Fugas - Viagens

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  • Es Portitxol, no Norte da ilha, é um porto de abrigo por onde passaram piratas em tempos imemoriais, um lugar idílico com águas translúcidas e refúgio dos pescadores que aqui chegavam utilizando as suas motocicletas
    Es Portitxol, no Norte da ilha, é um porto de abrigo por onde passaram piratas em tempos imemoriais, um lugar idílico com águas translúcidas e refúgio dos pescadores que aqui chegavam utilizando as suas motocicletas
  • Sant Joan permanece envolta numa serenidade nostálgica, as crianças brincando ao final de tarde no adro da igreja; não muito longe,
    Sant Joan permanece envolta numa serenidade nostálgica, as crianças brincando ao final de tarde no adro da igreja; não muito longe,
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Ibiza, a ilha que é um inferno no Verão ainda tem dez lugares no paraíso

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Só este ano, serão sete milhões de turistas, números astronómicos que tendem a aumentar, tal a popularidade de um espaço onde os anónimos procuram imitar e seguir os passos das figuras mediáticas. Mas fora dos grandes circuitos hedonistas, a natureza e o mar, de braço dado com a solidão e a tranquilidade, revelam todos os seus encantos, segredos ocultos de Ibiza que não deviam ser revelados.

Caótico!

As luzes de múltiplas cores projectam-se na parede e pelo chão de ladrilhos, enquanto Toni French, sempre de sorriso rasgado, fixa o olhar ora no computador, ora nas dezenas de botões que se espraiam à sua frente, sobre uma mesa de madeira envelhecida.

- Quando chego ao aeroporto e recordo a minha primeira vez na ilha, já lá vão 18 anos, é a palavra que me ocorre.

Esta noite, sob um céu onde não parece faltar uma única estrela, o DJ nascido há quase 60 anos na Nigéria toca para um grupo de amigos reunido numa das casas mais antigas de Sant Josep, instalada no sopé de uma colina suave de onde se avista o vale profundo que se estende até Sant Agusti, banhada pela luz mortiça da igreja que ali se ergue desde os primeiros anos do século XIX.

- E o trânsito, a pressa das pessoas, que horror! Ibiza tinha a fama de ser uma ilha tranquila — e era, de facto —, o lugar ideal para umas férias relaxantes. Mas de há alguns anos a esta parte a serenidade deu lugar à irritabilidade e à exaltação. O que era um refúgio transformou-se numa coisa mundana. Um inferno.

Toni French está do lado da razão — o fenómeno da massificação de Ibiza é relativamente recente. Só este Verão, são esperados nesta ilha das Baleares cerca de sete milhões de turistas, números que superam as expectativas e incentivaram já os hoteleiros a promover um encontro para definir aumentos entre os 2 e os 10% para o próximo ano. Entre esses sete milhões, contabilizam-se 250 mil holandeses, quase dez vezes mais do que em 2008, quando não eram mais do que 35 mil. A explicação para o aumento da procura é simples: Verlifd op Ibiza (Apaixonado por Ibiza), filme de 2013 realizado pelo holandês Johan Nijenhuis, baseia-se na história de um futebolista que acaba de assinar um contrato multimilionário com o Barcelona. De férias na ilha, embrenha-se no triângulo drogas, sexo e álcool que, não estando totalmente desenquadrado da realidade, dá uma imagem errónea de Ibiza. Colinda van Diepen mudou-se há oito anos do Norte da Holanda (há cinco mil holandeses a residir permanentemente) para a ilha e não se recorda de um afluxo tão inusitado de turistas como nos dois últimos anos.

- Ibiza está na moda na Holanda. Na rádio, na televisão, nas revistas cor-de-rosa. De repente, parece que não há outro lugar no mundo para passar uns dias de férias. É uma espécie de atracção, um forte desejo de se cruzarem numa praia ou num clube quaisquer com gente mediática cuja fotografia viram publicada na imprensa. Por isso, quando chegam ao aeroporto, a grande maioria pergunta sempre pelos mesmos locais e em alguns deles, como Cala Jondal, por exemplo, se me sento num determinado restaurante, na praia, tenho a impressão de estar em Zandvoort, na Holanda: apenas ouço falar uma língua que me é familiar.

