Fugas - Viagens

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O Príncipe é na terra e no mar, mas o progresso vem da lua

Por Joana Amaral Cardoso

Um bombom denso e quente que irrompe do Atlântico, mil sorrisos, sol, praias e roças. O paraíso é aqui, quase em cima do equador, e fala português. Agora, a mudança está a chegar à ilha mais pura de São Tomé: um milionário espacial quer que ela seja ainda mais verde e sustentável. Vem aí mais gente.

Estamos à beira do precipício, ribomba a trovoada pelo Golfo da Guiné e por ali abaixo até ao mar há rocha, coqueiros, areias virgens e memórias de escravos. O mar vai do verde-água ao azul cobalto, sempre cristalino, e recambia qualquer adulto empedernido à infância despreocupada. É vê-los, viajantes solitários, a correr até à água de sorriso rasgado, ou a deixar que o mar faça o seu vaivém enquanto os enrola na areia clara da praia Banana. Na ilha do Príncipe, a irmã mais pura de São Tomé, há duas partes, sempre verdes: “A floresta junto à praia é coqueiro, mais para dentro é eritrineira — dava sombra ao cacau.” O turismo e a colónia. A trovoada quente avança sobre nós depois de dias de sol reluzente. O tempo está a mudar. O Príncipe também.

David Carmo cresceu numa roça, as antigas explorações coloniais portuguesas que polvilham São Tomé e Príncipe, trabalha na hotelaria e é animador na capital do Príncipe, Santo António — sempre descrita como “a mais pequena cidade do mundo” pelos seus habitantes. No promontório, é ele, David em versão guia, que defende que parte da história do segundo mais pequeno país de África é contada pela sua paisagem. Há as praias de postal ilustrado — limpas e seguras, água tépida, coqueiros e caroceiros a bordejar a costa — e há o interior, um verde luxuriante total, menos exaurido do que o da ilha de São Tomé pelas plantações de cacau, café e outros produtos transportados pelos portugueses para o resto do mundo.

Pequeno país, pequena cidade… No Príncipe, o aeroporto é de facto pequeno. Por enquanto. A oferta hoteleira é mesmo um nicho. Por enquanto. A amplitude do clima também é estreita — ou está calor ou está calor, ou está muito húmido ou moderadamente húmido. Aqui e agora, tão perto do equador, está quase, quase a chover. A ilha que rebenta como um bombom verde do azul do Atlântico agradece. Nós corremos para o carro.

Embrenhamo-nos novamente nas estradas terracota ladeadas por floresta, deixando para trás a costa mordida por praias de areia cor de mel. Muitas dessas dentadas em forma de paraíso permanecem intocadas ou são habitadas por pequenas comunidades piscatórias, cheias de crianças a brincar na praia ou a mordiscar uma pata de caranguejo cozido, de porcos deitados à sombra do oblívio do seu futuro (o tacho), pescadores e suas mulheres a organizar as linhas nas pirogas que escavaram a partir da auto-explicativa árvore baptizada como Oca. Um punhado delas tem ou vai ter exploração turística estrangeira, e alguns dos moradores de sempre vão mudar de poiso para abrir caminho para os visitantes. No interior, o mesmo acontece com algumas roças, estruturas arquitectónicas tão importantes do património são tomense quanto as casas tradicionais, elevadas e de madeira, que pontuam a ilha — há roças habitadas por comunidades que cultivam a terra e que vivem ainda nas senzalas, há roças para turismo puro de pequeno-almoço incluído e há roças que complementam projectos de desenvolvimento turístico mais ambiciosos, assentes em ideais de sustentabilidade e responsabilidade social, como os da HBD.

O homem da lua

O céu continua tonitruante, uma pausa climática ideal para contar uma história enquanto não volta o sol.

