Fugas - Viagens

Os jovens, os resorts e a foice

Por Amílcar Correia

Há um novo país no Vietname. O país dos jovens — mais de metade da população tem menos de 25 anos — e o país do turismo — a nova indústria cresce e multiplica-se com rapidez asiática. Esse país não fica nem no Norte nem no Sul, que é a mesma coisa que pronunciar Hanói e Ho Chi Minh. Fica no centro. Em Na Dong, Hué, Hoi Na e Nha Trang.

Grace, aos 25 anos, tem uma ambição maior do que a idade. Tiên também tem 25 anos e é um hedonista compulsivo. Hoang Thuy Trang (Grace para facilitar as coisas) é relações públicas do Intercontinental de Da Nang e podem apostar que um dia destes estará a trabalhar num outro grande hotel da Europa ou da Ásia. Tiên, chef no An’s Café, numa das transversais da marginal da terceira cidade do Vietname, só faz planos, para já, em cada uma das noites de diversão no Golden Pine, um bar com vista para o rio Han.

Grace faz parte de uma geração sem traumas, nascida após o final da guerra, e que olha sem ressentimento para a celebração das principais datas históricas da República Socialista do Vietname. Ou será uma geração sem memória? “A guerra civil [entre Norte e Sul do país] foi uma disputa pelo poder.” Quanto à guerra do Vietname”, reparem na graciosa diplomacia, “depende da perspectiva: eles dizem ‘a guerra do Vietname’, nós dizemos a guerra contra os americanos”. O Viêt Nam News, um diário em inglês, a despeito disso, continua a relembrar na sua coluna Today in History, o nascimento de Karl Marx a 5 de Maio de 1818 ou o nascimento do revolucionário Phan Dang Luu, um dos primeiros líderes do partido comunista vietnamita, capturado e morto pelos franceses em 1902. E o Estado celebra os 60 anos da vitória sobre o poder colonial francês em Diên Biên Phu, uma contagem decrescente para os 40 anos da vitória sobre o exército americano, uma efeméride à qual o poder vietnamita dispensará a devida atenção no próximo ano. “Não é que não nos interessemos. O que não queremos é passar muito tempo a pensar nisso; queremos aproveitar a vida”, resume Grace.

É o que faz Tiên, com os amigos e colegas de trabalho, nos bares tonitruantes de música ao vivo da Rua Bach Dang. Aqui, num pequeno amontoado de bares e esplanadas de estilo ocidental, um cantor versátil, de gorro enfiado, solta versões de Bryan Adams, Rihanna, Scorpions e por aí fora. Até cantar Let it Be, metáfora da fatalidade: “Um país, dois sistemas”. Cá fora, nas esplanadas, vendedores de rua aproximam-se de motociclo, bicicleta ou a pé e propagam os seus legumes, batatas, fruta, lenços de papel. Raparigas vestidas de branco, de calções tão curtos quanto justos, vendem tabaco avulso aos clientes. A noite acaba com kuduro, numa pista de transpiração de jovens locais e turistas europeus, numa dança descarada e licenciosa.

Mais de metade dos 90 milhões de habitantes do país mais oriental da península do Sudeste Asiático tem a idade de Grace e de Tiên. É a idade dos funcionários dos serviços de fronteiras ou do aeroporto; é a idade de quem trabalha na indústria do turismo, nos hotéis ainda pintados de fresco. É a idade de toda gente. É preciso ir a Hoi An para encontrar vietnamitas mais idosos, sobretudo de origem chinesa, e vítimas da guerra, das minas ou do repugnante agente amarelo, que ensaiam a sobrevivência a vender a turistas o Viêt Nam News. “Um dos principais aspectos do novo Vietname era a sua compaixão, a sua ausência de má vontade ou de recriminação. Culpar, queixar-se e procurar piedade são traços fracos na cultura vietnamita; a vingança é um desperdício. Ganharam a guerra contra nós porque foram tenazes, unidos e engenhosos e também era assim que estavam a construir a sua economia”, escreveu o norte-americano Paul Theroux em Comboio-Fantasma para o Oriente. Mais concentrado no seu desenvolvimento económico e oferta turística do que em regressar às cicatrizes da guerra que o cinema eternizou no imaginário ocidental, o Vietname é, literalmente, um país novo. Por duas ordens de razões: esta, a populacional, e a outra, a tenaz, emergente e galopante indústria do turismo.

