre focado na sonoridade das palavras e frequentemente visto como um sonhador solitário. “Dylan Thomas foi um dos maiores poetas do século passado e senti sempre uma grande afinidade com a sua poesia e literatura. Ao longo dos tempos, tenho vindo a defender a importância de se comemorar a sua vida e a sua obra.” Agora, Jimmy Carter pode ficar mais tranquilo: o Dylan Thomas Centre acaba de receber um donativo de cerca de um milhão de libras (aproximadamente um milhão e duzentos mil euros) proveniente da Heritage Lottery Fund, uma instituição que há dez anos apoia projectos em diferentes áreas em todo o Reino Unido – um total de 375 milhões de libras, qualquer coisa com 450 milhões de euros, anualmente.
Atravesso a elegante Sail Bridge, que liga as duas margens do Tawe, e detenho-me por instantes a contemplar uma pequena ilha onde, numa pequena casa em madeira, os patos gostam de se abrigar. A ponte, cujo projecto e construção não demorou mais de 18 meses, é hoje, com os seus 140 metros de comprimento, um verdadeiro ícone da cidade e o acesso privilegiado para transeuntes e ciclistas à renovada zona portuária, área residencial por excelência após um investimento total de 200 milhões de libras (240 milhões de euros) com o pomposo nome de Port Tawe Inovation Village. Se, 100 anos após o seu nascimento, alguma força divina devolvesse Dylan Thomas a Swansea, o escritor sentiria sérias dificuldades em reconhecer a cidade que o viu crescer em terna idade; e, ao mesmo tempo, tendo consciência de que nenhum outro motivo, a não ser a celebração de um ano especial para o poeta, me faria viandar pelas suas artérias, reconheço, humildemente e imbuído de um certo prazer, que a realidade é hoje bem diferente de um tempo em que ele, ébrio ou sóbrio (já lá vamos), a definia como ugly lovely city.
Um casal de idosos passeia-se de bicicleta, um jovem passeia-se a si próprio e a um bonito cão felpudo; não se ouve um único ruído de um carro e, agora que regresso à outra margem, utilizando desta feita a menos imponente Barrage Bridge, aberta ao público (a pé ou de bicicleta) desde 2003, tenho uma panorâmica ainda mais privilegiada sobre a marina, com a sua cara lavada e despontando no horizonte o LC2, um centro de lazer que terá custado qualquer coisa como 32 milhões de libras (cerca de 38 milhões de euros) e que inclui, entre outros divertimentos, piscinas com ondas, escorregas e até – primeiro no mundo – a prática de surf no seu interior, um investimento megalómano mas com as suas compensações: de acordo com o Steam (Scarborough Tourism Economic Activity Model), uma instituição que avalia o impacto do turismo na economia local, os turistas despenderam, em 2013, mais de 360 milhões de libras (430 milhões de euros) na baía de Swansea, um incremento de 4% face ao ano anterior e que resulta de um aumento (cerca de 200 mil) de visitantes em comparação com 2012 – em 2013 o número esteve muito próximo dos 4,5 milhões.
Escuto, à distância a que me encontro da baía, o marulho do mar; o sol, na sua timidez, espreita por entre o cinzento, quer anunciar um final de tarde radioso que não passará de uma promessa. Sento-me, por instantes, admirando os iates perfilados numa organização exemplar e leio para melhor compreender o poeta.
Na famosa luz desconhecida do grande e fabuloso Deus amado. / A treva é um caminho e a luz um lugar, / O céu que nunca existiu / Nem existirá jamais é sempre um verdadeiro / E, nesse espinhoso vazio, / Farto de amoras nos seus bosques, / Os mortos crescem para o seu júbilo / Ali, desnudo, ele erraria, / Com os espíritos da baía que se curva em ferradura.
Sinto a ansiedade de ver o mar, a baía em forma de ferradura, mas primeiro deparo-me com uma estátua, de costas para mim, um capitão imortalizado em Under Milkwood (um drama narrado na rádio e que mais tarde foi adaptado ao cinema, numa realização de Andrew Sinclair e tendo como actores principais Elizabeth Taylor e Richard Burton, o galês que sempre assumiu a sua simpatia por Dylan Thomas). É o Captain Cat, o velho capitão cego, uma das personagens mais carismáticas da peça, o homem que permanece sonhador na eterna recordação dos companheiros que o mar se encarregou de levar para nunca mais trazer e, mais grave, incapaz de esquecer a sua grande paixão, Rosie Probert, olhando através da moldura da janela tantos e tantos regressos que as águas jamais comtemplarão.