Chegámos ao Príncipe do céu, forma mais segura de, depois de apenas seis horas de viagem directa de Lisboa, pisar este pedaço de terra e sorrisos (o barco não nos foi recomendado por ser pouco seguro e muito, muito demorado). Há cerca de dez anos, os destinos da ilha também foram decididos no céu. Era uma vez o “homem da lua”, como lhe chamam os principianos, o sul-africano Mark Shuttleworth, que aos 26 anos ficou milionário ao vender à VeriSign a sua empresa de certificação digital e segurança web. Menos de um ano depois de ter feito o negócio da sua vida, fundou a HBD, sigla para a mui romântica frase “here be dragons”, evocativa da exploração de territórios desconhecidos, e, como qualquer pessoa faria, marcou uma viagem. A dele foi ir ali num instantinho ao espaço.

Em 2002, tornou-se o primeiro africano na estação espacial internacional, conversou de lá com Nelson Mandela e pagou cerca de 20 milhões de euros pela aventura. Terá sido lá — reza a lenda, que Shuttleworth dá muito poucas entrevistas — que constatou que o planeta está demasiado marcado pelos erros dos seres humanos e que a HBD, uma incubadora de empresas e capital de risco, podia intervir numa pequena ilha chamada Príncipe. Que fica a meio caminho entre a sua África do Sul e a ilha de Man, no Reino Unido, onde reside, e cuja população pouco numerosa e modo de vida a salvaguardou de estragos ambientais de monta. Hoje é identificado sobretudo com o Ubuntu, o sistema operativo Linux baseado em código livre, mas em São Tomé e Príncipe o seu nome anda na boca de todos, do avião que nos devolve a Lisboa à pequena casa de Joaquim Pina, onde o artesão trabalha no varandim junto à estrada.

Também ele, que desenha rostos e animais na madeira aqui em Pincatê, a caminho da Roça de São Joaquim, nos fala do “homem da lua”. “Sou de família pobre, classe proletária”, sorri enquanto a faca golpeia a madeira. Lembra-se então de Shuttleworth, que até o foi visitar e que acabou por levar algumas peças para o seu resort na ponta norte da ilha, o Bom Bom. “É muito, muito simples, até estava assim”, diz, apontando para o fotógrafo da Fugas, “de calção”.

Talvez Joaquim Pina esperasse um Sr. Monopólio, monóculo grisalho, roupas e bigode empertigado, e não um homem de 40 anos que, uma vez por ano, vai ao Príncipe ver como estão os inúmeros projectos em curso e exasperar-se em busca de uma boa ligação à Internet. Um dos sítios onde ela existe mais frequentemente e onde algumas das peculiaridades da ilha são ultrapassadas é exactamente o seu Bom Bom Island Resort. Que é um pequeno pedaço de paraíso, não há volta a dar. A condizer com a ilha e suas gentes.

Duas praias idílicas vazias de gente e sons que não os que ali pertencem e um ilhéu na ponta onde as duas se encontram. É o Bom Bom que dá nome ao empreendimento e onde agora mora o bar e restaurante do resort, que só é acessível por uma ponte de madeira. De noite só se vêem estrelas e velas a tremeluzir — caminho suficiente para pensarmos, na era pós-reality shows, que seria uma desgraça que votassem para nos expulsar da ilha. Há duas dezenas de bungalows devidamente espaçados e com chuveiros exteriores, água purificada em garrafas de vidro ou de alumínio (eliminar o plástico numa ilha que importa todos os seus refrigerantes e que tem um problema de distribuição de água potável e afins é toda uma causa para a HBD), luz eléctrica 24 horas, em contraste com o resto da ilha que, funcionando a gerador, não tem electricidade das 24h às 6h. O kit de sobrevivência no primeiro e único hotel em África certificado como Biosphere Responsible Tourism, além de roupa de banho e leitura abundante, é dado à chegada: chave, lanterna recarregável sem pilhas e um apito caso seja preciso algo quando o sol se põe e o silêncio se instala. Não há pulseiras para stocks inesgotáveis de piña colada de pacote, não há animação forçada na piscina e a única música ambiente é dada pela espectacular fauna, dos guarda-rios azuis aos papagaios como a mascote Chaplin, passando pelos pequenos macacos que saltam, à saída do resort, para pontos mais discretos da floresta.