 

A terceira região

Nos últimos anos, na costa do centro do país, hotéis e resorts cresceram sem parar — e tão cedo o crescimento não vai abrandar. A região assiste a um irreprimível investimento em infra-estruturas hoteleiras, para clientelas diferentes, claro, mas com um investimento avultado no segmento dos resorts de cinco estrelas, alguns dos quais internacionalmente premiados. Os resorts situam-se em ilhas ou penínsulas — alguns têm funicular ou teleférico, canais e barcos, piscinas e mais piscinas, spa, tudo o que se quiser —, são grandiosos ou elegantemente discretos e em locais de uma beleza única. Encostam-se uns aos outros ao longo de quilómetros de costa. As praias, com as suas baías, são irresistíveis, o calor é uma constante, a humidade também. O Vietname voltou-se para o mar do Sul da China.

Cidades como Da Nang ou Nha Trang, mais a Sul, semearam as suas torres, flamejantes durante a noite, ao longo das marginais, baías de água resplandecentes, numa tentativa de se transformarem em pequenas Xangais. Fora dos principais perímetros urbanos, os resorts tomaram conta das praias — a costa do país tem 3400 quilómetros de extensão —, numa sucessão ininterrupta e diversificada de edifícios, a fazer lembrar destinos de praia como Bali, a costa tailandesa ou mesmo as Seychelles. Fora delas, cidades antigas como Hué ou Hoi An são destinos que permitem saltar do areal para a história que a guerra do Vietname não arrasou.

Como bem sabem, o Vietname é um país historicamente dividido entre Norte e Sul, quer por via da influência chinesa quer por via da influência indiana, o que resulta num curioso potpourri cultural e religioso. O que fez a sangrante dicotomia da guerra fria foi dividir o país a meio durante 20 anos: a reunificação só chegou em 1975 após a traumática saída de Saigão (hoje Ho Chi Minh) dos últimos norte-americanos e da derrota do exército do Sul. Hoje, podemos dizer que o país já não vive desse confronto entre Norte e Sul, que é a mesma coisa que pronunciar Hanói e Ho Chi Minh, com a fronteira a meio: a chamada DMZ, a zona desmilitarizada, que dividiu, de facto, este país entre 1954 e 1975. Se existe dicotomia, essa, agora, é outra: cerca de 70% dos 90 milhões de habitantes vive em zonas do interior do país, o que constitui uma das taxas mais elevadas de densidade populacional rural no sudeste asiático. Os rendimentos médios mensais oscilam entre os 73 dólares nas cidades e os 21 no campo, o que atesta bem o fosso entre o meio urbano e o rural.

“As pessoas pensam que o Vietname é do Norte para o Sul e do Sul para o Norte. Era assim, é verdade, mas há 20 anos. Hoje, não”. “Hoje”, explica Louk Lennaerts, da Center Cost Vietnam (CCV), “este é um país muito diferente”. A CCV reúne os estabelecimentos de hotelaria, com a colaboração da Vietnam Airlines, que comprou novos Boeing e Airbus para aumentar as ligações à Europa, Hong-Kong, Coreia do Sul, Singapura e Japão, num só objectivo: promover esta região do país como turismo alternativo às praias de Bali, na Indonésia, e às praias da Tailândia, tirando partido dos seus novos aeroportos internacionais e da conformidade política. O Vietname é o destino de praia mais próximo da China, um importante mercado para as ambições dos hoteleiros, mas a estratégia não passa pela aposta única nesse mercado de novos multimilionários. A costa central vietnamita quer uma clientela geográfica e culturalmente diversificada. “A nossa estratégia”, diz ainda Louk Lennaerts, “é desenvolver o triângulo Na Dang, Hué, Hoi An”.