Pálida chuva sobre o porto que encolhia / E sobre o mar que humedecia a igreja do tamanho de um caracol / Com seus cornos através da névoa e do castelo / Encardido como as corujas / Mas todos os jardins / Da Primavera e do Verão floresciam nos contos fantásticos / Para além da divisa e sob a nuvem apinhada de cotovias / Ali podia maravilhar-me.
Museu no museu
E continuo, não maravilhado mas confortado, descobrindo os pequenos mundos do mundo de Dylan Thomas. No horizonte, a curta distância, uma ponte intransitável, em ferro, deixa ver, do outro lado das águas, o teatro do poeta, perpetuando a memória do homem, do artista enquanto metáfora. Sou obrigado, ainda que provido de prazer, a contornar parte do estuário, admirando, demoradamente, os barcos, uns mais novos, outros mais antigos, chocalhando docilmente ao sabor da ondulação. E, de volta à ponte, velha na sua decadência, já na outra margem, sento-me ao lado do poeta, da sua estátua, numa serenidade que jamais caracterizou a sua existência, tão feita de boémia, de loucura, tão ou mais preenchida de álcool (já lá vamos) do que a corrente de um rio caminhando até à sua foz. Na fachada do teatro, desde 1983 conhecido como Dylan Thomas Theatre – mas até 1979 Swansea Little Theatre –, murais apelativos convidam o visitante a embrenhar-se num espaço que reúne mais de uma centena de actores amadores e técnicos, todos eles voluntários e verdadeiros entusiastas do trabalho do galês, também caracterizado nas suas paredes exteriores já consumidas pelo tempo.
Volto a errar pelas docas, o sol teima em esconder-se e uma brisa convida-me a entrar no National Waterfront Museum, instalado num antigo armazém cuja construção remonta a 1901. É uma viagem por Swansea, pela sua história, com todo o impacto que teve nas suas gentes a industrialização, desde 1750 até aos nossos dias. No século XVIII, a cidade era um importante centro de fundição de aço (então conhecida como Copperopolis), beneficiando da sua localização e do acesso fácil ao longo do Canal de Bristol. Já no século XX, Swansea assiste ao declínio da sua indústria mas manteve algumas refinarias e pequenas fábricas, nada de significativo mas o suficiente para ser alvo da fúria da Luftwaffe, com bombardeamentos, em 1941, que transformaram a cidade em cinzas.
Deixo para trás o museu mas não tardo a fazer uma breve incursão num outro, a poucos minutos a pé, o emblemático Swansea Museum, com uma exibição permanente da vida e da obra de poetas nascidos nesta urbe com pouco mais de 230 mil habitantes. Em ano de centenário, Dylan Thomas assume o protagonismo no seu interior, com retratos fiéis dos seus tempos em Abertawe – o museu é tão antigo (fundado em 1834) que o poeta se refere a ele como “o museu que devia estar num museu”.
A baía de Swansea estende-se agora à minha frente e o cinzento do céu confere-lhe um certo misticismo. Mais para lá, recortando-se contra as nuvens, avisto Mumbles, erguendo-se tão próxima do mar e desde início do século XIX a praia eleita pelos locais nos meses de Verão, num tempo em que aqui chegavam as carruagens puxadas a cavalo do serviço do extinto Oystermouth Railway. No início destinadas ao transporte de carvão (só em 1913 foram exportadas 60 milhões de toneladas, colocando o porto de Swansea como um dos mais movimentados do mundo), foram mais tarde utilizadas pelos passageiros - um caso pioneiro -, transformando Mumbles num dos lugares mais concorridos da costa do sul de Gales. Gente famosa como Catherine Zeta-Jones ou Bonnie Tyler têm casas nas proximidades e Dylan Thomas era um dos grandes frequentadores de uma zona que inspira serenidade, ora ao lado de actores do Swansea Little Theatre ora (com mais regularidade) bebendo cerveja no Antelope, um pub que pouco ou nada mudou desde que o poeta era um dos seus melhores clientes.