Noutra encarnação, o Bom Bom pertencia a outro estrangeiro e tinha uma aura de estância de pesca para os ricos e secretos. Foi comprado, juntamente com as suas praias, por Shuttleworth, que também adquiriu a Praia Grande única e exclusivamente para que sirva de santuário às tartarugas marinhas que desovam a poucos quilómetros de Santo António. Nos seus planos estão outras praias do Príncipe, pagando dezenas de milhares de euros por ano pela concessão ao governo regional para poder impedir a extracção de areias para construção que quase acaba com a costa (praia Uba) ou para lá instalar novos projectos turísticos de índole sustentável (praia Sundy, praia Boi).

Há ainda o curioso caso da fantasmagórica praia Macaco, onde há já bungalows uns em cima dos outros, camas ainda no interior, uma piscina de água estagnada e um restaurante comido pela vegetação galopante. Fornece uma das várias sensações à moda da série Perdidos que temos nesta ilha, e uma das mais desnorteantes. É tão bom, não foi?, este projecto de um português que acabou por morrer na praia e que, depois de ter sido comprado pela HBD, será demolido e tornado, em 2016, num hotel de 54 quartos (um por cada país africano). Só nestes projectos, entre concessões pagas anualmente e investimentos para remodelar o Bom Bom, construir novos hotéis ou manter a praia Grande um exclusivo para tartarugas, falamos de gastos que ultrapassam os 40 milhões de euros. Para já.

A marca Príncipe

No total, a ideia é que o Príncipe obtenha do seu principal empreendedor e investidor privado cerca de cem milhões de euros para criar qualquer coisa como uma “marca Príncipe” de sustentabilidade e respeito pela natureza. A mesma natureza que faz com que os cerca de 3000 habitantes da população activa não tenham emprego, mas não tenham propriamente fome. A terra e o mar são sinónimo de subsistência e, ao contrário dos principianos, são ricos.

Agora que a chuva já parou, a idosa dona Brázia sorri-nos no centro de Santo António. Por que é que quer que a Fugas a fotografe? Desarma-nos: “Porque quando for ver a foto, vai-se lembrar de mim.”

Aqui, ao contrário do que acontece em São Tomé, as crianças não pedem aos estrangeiros “doce-doce-doce”, uma cantilena que o turismo irresponsável criou num país em que a saúde básica não inclui consultas regulares de dentista. Quando pedem algo, o que é raro, é que lhes tiremos o retrato. Na roça de São Joaquim, sob um sol abrasador e com vista para o Pico do Papagaio e outras montanhas da ilha (sempre verdes, claro), uma mãe lembra, e bem, que o que faz falta, se queremos oferecer algo num país com uma taxa de natalidade tão elevada e tão pouco emprego, são cadernos e canetas para a escola — algumas das quais têm já professores pagos pela HBD para ensinar disciplinas-base para o futuro, como o inglês ou a matemática.

A empresa emprega 350 pessoas no Príncipe e, segundo Luís Cruz, responsável pelos recursos humanos da HBD, nos próximos três ou quatro anos e com os novos projectos, empregará ainda mais 120 a 140 trabalhadores. Um dos desafios, admite, é “criar uma ética profissional” numa população entregue ao sabor dos dias e, completa Fernando Barros, responsável da HBD para as operações no país africano, “despertar o empreendedorismo sem intervir de forma que prejudique a ilha”.

Enquanto parte da população vê o futuro como coisa para pensar amanhã e os viajantes chegam a conta-gotas ao Príncipe, em pequenos aviões a pequenos hotéis, há as outras obras que estão a mudar o Príncipe aos poucos, sempre com o dedo de Shuttleworth e sua equipa maioritariamente portuguesa no terreno. Do cargueiro que vai facilitar os transportes de mercadorias à extensão (pela Mota-Engil) da pista do aeroporto em 550 metros para poder passar a receber voos com máximo de 60 passageiros (ao invés das 18 pessoas que podem chegar ou voltar no único voo diário), que somam mais uns 20 milhões à conta do “homem da lua” no país.