Sérgio Arias, um brasileiro de 32 anos que um dia saiu de Teresina, em Fortaleza, para aprender inglês em Londres e nunca mais voltou, a não ser em férias, corrobora: “O centro é uma terceira região.” Arias, gerente executivo do La Résidence, um hotel de arte déco instalado na residência do governador francês na antiga colónia do Sudeste asiático, diz, a propósito da cidade de Hué, que a hotelaria deve ser um “importante sector de emprego para uma nova geração vietnamita” pós-colonização e sem o stress de guerra pós-traumático, que tão visível é do outro lado da fronteira, no Camboja.

 

Turismo e estabilidade

A Ásia move-se no equilíbrio seguro das duas rodas (dos motociclos e bicicletas que enchem as largas e novas avenidas); o Vietname pedala entre o “estado socialista” e o turismo. Os dois convivem com a burocracia indispensável, de proveitos satisfatórios para ambos. O que não é inédito ou singular. As análises mais correntes sobre o actual estado de desenvolvimento e conjuntura política terminam na conclusão de que “não há alternativa” ao turismo, num país pouco ou nada industrializado e com áreas rurais pauperizadas, e que o Vietname tem uma estabilidade política e social que outros países da região não podem oferecer, entre eles a Tailândia (objecto de um golpe militar na sequência de meses de instabilidade política).

Como serão as relações entre o socialismo e o turismo quando, e se, o Vietname se tornar num popular destino turístico? No Viêt Nam News, há quem peça, ou sugira, reformas: “Uma reforma institucional, na minha opinião, tem a ver com o estabelecimento e ajustamento de regulações oficiais para transitar de uma economia de planeamento centralizado para uma economia de mercado”, defende Nguyen Dinh Cung, director do Instituto Central de Gestão Económica. Tran Du Lich, deputado da Assembleia Nacional, monopartidária, observa que o estado, numa economia de mercado, não precisa de aumentar o papel da sociedade civil e que o Vietname precisa de focar a sua administração no serviço público e não na gestão: a criação de “organizações que prestem serviço público”. Cung acredita que organizações que prestem serviços não lucrativos em áreas como a educação, cultura, saúde, justiça (consultadoria), extensão agrícola, seriam um “benefício para a sociedade como um todo”. Há, também, quem ache que artigos como estes são incursões mais ou menos ficcionais no domínio da liberdade de expressão. E quem os atribua à Doi moi, uma espécie de versão vietnamita da Perestroika, que abriu o país ao investimento estrangeiro e que explica em grande parte o entusiasmo e o optimismo que se vive no país. Para percebermos melhor a razão do optimismo, recuemos a 1985 e aos primórdios da economia centralizada. Diz o Banco Mundial que, nesses anos pós-guerra, o Vietname vivia com cerca de 80%  de pobres — a percentagem actual é de 15 — e com uma inflação de 775%.

Não há indústrias inócuas e esta, seguramente, não o é em vários campos. Mas é o turismo que faz o país andar de um lado para o outro, que trouxe Grace do Dakota do Norte para um hotel em Na Dang e que anima Tiên todas as noites. E não restam dúvidas que esta é a grande indústria do país. Os números falam por si: o Vietname saltou de apenas 10 mil turistas estrangeiros em 1993 para mais de cinco milhões em 2010. Acresce que os vietnamitas também começaram a fazer turismo no seu próprio país…

Por enquanto, como diz Louk Lennaerts, com um sorriso franco, hoje vive-se melhor: “Aqui entre nós, as praias são boas, o tempo é fantástico, existem campos de golfe, património histórico e umas raparigas para dançar.” Como se canta na Bach Dang: Let it Be.