A casa em Uplands
De volta a Swansea, da praia os olhos erguem-se até às suaves colinas, com as suas casas perfiladas numa organização exemplar. A subida é íngreme, exige algum esforço, mas revela-se compensadora quando, por momentos, me sento no tranquilo Cwmdonkin Park, bem ao lado de uma pedra que homenageia Dylan Thomas. Era aqui, por entre este manto verde, escutando o silêncio, que o escritor encontrava inspiração nos seus tempos de adolescente, tão próxima se situava a casa onde nasceu.
As cortinas são puxadas para o lado e a moldura da janela deixa ver um casal que sorri na minha direcção; foi precisamente nesse quarto, no número 5 de Cwmdonkin Drive, no subúrbio de Uplands, que nasceu, a 27 de Outubro de 1914, Dylan Thomas, por aqui se mantendo até completar 19 anos, numa altura em que já havia abandonado (três anos antes) a escola, à qual virava as costas com uma inusitada frequência por encontrar mais prazer na leitura. Sem qualquer distinção nos estudos, destacava-se pela sua facilidade de escrita, publicando inúmeros poemas no jornal da Swansea Grammar School, do qual se tornou editor pouco tempo antes do abandono precoce. Dylan Thomas iniciou então a sua experiência como repórter freelance no South Wales Daily Post e foi entre 1930 e 1934, ainda em Cwmdonkin Drive, que escreveu mais de metade dos seus 90 poemas publicados. O seu tempo livre era passado com os membros do grupo de teatro amador Swansea Little Theatre, no cinema em Uplands, em frequentes passeios pela baía de Swansea e, naquilo que acabou por se tornar um hábito, em muitos dos pubs espalhados pela cidade, ora nas proximidades do seu local de trabalho, em Castle Street, ora na sua área residencial.
- Um dos lugares que ele costumava frequentar era o Tavern, aqui em Uplands, que continua aberto ao público e é fácil de encontrar.
Dylan Thomas era um grande apreciador de cerveja, um boémio, um génio que facilmente mudava de humor e que, alegadamente, se aborrecia de morte ao fim de algum tempo com os seus amigos, entregando-se então à bebida com uma paixão ainda maior da que sentia pela escrita. “Penso que está alguém a aborrecer-me. E esse sou eu.”
Encontro, seguindo as indicações de Patricia Daly, o Tavern, e recordo as suas palavras sobre a vida turbulenta do escritor.
- A maior parte das pessoas identifica ou define Dylan Thomas como um bêbedo, um homem cheio de dívidas e com um final de vida em circunstâncias pouco claras. Ele é muito mais do que um alcoólico: é um verdadeiro bardo galês. É uma questão de humanidade em toda a sua fragilidade, porque ele era, de facto, um ser frágil. Ao contrário do que sempre demonstrou em público, Dylan Thomas era profundamente religioso. Mas sendo um bardo galês, essa forma de estar é intrínseca ao seu estado consciente. Faz parte do seu DNA. E é isso que faz dele grandioso.
O poeta incompreendido
Considerado ateísta, Dylan Thomas assemelha-se mais a um híbrido e são vários os documentos que dão razão à verdade de Patricia Daly. Em 1951, o poeta escrevia: “Estes são poemas em louvor a Deus de um homem que não acredita em Deus.” Jesus é uma figura que persistentemente ocupa espaço no seu trabalho, a mãe era uma mulher que frequentava a igreja diariamente mas nada impedia Dylan Thomas de expressar o seu aborrecimento perante a religião. Ao tio, reverendo David Rees, a quem ele chamava “reverendo de merda, piedosa fraude”, escreveu um dia: “Odeio-te desde a tua caspa até aos teus cornos.” O padre achava, por esse tempo, que o sobrinho deveria ser internado num manicómio.
Percorro o trajecto de volta, as gaivotas riscam o céu como um prenúncio de chuva, ao fundo, estendendo-se até ao horizonte, o mar confundindo-se com o tecto do mundo. As ideias de Patricia Daly fulguram no meu cérebro. Dylan Thomas – a quem Bob Dylan, aliás Robert Allen Zimmerman, roubou o nome - começou por fazer viagens pontuais a Londres mas acabaria por se instalar na capital inglesa, já com Caitlin Macnamara, com quem travara conhecimento quando a jovem loura, de olhos azuis e de descendência irlandesa, havia completado 22 anos – quatro após ter fugido de casa na esperança de fazer carreira como bailarina. O escritor gostava de comentar, no seu círculo de amigos, que dez minutos após ser apresentado a Caitlin Macnamara já os dois estavam na cama. Mas numa das cartas recentemente tornadas públicas, escrita à mulher e que pode ser apreciada no Dylan Thomas Centre, o escritor assume uma atitude mais vagarosa. “Querida Caitlin, amo-te para sempre mas o trabalho na BBC ocupa-me de tal forma que não tenho tempo de me deslocar ao banco, entre as 10 e as 15 horas, para te enviar um cheque.”