Um número limitado de passageiros futuros, ainda assim, porque “esta ilha não tem estrutura para estarem aqui mil ou 1200 pessoas” de fora de uma só vez, frisa Fernando Barros, português que nasceu e viveu até aos 14 anos em São Tomé e que voltou há cerca de dois anos para trabalhar com a HBD. Contabiliza: com os novos projectos que deverão estar prontos nos próximos dois anos, vai “quadriplicar a capacidade da oferta” só da HBD na ilha, fora os restantes operadores (poucos, mas existentes e também activos na criação de uma oferta confortável). O objectivo é que “este projecto seja um case study, provar que é possível num ambiente como este intervir de uma forma equilibrada a 20, 25, 30 anos e que a ilha pode ser um projecto sustentável — e que as pessoas vivam desta intervenção”, diz.

Ilha do paraíso

É possível estar nas areias do Bom Bom ou nas águas imperdíveis da praia Banana e simplesmente desligar do mundo? É. Mas também é possível que, daqui a um par de anos, nesta ilha que é reserva mundial da biosfera da UNESCO desde 2012, as coisas estejam diferentes e seja possível desligar noutras condições. Que haja mais viajantes nas povoações, que haja mais restaurantes e não apenas exemplares tímidos como o Beira-Mar ou a Rosita em Santo António, que se possa até alugar um carro. E que a imensa juventude do Príncipe cresça numa ilha um pouco diferente.

Menos paraíso perdido, mas mais ligada. Ganhos e perdas. A esperança e o objectivo, diz quem lá trabalha agora, é mudar sem estragar. Depois de uma refeição de feijão da terra com peixe, arroz e banana-pão frita, o arquitecto português Francisco Plácido, experiente na construção sustentável em países em vias de desenvolvimento e a trabalhar com a HBD, resume o espírito da coisa numa frase: “Para não se tornar um local como aqueles em que muitas outras ilhas foram transformadas.” Que se mantenha o Salão de Beleza Lagartixa ou a barbearia e estúdio de gravação do DJ Fantasma, a roupa a secar sobre os arbustos floridos, a pesca de barracuda e peixe voador. Que se continuem a ver caranguejos a correr na floresta e cães a dormir placidamente sob os bancos na missa de domingo — e que se cantem ainda os Parabéns ao paroquiano aniversariante no fim.

Que, no fundo, a mudança seja tão bem enquadrada quanto aquela que já está em curso via wifi: a recente Internet gratuita na praça principal da cidade “tem um impacto um pouco maior para as pessoas” do que os turistas ou os estrangeiros que têm chegado, diz-nos o colombiano padre Sérgio. Ao cair da noite, é ver pequenas colmeias de jovens com telemóveis e portáteis a saltar entre o Facebook e o mundo, sentados nos bancos do jardim com o brilho branco dos ecrãs a iluminar-lhes as caras concentradas. Não havendo produção de vestuário na ilha, há modas que chegam pelo “fardo”, as doações que depois vestem a ilha com camisolas do Benfica ou com calções de banho devidamente descaídos para deixar ver a marca dos boxers escrita nos elásticos.

Um desses figurinos caminha pela praia Burra quando o sol se começava a inclinar sobre o mar depois de provarmos os ananases mais doces do planeta e de roermos polpa de coco, tudo directamente da árvore. Chegávamos à Burra, onde se lava a roupa no telheiro comunitário e onde os patos e as galinhas correm enquanto se cozinha o jantar. Há latrinas, não saneamento básico, e à sombra, junto ao mar, Chico está alheado dos planos que irão mudar a sua vizinhança. Ali vivem cerca de 200 pessoas, entre as quais muitas crianças, engenhosas, que fazem de duas laranjas, um graveto, linha de pesca e uma garrafa de óleo velha um carrinho disputado por todos. Chico está de roda do seu motor novo, aplicado na velha piroga. Amigos e família arranjam as redes, preparando-se para mais uma saída para a pesca. Todos nos perguntam se gostamos da sua ilha, orgulhosos. “Vem muito mais gente agora, mais turista.”