A Fugas viajou a convite da Vietnam Airlines e da Across

 

Estas cidades desenham um triângulo no novo país

 

Da Nang, a giratória

Logo pela manhã, há uma película húmida a ocultar o calor. Densa e opaca, também esconde o amanhecer e protege os desportistas que fazem ginástica, jogging ou os praticantes de ioga nas ruas ou nas praias de Van Dong e My Khe. Quando forem 8h, até o horizonte transpirará com o calor que se anuncia. Com uma população em rápido crescimento, Da Nang tem aproximadamente um milhão de habitantes e pelas suas avenidas traçadas a regra e esquadro, resquícios de boulevards de inspiração colonial francesa, há um trânsito constante com condutores e penduras protegidos de máscara, mesmo que não exista qualquer possível comparação entre estes níveis de poluição e os de Pequim.

À imagem e semelhança do resto do continente, estas cidades não foram feitas para serem percorridas a pé, mas sim para serem cruzadas, apressadamente, em duas rodas. Ladeando as avenidas, despidos de paredes, há restaurantes de formalidade variegada, abertos ao calor e à humidade, oficinas de reparação de veículos, lojas de vendas de motociclos (o grande desporto nacional), algum comércio informal, alguém que cozinha e serve a comida na própria rua. No Blue Whale, um restaurante escancarado ao balanço do mar, houve-se um Bésame Mucho, com xilofone tímido a acompanhar, e poderíamos estar em Cuba. Mas não estamos.

A dourada e iluminada ponte do Dragão nega-o, os edifícios esguios, de três a quatro andares, também. E as torres de hotéis idem idem, aspas aspas. Para não falar na quantidade de modelos Yamaha e Suzuki que circulam de um lado para o outro, dando a sensação de que os seus condutores apenas pretendem arrefecer a temperatura corporal ou, simplesmente, passar o tempo. Talvez se deva a essa necessidade de circular a quase inexistência de semáforos, que cabem numa só mão.

“Aqui vai ser um resort, e a seguir também.” Esta é uma expressão frequente quando se conversa com alguém sobre o presente e futuro de Da Nang. O seu novo aeroporto é a placa giratória que distribui os visitantes pela febril oferta turística que se espraia ao longo de uma costa recortada, repleta de recantos. Hoje, existem tantos hotéis como marines norte-americanos em 1965 — era aqui que se concentrava o maior corpo do exército. Era na praia da China, bem perto da cidade, que os militares relaxavam. “Era uma região [Da Nang] sinistra de bases de abastecimento que foi tomada por forças do exército vietnamita e ocupantes; abrigos — cabanas e telheiros — feitos exclusivamente com materiais de guerra, sacos de areia, plásticos, chapa ondulada com a marca EXÉRCITO DOS E.U. e embalagens de produtos alimentares com as iniciais de agências humanitárias. Da Nang foi empurrada para junto do mar e todo o terreno que a rodeava tinha sido despido de árvores. Se havia lugar que parecia ter sido envenenado era Da Nang”.

A cidade descrita por Paul Theroux em O Grande Bazar Ferroviário, publicado em 1975, já não existe e ninguém se lembra dela. As árvores, vaporizadas pela teimosa humidade, voltaram. A montanha do Macaco e as montanhas de Mármore (de onde saiu o mármore para o túmulo do líder vietcongue Ho Chi Minh) são alternativas ao programa de praia. Mais: o museu Cham, um grupo étnico que teve preponderância política enorme, mas que hoje está condenado a uma minoria, e o templo de Cao Dai. A cidade é também a melhor forma de chegar às históricas Hué e Hoi An

 

Hué, a imperial

Ao longo da estrada N.º1 — conhecida durante a guerra como a “estrada sem alegria” —, o mesmo cenário: a silhueta das montanhas verdejantes, a linha de comboio, com as suas pontes de ferro em azul-turquesa esbranquiçado, uma fileira de casas e estabelecimentos comerciais, alfaiates e pronto-a-vestir, cemitérios, pequenos pagodes ou altares dedicados ao culto dos antepassados ou a omnipresença de edifícios públicos com a bandeira nacional (a estrela amarela sob fundo vermelho) e a foice e o martelo da bandeira do partido comunista. Nos intervalos, os arrozais estendem-se até aos sopés das montanhas (o arroz é colocado a secar na estrada, de forma metódica) e os chapéus cónicos, tradicionais no país, destacam-se neste cenário que desafia as glândulas sudoríparas. O calor mantém as portas abertas, o comércio sem portas também se mantém aberto, as galinhas passeiam pelos solavancos da terra.