- Dylan Thomas era um poeta muito sensível que satirizava o seu povo mas de uma forma muito simpática. Ele amava Swansea e as suas gentes e, se tem permanecido em Gales, em vez de viajar para Londres, a sua vida teria sido bem melhor. Ao mesmo tempo, acho que Caitlin não lhe prestou qualquer favor ao longo da sua existência em comum.
Eu revejo o olhar de Patricia Daly subindo no céu, a dificuldade em esconder uma lágrima teimosa que a remete para a sua juventude, já lá vão mais de 50 anos.
- O poema Refusal to Mourn é um dos seus melhores. Quando o li pela primeira vez não fui capaz de conter as lágrimas. E lembro-me de que, na universidade, vários dos meus companheiros e companheiras se interrogavam: mas o que significa isto? Nessa altura, recordo-me bem, quase morria de pasmo. E sabe porquê? Porque todos eles estavam a tentar perceber o poema com a cabeça e não com a alma. Não tem de se perceber literalmente o significado de cada palavra. As palavras têm vida própria e, usadas em sequência, são como música para os ouvidos – e a música é compreendida através da alma e das emoções. A isto chama-se poesia. É galês, não é inglês. É celta.
Dylan Thomas, cuja obra é difícil de categorizar por nunca ter alinhado com qualquer grupo ou movimento literário, escreveu ou leu peças radiofónicas sempre em inglês (os pais eram bilingues e, enquanto criança, o poeta teve lições de galês por iniciativa do pai, David Thomas) e ao longo da sua juventude foi estimulado a melhorar a sua pronúncia inglesa. Patricia Daly continua a acompanhar-me, em espírito, enquanto passo por alguns dos pubs onde o poeta se sentava durante horas infindáveis, pelo No Sign Bar, na Wind Street, pelo Cross Keys e outros lugares hoje vocacionados para diferentes áreas de comércio.
- Ele era um galês perfeitamente consciente e orgulhoso da sua herança celta mas alguém que foi travado na sua vontade de aprender a língua do país – e mesmo conduzido a aulas para melhorar a sua locução em inglês. Mas basta olhar para o passado, para um tempo em que o galês era proibido nas escolas, para melhor se perceber que, sem o inglês, dificilmente um homem ou uma mulher galeses poderiam evoluir na vida.
As luzes tombam sobre a cidade, a noite cai rapidamente mas ainda lanço um derradeiro olhar ao enorme quadro do homem de caracóis, de orelhas fartas, com o seu laço e uma expressão afectuosa antes de entrar no comboio de regresso a Cardiff. Dylan Thomas, o génio, morreu em Nova Iorque e poucos dias antes do seu último suspiro terá declarado a um dos empregados do Hotel Chelsea: «Bebi 18 whiskies de enfiada. Penso que é um recorde.”
Ouço um silvo. O comboio parte, vagarosamente, deixando a ugly lovely city, para trás. E eu retenho palavras, palavras mágicas que, como dizia Patricia Daly, o corpo não percebe, como poucos terão percebido Dylan Thomas. Apenas a alma entende, as palavras e Dylan Thomas. E Swansea.
Não vás tão docilmente nessa noite linda; / Que a velhice arda e brade ao término do dia; / Clama, clama contra o apagar da luz que finda. /
GUIA PRÁTICO
Como ir
A easyJet voa entre Lisboa e Bristol por cerca de 140 euros (ida e volta) e, desde esta última, pode recorrer ao comboio para chegar a Swansea. Se evitar as horas de ponta, um bilhete (também de ida e volta) entre as duas cidades (percurso de cerca de duas horas) pode ser adquirido por 30 euros – vale a pena perder uns minutos visitando o website da First Great Western. Se preferir o autocarro, a Greyhound leva-o do aeroporto de Bristol a Swansea por apenas 12 euros. Como alternativa, a Vueling viaja de Lisboa para Cardiff, com uma escala em Barcelona, por aproximadamente 300 euros (valores que podem baixar drasticamente se adquirir a passagem com grande antecedência). Entre a capital galesa e Swansea, num trajecto que se cumpre em menos de uma hora, o bilhete de ida e volta custa menos de dez euros.