E virão mais, segundo o empresário holandês que inaugurou um hotel na antiga roça Belo Monte, junto ao promontório que dá acesso à perfeitinha praia Banana, e que prevê investir dez milhões de dólares para instalar chalés na praia Burra — e, depois, construir ainda villas para timesharing noutra zona do Príncipe. Tal como para os habitantes da praia Burra, na praia Sundy as coisas estão prestes a mudar. Ali vai nascer um espaço de glamping, campismo glamour em que 15 tendas especiais vão erguer-se num futuro resort que se quer que seja o primeiro carbono zero (sem pegada ambiental, quase sem poluentes) de África e onde as estrelas se vejam de tal forma desimpedidas de iluminação artificial que estejam ao nível de integrar a reserva Dark Sky da UNESCO. Para tudo isso, 14 famílias serão realojadas — tal como as que, por causa da extensão da pista do aeroporto, vão conhecer casas novas, de alvenaria e não de madeira como as que estão habituadas, e mais juntas entre si ao invés dos jardins de flores e bananeiras com que talham os seus quinhões de terra no paraíso.

As mudanças na Sundy e no Aeroporto foram dialogadas ao longo de largos meses e os papéis assinados para que a propriedade fique garantida para estas famílias, dizem-nos os responsáveis da HBD. As gentes da Sundy vão continuar a poder pescar nas suas águas de sempre, mas com estrangeiros, e obtiveram em troca do seu pedacinho de paraíso barcos, redes, equipamento de pesca, motores e casas que ficam mais próximas das escolas e hospitais. A bióloga Estrela Matilde, questionada sobre os prós e contras ambientais do progresso que traz barcos a motor e realojamentos, refere que todos os projectos da HBD “têm de garantir a sustentabilidade e a responsabilidade social”, frisando que o isolamento sanitário destas comunidades é pasto para “contaminações”, vendo vantagens nas mudanças em curso.

Há uma janela de tempo estreita, entre meses e poucos anos, para ver alguns destes pedaços de litoral mudar — saem pescadores, entram viajantes. O Governo regional acredita no turismo como potencial de desenvolvimento económico numa ilha de desemprego, poucas aspirações e muita calmaria. “Leve leve”, como se diz por aqui, na praia Abade ou na praia Campanha, por exemplo, não há planos de mexer com a vida de pescadores, rapazes e raparigas, crianças, gatos e quiosques de venda de bebidas. Toda a zona sul, de mata ainda mais densa e classificada como zona ecológica, é ainda vista como remota e por isso mesmo também não está nos planos conhecidos para o turismo.

Aqui, como em tantos países em vias de desenvolvimento brindados pela natureza por jóias turísticas do calibre das do Príncipe, o entusiasmo de quem planeia com um olho na sustentabilidade e outro na responsabilidade social quase abafa o cepticismo, que existe pontualmente, de quem teme alguma segregação entre os principianos e essa espécie genérica que são os “turistas” na sequência deste desenvolvimento da ilha.