Da Nang sempre foi a melhor forma de se atingir Hué. Quando esta se tornou, entre 1802 e 1945, a capital vietnamita, Da Nang já era o local de chegada das delegações internacionais que se dirigiam à corte (cortesia do The Rough Guide to Vietnam). A dinastia Nguyen, fundada por Gia Long, construiu a sua cidade imperial de Hué no centro do país para que ele se unisse. Gia Long foi ajudado pelos franceses na ascensão ao trono, mas a sua recusa na atribuição de concessões comerciais não lhe terá sido muito benéfica. De inspiração confuciana e construída por engenheiros chineses, a cidade imperial é uma manifestação tardia de mimetismo da congénere da capital chinesa. Grande parte da cidade imperial foi destruída pela guerra, mas os edifícios estão a ser recuperados, e nem sempre da melhor maneira, com o recurso à sua reconstituição digital. A sua organização localiza a cidade proibida no centro, reserva os habituais pavilhões para a mãe e família do imperador, para o tesouro real ou para a guarda imperial e demais edifícios civis.

A sua importância histórica, marcadamente aristocrática, também se reflecte nos vários mausoléus reais da dinastia Nguyen situados num vale próximo do rio Perfume, um arremedo muito singelo do Vale dos Reis nas margens do Nilo. Cada um dos sete mausoléus representa a personalidade do respectivo monarca e foram concebidos como palácios funerários. Entre eles, os mais notórios são os mausoléus de Duc Duc, Khai Dinh e Minh Mang, monumentais construções de influência barroca, por vezes, às quais não escapam elementos ornamentais sino-vietnamitas. A influência francesa em Hué, reflectida nos antigos edifícios administrativos, alguns dos quais transformados em hotéis, vive igualmente do outro lado do rio Perfume, sempre com as suas sete flores de lótus, na margem oposta da cidade imperial. Dois impérios não cabem na mesma margem.

Durante a guerra do Vietname, os relatos davam conta de uma cidade de “estradas lamacentas sulcadas por camiões do exército e pessoas a correr à chuva com trouxas, soldados envoltos em ligaduras a vaguear pela lama da monção da cidade destroçada ou a espreitar pelos canos das espingardas das traseiras de camiões sobrecarregados”, escreveu o mesmo Theroux em 1973. “Os movimentos das pessoas tinham uma simultaneidade de angústia” e a “cidade tinha um aspecto castanho-escuro de profanação, as máculas dos ataques entre charcos a crescer”. Como se isso não bastasse, Hué também foi violentamente destruída por um incêndio, mas foi reconstruída várias vezes numa espécie de obrigação de Sísifo. À aristocracia, a cidade juntou-lhe a tenacidade.

 

Hoi An, a iluminada

A mulher move-se ligeiramente curvada sob o peso da don ganh, a vara comprida em cujas extremidades transporta dois cestos com cachos de bananas que tenta vender a quem passa nas margens do rio Hoài. O mais natural é que alguém a faça parar para registar um dos clichés mais típicos do país: uma mulher, um chapéu cónico e o don ganh. Apesar do peso que lhe causa profundas deformações nos ombros, a mulher posa para o turista. Ao lado, uma mulher passeia o seu ao dai, calças e blusa comprida, roupa tradicional feminina, e posa, com glamour, como uma estrela de cinema asiático num Wong Kar-Wai. O álbum de fotografias é uma obsessão para os noivos — é mais importante que o próprio casamento. Ambas preservam uma cultura ameaçada por uma sucessão histórica de confrontos violentos.

