A conversa flui, as caipirinhas circulam pela praia a tentar os banhistas e o vaivém de gente no calçadão de Ipanema continua, sôfrego e orgulhoso. Mas, de repente — e ao mesmo tempo calmamente —, o ruído transforma-se em sussurro e começamos a levantar-nos porque toda a gente o faz. Como suricatas com protector solar, a praia vira-se descontraidamente de lado para o mar, de costas para Copacabana. É um estranho ritual, este, e a seita apanhou-nos.
As cores começam a mudar e já lá estamos, naquele postal ilustrado que as convicções mais independentistas nos ensinaram a ingerir com uma dose de cinismo. A prática demonstrou impossível sê-lo na maior academia a céu aberto do Rio de Janeiro, e até os mais aplicados alunos, dedicados nos diferentes pontos numerados da praia aos desportos da zona, param tudo para ver o espectáculo. No Arpoador, não há cepticismo que resista a um cliché tão tropical quanto o de ver o pôr do sol carioca declinar o céu em todos os tons de pastel disponíveis de rosa e laranja. Hora mágica dos fotógrafos, postal turístico, a questão é que é mesmo bonito.
O culto tinha-se começado a posicionar uma meia hora antes, dezenas de pontinhos plantados na Pedra do Arpoador, no extremo de Ipanema, em busca da melhor vista para o pôr do sol de sábado num Outono só denunciado pela temperatura da água. E até percebemos que a coisa se estava a desenhar. Porque esta é de facto uma tradição, e uma tradição amplamente documentada, que normalmente acaba em palmas quando o sol desaparece por trás do Morros Dois Irmãos.
Não foi o caso, mas entre as centenas de pessoas lado a lado de pé na areia a diferença não se faz sentir. No Arpoador, o carioca Vicente de Paulo, fotógrafo de moda e viagens, que resume numa frase o que distingue o Rio: “Todo o mundo desce até à praia, tira a roupa e fica por aí.” Ali se resolvem os problemas, ali se ganham uns trocos extra a vender caipirinhas, ali se vêem os gringos e os locais. Brincadeiras, petiscos, imagens, famílias, trabalho, fome, abundância, está tudo ali.
O lusco-fusco lá acaba por completar a imagem da praia como caixa de ressonância da cidade. Esta é uma cidade que ama o seu corpo, e isso é espelhado no mar; e também é uma cidade que nos cativa, mas que nos atraiçoa no calçadão. O sábado no Arpoador foi o final de uma semana de Rio de Janeiro em que houve de tudo — nomeadamente pequenos soluços do seu lado lunar. Na Zona Sul, ir e vir da orla da praia foi também aprender a lidar com pequenas trapaças ou agitações, a ser enganado por um taxista ou vendo a polícia de sunga e alças deter um pequeno alegado assaltante em Copacabana. Numa cidade em mudança, há obras de saneamento no areal, há todos os problemas do Rio. E há a enorme praia urbana, em que ouvimos as buzinas, os pregões e as conversas do chapéu do lado, uma cidade a desaguar na areia e no mar.
E portanto, ficou anunciada a rendição ao cliché-postal. A saudação quase diária do Rio de Janeiro ao seu sol, ao seu mar, mas sobretudo à sua praia, talvez simbolize parte do magnetismo da cidade terrivelmente maravilhosa, que há que conhecer melhor. Naquele enésimo fim de tarde, declarou-se morte ao sol no Rio com a confiança de que ele se levantará, como a cidade faz sempre, para mais um dia. A atmosfera é de um endless summer sem factura ambiental. Curiosamente, no domingo começou a chover.
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