Viajantes, não turistas

E o facto é que, se pudermos ser filosófos de bolso por uns segundos, neste momento o Príncipe é mais para viajantes e menos para turistas. Eles não se queixarão da ausência de souvenirs e de ementas plastificadas com bandeiras de várias nacionalidades, esses niveladores internacionais que parecem portos seguros mas que muitas vezes bloqueiam o sentido de aventura. E nada como a aventura de comer o que vem para a mesa sem se ter feito um pedido no restaurante de Rosita, junto ao antigo quartel da GNR durante o período colonial e que agora, no centro de Santo António, é ocupado pela rádio regional. Reaberto em 2013 depois de uma experiência falhada anos antes, o seu restaurante sobrevive porque há mais gente no Príncipe, confirma a cozinheira. Na sala com flores sempre frescas e panos africanos a decorar, toda a família ajuda a trazer banana-pão, banana-prata, matabala, peixe vermelho, arroz ou um caldo tão misterioso quanto saboroso de galinha e ervas que nunca conseguiríamos resumir em palavras.

Também o senhor Leandro, lá no cimo da sua colina escorregadia em dia de chuva tropical, faz mais negócio graças à presença dos “dragões do Príncipe”, como os descreve Luís Cruz, brincando com o nome da empresa de Shuttleworth. Cesteiro, Leandro faz também candeeiros e outras maravilhas com ramas que ele próprio, na casa dos 80 anos, vai buscar ao cimo das palmeiras. É vizinho da Roça Paciência, onde Manu e Francesca trabalham uma pequena escola de pedreiros e um laboratório de produtos naturais locais. Estamos mais uma vez nesse espaço desconfortável e confortavelmente reconhecível que é um terreiro, centro de uma roça em que sentimos familiaridade por ser uma edificação “à portuguesa”, mas que mete senzalas e secadores, história e carga de escravatura. Mas, agora, também é uma história de caras e aromas novos no Príncipe.

Manu, enérgico e entusiasmado, veio de Miranda do Douro para o Príncipe e trabalha nesta roça que no futuro será também ela hotel. Da mesma forma que rejeita com ironia brincalhona o romantismo dos visitantes que cantam a beleza do mato cerrado, da chuva quente e da humidade elástica, teme o lado negro do progresso e esse bicho imprevisível que é o homem. Na ilha dos 30 graus e 70% ou mais de humidade, os ciclos das estações do ano são substituídos pelas suspensões diárias de electricidade. O seu sotaque, já principiano, é o dos erres rolados, todo um amor pelo Príncipe. “É quase sussurrado, é um beijo no ouvido.”

Dentro da casa principal, a cozinha da italiana Francesca Orlandi tem saquinhos, cestas, caixas e frascos. Dedica-se à saborosa tarefa de incentivar os principianos a ultrapassar a fronteira da riqueza do que simplesmente brota da terra para explorar territórios de novas combinações, novos produtos num espaço que, “mais do que uma antiga estrutura colonial, é uma roça viva”.

Compotas de cajá-manga, maracujá e pimenta, óleo de coco extra virgem por extracção a frio, mel de cacau, geleia de cacau, farinha de banana, mel e pimenta preta ou esse sufixo que tudo faz parecer mais intenso: muesli tropical, pesto tropical, amêndoa tropical. Tudo para, num futuro próximo, servir nos restaurantes dos hotéis da HBD e depois talvez vender aos visitantes. “É mais uma forma de tornar o projecto turístico sustentável”, diz a italiana. Na roça com Francesca, a engenheira agro-industrial que sabe que se “a nível de produtividade nunca se vai poder competir em grandes volumes, então ficamo-nos na qualidade”. Retira dos frascos e saquinhos aquilo que juramos que seria um sucesso de vendas para estrangeiros e uma possibilidade de receitas para principianos. A ideia é que os que estão a trabalhar agora com Francesca se tornem formadores e assim por diante, “para que depois consigam investir no que a terra pode garantir”.

Descobrir

Rita Nunes, antropóloga, veio pela primeira vez em Agosto de 2011 fazer levantamento para a tese de mestrado sobre o Auto de Floripes. Agora trabalha para a HBD na recolha das histórias das gentes do Príncipe, primeiro na Roça Paciência, agora e sempre que pode, muitos dias da semana, para a Sundy. Regista-lhes as histórias de vida, as receitas, as mezinhas, as práticas, e sonha fazer um museu com a maquinaria e histórias desta Roça que pareceria uma pequena aldeia portuguesa, com as cavalariças kitsch acasteladas e a capelinha tipo ermida alentejana ao fundo do terreiro, não fossem as lúgubres senzalas, onde ainda hoje vivem cerca de 300 pessoas.