Mas, afinal, Hoi An sobreviveu a tudo, quase incólume, com a sua bela ponte japonesa em madeira, que data do século XVI e que foi reconstruída várias vezes, o monumento mais emblemático da cidade. Mas também com os seus vários pagodes e templos em homenagem de Quan Am, a deusa da misericórdia, a popular lady Buda, cuja estátua e veneração são generalizadas — dois terços da população é budista. Ou as suas ruas estreitas e repletas de comércio dedicadas ao turismo: lanternas de papel ou de seda, em forma de balão, t-shirts estampadas com o rosto de Ho Chin Minh — cuja biografia oficial publicada pela Comissão de Estudo do Partido Comunista do Vietname classifica como o primeiro comunista do país e um dos fundadores do partido comunista francês — ou a estrela da bandeira nacional, posters do comboio Hanói-Saigão ou, claro, os chapéus cónicos. Em suma, os souvenirs expectáveis. A serenidade de Hoi An contrasta com o movimento das compridas avenidas das cidades reconstruídas, como Da Nang ou Nha Trang, que crescem como o corpo de adolescentes.

Na parte central da cidade e nas duas margens do Thu Bon, o silêncio só é interrompido pela suave música das esplanadas ou pelo leve torpor de um motociclo, como se tratasse de um insecto tranquilo e nada ameaçador. Atravessar uma rua não tem a complexidade e riscos da travessia numa das avenidas de Da Nang, nas quais ninguém pára. Debaixo da ponte, deitado num barco, há quem encontre uma silenciosa protecção para o sol.

Esta cidade tem um turismo próprio, diferente daquele que procura o resort da praia. Possui os seus pequenos hotéis, os cyclos (riquexós a pedal que percorrem a cidade), passeios de barco, um mercado autêntico com bons restaurantes, escovilhões coloridos de todos os tamanhos que um vendedor anuncia com um megafone instalado na sua motorizada. Excentricidade para o etnocentrismo europeu!

A cidade vive exclusivamente do turismo, pelo que, de alguma forma, se uniformiza. Durante o dia, o calor paralisa-a até meio da tarde e, depois disso, volta a pulsar até bem tarde, como todo o seu comércio de rua e a quantidade incontável de restaurantes de todos os formatos, preços e feitios. À noite, milhares de lanternas iluminam-na. A Ásia, na verdadeira acepção da palavra. Hoi An tem ainda outras particularidades: é a única cidade do país com restrições à circulação de motociclos — e imaginem como é difícil fazê-lo numa cultura que vive do movimento em duas rodas — e que obriga os comerciantes ao uso de balões-lanternas nas suas lojas. Não há, talvez, outra cidade no país onde as influências chinesas, japonesas e europeias sejam tão evidentes, fruto da encruzilhada comercial em que se tornou nos séculos XVI e XVII. Em 1999, o que a UNESCO fez ao atribuir-lhe a classificação de Património da Humanidade foi reconhecer a sua importância histórica e, acima de tudo, a sua excepcionalidade.

 

Nha Trang, o mar do Sul da China e a osmose com o rio

 

Nha Trang, já no sul da costa central do Vietname (como se lhe referem), é a capital (tem sido até aqui) do turismo de praia. Ao longo da sua costa em meia-lua, dos seus seis quilómetros em formato de foice, os hotéis posicionaram-se com a mesma particularidade: todas as janelas têm vista de mar. É o que apregoam todos os hoteleiros. E o que conta em Nha Trang é o mar, seja deste lado, ou do outro, algures numa das várias ilhas que a circunda. Umas são mais remotas do que outras, mas todas elas se dirigem a um turismo de luxo, exclusivo e privado, com uma clientela que miscigena o tradicional turismo europeu na demanda do sol com o novo turismo asiático (com o chinês à cabeça) na descoberta e usufruto da ascensão. Alguns desses hotéis chegaram ao ponto de criarem teleféricos sobre o mar para o transporte de clientes entre a cidade e uma ilha. Outros preferem uma filosofia mais sustentável, um jargão tão na moda quanto o orgânico, como meio de dizer que o turismo também pode ser consciencioso. E pode, de facto.