Quando ir
A melhor altura para visitar Gales é entre Junho e Agosto, quando o clima é mais temperado. Este último coincide com o período das férias escolares e a subida da temperatura acompanha a tendência da inflação. O período da Páscoa ou o mês de Setembro podem ser as melhores alternativas.
Onde comer
Para os românticos, recomenda-se o Chelsea Restaurant (pratos entre os 15 e os 30 euros), no 17 St. Mary’s Street mas o Didier & Stephanie, no 56 St. Helen Road, com o seu toque francês e um ambiente íntimo e relaxante, também merece uma visita, especialmente ao almoço quando os preços são mais em conta. Um pouco por todo o lado, alguns pubs e os típicos fish and chips são as opções mais baratas.
Onde dormir
Se é o luxo que procura, a melhor opção passa pelo Morgans, o primeiro boutique-hotel na cidade, num edifício sumptuoso que combina história com uma decoração contemporânea situado no coração da Swansea e a dois minutos do Dylan Thomas Centre. Os preços variam entre os 80 e os 300 euros mas o melhor mesmo é fazer uma pesquisa em www.morganhotel.co.uk. Para opções mais em conta, entre os 35 e os 45 euros, tem o Bayswater, o Ibis Swansea e a Beachcomber Guesthouse, sendo este último o mais central dos três.
Informações úteis
Os cidadãos portugueses apenas necessitam de passaporte para entrarem no país. Um euro equivale a 1,2 libras esterlinas.
Ao longo do ano, em Gales mas um pouco por todo o Reino Unido, sucedem-se as iniciativas culturais para homenagear o grande poeta nascido em Swansea, cidade que concentra a maior parte dos eventos, entre eles conferências, passeios pedestres, peças de teatro, óperas e festivais. Para obter toda a informação, nada melhor do que consultar o website oficial www.dylanthomas100.org.
A visitar
Não sendo Dylan Thomas um poeta mediático em Portugal (basta ver o número de publicações traduzidas para português), todos aqueles que desejarem conhecer um pouco mais da vida (curta) do escritor não devem limitar a sua visita a Swansea ou aos lugares descritos na peça principal. Com um pouco mais de tempo (e de paciência se utilizar transportes públicos), vale a pena espreitar as belezas de New Quay, na baía de Cardigan, para onde Dylan Thomas se mudou em Setembro de 1944, fugindo da guerra (no dia anterior à sua apresentação no quartel embebedou-se de tal forma que foi considerado incapaz para o serviço militar) e de Londres. Em New Quay, onde permaneceu até Maio de 1945, pagando uma libra por semana pelo aluguer da casa (mais um bungalow) hoje recriada e conhecida como Majoda, Dylan Thomas encontrou o refúgio perfeito para se inspirar na criação de Under Milkwood (entre outros trabalhos), na verdade a génese da aldeia ficcional a que dá o nome de Llareggub na referida peça.
Mas foi em Laugharne, uma vez mais no sul de Gales, que Dylan Thomas encontrou (se é que alguma vez o conseguiu) a sua verdadeira paz espiritual, na famosa Boat House (hoje transformada em museu), uma casa que adquiriu por 2500 libras, já com electricidade instalada. Dylan Thomas efectuou ainda algumas viagens aos Estados Unidos entre 1949 e 1953 mas Laugharne (pronuncia-se Larne) permanece como a sua última morada. Não muito longe da Boat House, erguida no cimo de uma colina, situava-se a Pelican House, casa que o poeta alugou para os seus pais – e onde o pai, para quem escreveu Do not go gentle, acabaria por morrer. Também os restos mortais de Dylan Thomas, falecido em 1953, repousam no cemitério de Laugharne -Talacharn em galês -, uma pequena localidade com menos de três mil habitantes (e um admirável castelo, mais tarde convertido em mansão) que o poeta definiu como “a vila mais estranha de Gales”. Mas era a Laugharne que Dylan Thomas sempre desejava voltar, especialmente para o conforto do pub do Brown’s Hotel, para beber uma ou três cervejas e atender uma outra chamada telefónica, nos intervalos de uma ou três cervejas.