“Vem aí branco!”, diz, gozona, uma mulher à criança que segura à entrada da senzala, alegrada pela simpatia de quem lá vive. Depois de provarmos as açucrinhas e as aranhas no Cantinho da Amizade, delícias coloridas de coco e açúcar, Rita explica que aqui mora “uma versão da história” da ilha, das roças, do país e da era colonial. Quase só se fala crioulo, graças à imigração forçada de cabo-verdianos para o Príncipe, mas há sempre o português nas bocas daqueles a quem “continua a faltar acessos, educação, alimentação”, mas que não vivem com fome não só porque a terra é fértil, mas também porque a Sundy “é uma grande família”.

Parte de uma viagem a São Tomé e Príncipe é ouvir falar das roças, do seu estado de abandono ou da sua ocupação com projectos ligados ao turismo ou, por exemplo, ao chocolate, como fez o italiano Claudio Corallo no Terreiro Velho. Na Sundy, que tem um dos maiores terrenos de roças e que se debruça para a praia lá em baixo, ambos concessionados à HBD, há algo de diferente em comparação com outras roças, diz a antropóloga. A casa grande, onde foi provada a Teoria da Relatividade de Einstein com o eclipse de 29 de Maio de 1919, “é uma das poucas inteiras”. “Teve sempre senhoras a limpar, tem um guarda, o Presidente ficava lá.” Tudo porque “há uma carga em termos simbólicos na Sundy”, “para lá do valor atribuído materialmente”. A HBD reabilitou os balneários e as lavandarias da senzala, criou uma creche e Rita espera agora que a empresa dê luz verde à musealização e preservação da maquinaria da Sundy. Este é um lugar especial, pelas pessoas e jogos da bola que ocupam o terreiro, e que ganhará novo ar com as obras que a HBD também está a financiar de recuperação da casa, coordenadas pelo arquitecto português Duarte Pape, um dos autores de As Roças de São Tomé e Príncipe, lançado em 2013 com um alerta sobre a necessidade de conservar este edificado. É um fantasma do passado com vista para o Golfo da Guiné e molhos de revistas sobre o cacau ou café “português” da era de um império colapsado.

O Príncipe não é uma ilha qualquer, um desses paraísos há muito nada perdidos e prontos para tudo o que o turista quiser. É uma ilha para descobrir como se fôssemos quase os primeiros, mas que tem a sua própria história – que faz parte da viagem.

E se há quem saiba as histórias contadas por cada planta, sugeridas por cada trilho na terra vermelha ou música no ar, é o filho de um ex-capataz da Sundy, Cau, aliás Carlos Marx, guia turístico que agora trabalha em São Tomé mas que veio apresentar-nos a sua ilha natal. “São Tomé não é só cacau e café. É natureza, é as roças, mas é sobretudo as pessoas”, postula. Seja numa praia idílica, a bordo de um barco chamado Corvina ou nas estradas da ilha, são elas os melhores embaixadores do Príncipe.

Uma ilha sem criminalidade e com muito futebol, com uma única máquina de levantamento de dinheiro que só serve os bancos locais, onde a malária está quase erradicada e as flores e árvores não cessam de espantar. Uma ilha onde umas férias podem ser uma semana de puro deleite numa água de temperatura tão ideal quanto a visibilidade para os peixes, polvos, crustáceos e coral que por ali vivem, uma sequência de caminhadas e escaladas ou um mergulho nas marcas do passado colonial. Ou um misto disso com uma experiência de aprendizagem sobre, mais do que uma cultura, um modo de vida.