Forçosamente, o investimento turístico fará com que a cidade vá absorvendo mão-de-obra e vá crescendo em progressão geométrica. Neste momento, Nha Trang deverá ser habitada por cerca de 400 a 500 mil pessoas e o mais provável, a confirmarem-se as estatísticas mais ordinárias, é que esse número ultrapasse largamente os 600 mil daqui a dez anos. Não admira. Cidade eminentemente turística, Nha Trang poderia pertencer a qualquer ponto do globo, com os seus resorts, as lojas de artesanato e lembranças, os restaurantes ou os bares. E como qualquer outra cidade com este perfil, não pensem que não existem backpackers por cá. Mas, como em qualquer outra cidade com estas características, basta um pequeno desvio para encontrar a verdadeira realidade de um país, disponível para quem a queira conhecer.

E há algo mais a fazer aqui, para além do mar, da piscina, do mergulho ou do spa? Há, claro que sim. Mas talvez não sejam as razões mais imediatas para a visitar. Para que conste, Nha Trang possui os seus museus de Oceanografia ou de homenagem ao suíço Alexandre Yersin (um médico que se tornou um ídolo local), os seus pagodes e igrejas — há até uma catedral católica de influência francesa. Dois monumentos merecem ser destacados para mergulhar nos vestígios da história vietnamita: o pagode de Long Son (com o seu enorme Buda branco, no topo de uma montanha de 800 metros de altura, sentado em posição de lótus e de olhos fechados) e as torres Cham de Po Nagar. Po Nagar, um complexo de templos, também no cimo de uma montanha, é dos vestígios mais importantes dos Cham, que governaram a região até ao século IX e que hoje é uma minoria confinada a algumas comunidades, onde o hinduísmo é a prática corrente e Shiva a deusa mais adorada. Do complexo Cham inicial, com os seus tijolos cor de barro, só restam quatro das 10 torres (ou kalan) que se estimam terem sido construídas entre os séculos VII e XII.

Daqui obtém-se uma das melhores vistas da cidade, reverso da sua costa luminosa. Lá em baixo, aos pés da montanha, corre um rio e nas suas margens há um bairro de pescadores. É lá, entre a ponte nova e a ponte velha da cidade, que mora o Vietname sem turismo (local ou internacional). Essa Nha Trang habita em casas de madeira e telhado de zinco enferrujado, assentes em estacaria, debruçadas sobre as águas e sempre em osmose com o rio. E vive nos barcos de pesca pintados de azul, com uma linha vermelha longitudinal no costado e as janelas de quadrícula azul e branca, quase encavalitados uns nos outros como as pirogas no Níger. Essa Nha Trang está sempre em osmose com o rio. Como a osmose da outra com o mar do Sul da China.

 

Guia prático

Quando ir

Na prática, a zona central do Vietname tem duas estações. A estação seca inicia-se em Abril e termina em Agosto e a chuva é constante entre Setembro e Fevereiro. O pico do calor regista-se nos meses de Julho e Agosto, quando as temperaturas podem ultrapassar os 40 graus. E há que contar com a possibilidade de um tufão, sobretudo de Agosto a Novembro. A melhor altura para visitar Hué ou Da Nang é entre Fevereiro e Março. A estação das chuvas em Nha Trang é mais curta: inicia-se em Novembro e termina em Dezembro.

 

Como ir

A Vietnam Airlines é a opção mais natural. A companhia área, que integra a aliança da Sky Team, voa a partir de Paris, Londres ou Frankfurt para Hanói e para Ho Chi Minh. São frequentes as ligações entre as duas principais cidades do país e Da Nang e Nha Trang, que possuem recentes e modernos aeroportos internacionais (com voos para outras cidades da Indochina). Um voo entre Paris e Hanói demora pouco mais de 11 horas e entre Frankfurt e Ho Chi Min mais de 12. Os voos entre Da Nang e Nha Trang têm uma duração de cerca de uma hora. Recentemente, a companhia anunciou quer a abertura de novas ligações, já para este ano e em 2015, a partir de outras capitais europeias, quer a compra de novos aviões para a expansão da sua frota.

 

O que fazer

Para além da trilogia praia/praia/praia, é possível, claro, dedicar algum tempo ao spa, ao mergulho, snorkeling ou até ao ginásio. Ao golfe e ao ténis. Mas também é possível (e mais do que aconselhável) visitar locais como a cidade imperial de Hué ou passear pelas ruas iluminadas de Hoi An, cidade classificada como Património Mundial da UNESCO. Existem ainda uma série de pagodes e templos de inspiração budista que merecem uma visita atenta, assim como as seculares casas chinesas de madeira. Os táxis são eficientes, encontram-se a qualquer hora e os motoristas não ultrapassam os 50 quilómetros horários — o limite máximo de velocidade. E não é preciso discutir o preço: o taxímetro funciona plenamente.

 

Onde ficar

Da Nang

O Angsana Long Co é um dos resorts de cinco estrelas mais recentes na cidade. Situado no sopé de uma montanha verdejante, o resort ocupa 280 hectares e possui um canal pelo qual é possível navegar. Na mesma cidade, o Fusion Maia é igualmente um resort de cinco estrelas, com uma piscina debruçada sobre o mar. Local relaxado e de bom gosto. Todos os quartos possuem jardim e piscina no exterior, com a maior das privacidades. O Intercontinental é a escolha mais luxuosa. Gigantesco e opulento, o Intercontinental de Da Nang, ligeiramente afastado do centro, tem a sua baía privada (na verdade, ocupa a península de Son Tra), um funicular para transporte dos hóspedes e um luxo, digamos, asiático. À cidade de Da Nang, apesar desta nova apetência pelo luxo e por segmentos de mercado mais altos, não faltam hotéis e resorts sobre a praia, para todo o tipo de preços.

 

Hué

O La Résidence, nas margens do rio Perfume, é um bonito hotel de arte déco que se apropriou do edifício que em tempos foi a residência do governador francês na antiga cidade imperial vietnamita. São várias as peças déco que fazem parte do mobiliário do hotel e que o distinguem de toda a oferta hoteleira da cidade e, talvez, de toda a região. A casa data da década de 1930 e é nela que se situam os quartos com mais ambiência histórica e estética. O gerente executivo do hotel fala português: Sérgio Arias é um brasileiro de 32 anos apaixonado pela Ásia.

 

Nha Trang

O Novotel é uma opção de acomodação na cidade, pois situa-se na marginal de Nha Trang e todos os quartos têm vista para a cidade e para as ilhas em frente. É só atravessar a rua e estender a toalha. No Evason Ana Mandara, não é necessário atravessar a rua e levar a toalha. A praia é já a seguir e muitos dos bungalows têm vista para o mar. Numa das ilhas diante, o Six Senses Ninh Van Bay é, certamente, um dos mais esplendorosos resorts do país. E não só, acreditem. O resort ocupa a baía de Ninh Van e as escarpas de uma ilha habitada apenas por pequenos macacos. É todo ele construído em madeira, com uma arquitectura irrepreensível e quartos descomunais, aos quais não faltam piscinas individuais no exterior e com vista para o mar. São 58 quartos sobre a praia, recheada de corais, e montados ora junto ao areal ora sobre enormes rochas de origem vulcânica. Algumas das piscinas dos quartos foram mesmo escavadas nas rochas. O transporte é feito de lancha e uma viagem demora cerca de 20 minutos.

 

Na Internet

http://centralcoastvietnam.com/

 

 

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