“Leve leve”, dizem eles em São Tomé. Quando a cada pessoa que passa se diz olá e se acena com naturalidade, quando se pede que quem venha seja mais viajante que turista, responsabilizando-se pelo seu lixo ou pela sua pegada e respeitando os príncipes que são os verdadeiros donos da ilha, a expressão parece bem mais desta pequena grande ilha de 7400 pessoas (no país, são 780 mil).

É que aqui vêem-se mesmo estrelas. E planetas. Dizem-nos, naquela poética passadeira que liga o ilhéu Bom Bom ao resort acoplado, que às vezes a lua é tão brilhante e grande que parece o sol. Passados alguns dias, directamente das águas que banham o equador, confirma-se. Para a despedida, a lua preparou um espectáculo que distribuiu luz sobre o oceano cálido e pôs tudo em perspectiva. Afinal, no meio do Atlântico, a noite é tão bela quanto o dia.

GUIA PRÁTICO

Como ir
A partir de 1 de Julho, a TAP voa em aparelho próprio três vezes por semana para São Tomé mas com escala em Acra, no Gana. Serão 400 lugares por semana contra os 197 lugares actuais com saídas às segundas, quartas e sábados às 11h45 e regresso nos mesmos dias durante a noite. A TAP ainda não forneceu preçário para este incremento na rota, sendo que os preços do voo único semanal rondam os 700 euros.

Para chegar ao Príncipe, espera-o um novo voo num pequeno avião de 18 lugares que parte do mesmo aeroporto de São Tomé todos os dias às 9h. Atenção que há limite de peso da bagagem neste voo interno — 15 kgs é o máximo autorizado, mas depende depois da lotação do aparelho. O custo destes voos é de cerca de 170 euros, ida e volta.

Quando ir
São Tomé e Príncipe tem um clima tropical húmido e as temperaturas oscilam normalmente entre as mínimas de 21/23º e máximas de 27/28º, mas com a elevada humidade a sensação de calor é um pouco maior. A chuva é frequente mas não demasiado condicionante e o ilhéu Bom Bom é um dos pontos no Príncipe onde é menos sentida.

Onde dormir
A HBD gere para já dois hotéis no país: o Omali Lodge Boutique Hotel, em São Tomé e bem perto do aeroporto e do centro da capital, que normalmente serve de poiso por uma noite antes ou depois da viagem para o Príncipe. Tarifas a partir de 135 euros/noite com pequeno-almoço para o Verão.

Na ilha do Príncipe, a jóia da coroa é o Bom Bom Island Resort com as suas 20 cabanas frente ao mar, piscina ou ilhéu e que têm preços distintos conforme a tipologia. Tarifas a partir de 200 euros/noite meia-pensão para o Verão.

Bom Bom Island Resort
www.bombomprincipe.com
Tel.: + 239 225 11 14
reservations@bombomprincipe.com

Omali Lodge Boutique Hotel
Tel.:+239 222 2479 / 2350
www.omalilodge.com
reservations@omalilodge.com

Vários operadores portugueses trabalham com a HBD e seus hóteis, como é o caso da Soltrópico, que tem pacotes desde 1350 euros por oito noites, com estadias em São Tomé e no Príncipe e voos incluídos.

O que levar
É aconselhável recorrer à consulta do viajante antes da ida para São Tomé para verificar se tem a vacinação necessária antes da partida. A embaixada de São Tomé informou recentemente que a vacina da febre amarela já não é obrigatória para residentes na Europa, excepto se tiverem visitado outro país africano nos três meses antes da ida. É também aconselhado fazer a profilaxia preventiva da malária, embora esta esteja prestes a ser declarada como erradicada na ilha do Príncipe. Em www.portaldasaude.pt pode encontrar os centros de vacinação e consultas do viajante mais próximos da sua área de residência.

O clima pede roupas leves, protecção solar e ao final da tarde o uso de repelente para evitar picadelas de mosquitos.

Se quiser levar ofertas, é mais adequado material escolar.

A Fugas viajou a convite da HBD

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