Toni French lança para a pista improvisada uma remistura de Stevie Wonder, emprestando ainda mais dinâmica a uma festa já bem animada. Colinda van Diepen é uma das convidadas do aniversariante que, sempre com um gin tónico na mão, divide a atenção entre o barbecue e os seus quatro filhos irrequietos. Ela, juntamente com o proprietário, Jose Ribas Cardona, mostra-me a casa, começando pela cozinha de pé alto, com as suas paredes grossas como corpos de elefantes.

- Ainda há bem poucos anos, qualquer casa ibicenca era auto-suficiente. Repare só no comprimento do forno.

Jose Ribas Cardona abre uma pesada porta de ferro incrustada na parede imaculadamente branca.

- Aqui se cozia o pão e se faziam assados em dias festivos. Agora, alugo a casa durante nove meses mas, no Inverno, é onde me reúno, à volta da lareira, com a família e os amigos.

A quinta é uma idosa com mais de 200 anos, o interior assemelha-se mais a um museu, com artefactos agrícolas que foram perdendo utilidade e hoje repousam em alpendres de madeira escurecida; no exterior, ainda são visíveis os espaços por onde se passeavam as galinhas, os porcos e as argolas onde eram presos os cavalos, memórias de uma memória que se perde no tempo.

Jose Ribas Cardona está apenas de passagem, para dar um abraço ao aniversariante, regressa agora a Sant Vicent, de onde nada mais se avista a não ser o mar.

- Amanhã, bem cedo, vou à pesca com amigos. Sant Vicent é o meu refúgio no Verão, admite o ibicenco, ao que acrescenta a holandesa:

- Por ser, aos olhos dos turistas, um pouco longe, Sant Vicent é um dos lugares mais tranquilos da ilha. Mas, especialmente no Norte, não faltam locais idílicos e solitários.

À meia-noite, ainda e sempre sob um mar de estrelas, Toni French toca a última música (é expressamente proibida depois daquela hora em eventos ao ar livre) e logo de seguida o vale mergulha no silêncio.

Os piratas de Es Portitxol

A manhã desponta bonita, um céu azul sem uma única nuvem e um sol radioso que se vai levantando com preguiça. De Sant Josep sigo em direcção a Sant Antoni, uma área maioritariamente ocupada, nos meses de Verão, por ingleses ruidosos que, denotando pouco respeito pelos locais, transformam ruas e vielas numa lixeira a céu aberto depois de errarem em tronco nu pelo passeio marítimo, vermelhos como lagostas acabadas de pescar. Uns quilómetros para lá, abandono a estrada que conduz a Santa Agnès e tomo uma outra, rumo a Sant Mateu. No preciso momento em que passo uma cooperativa agrícola, a paisagem, até aqui urbana, transforma-se radicalmente, mostrando vinhedos bem tratados e uma profusão de árvores e de terrenos cultivados que anunciam a proximidade de alguns dos segredos bem guardados de Ibiza. Há uma pequena escola à esquerda, não mais do que 15 alunos, antes de chegar a um entroncamento onde, aos sábados, funciona um interessante mercado activo de produtos locais e, escassos metros para diante, sempre na direcção de Sant Mateu, um trilho à direita que leva o viajante ao milenário Poço de Forada, palco de danças e festividades no segundo domingo de Outubro e com duas pias (antigas azenhas) cujas origens remontam à época púnica-romana (entre os séculos II a.C. e I d.C.).

De volta ao asfalto, um extenso pinheiral espraia-se à nossa frente, um ou outro ciclista sofre sob o sol impiedoso, quase não há tráfego por este território moldado na serenidade e muito menos quando, virando à esquerda, circulo pelo antigo caminho de Sant Mateu, uma pequena povoação onde resplandece a sua igreja caiada de branco, reflectindo, de quando em quando, a sombra dos poucos que passam por aqui, muitos deles de bicicleta. O primeiro segredo de Ibiza já não está distante, mas antes ainda tenho de chegar a Illa Blanca, com o seu complexo turístico, os seus bares tranquilos e mesas ocupadas por gente em busca do sossego na ilha que ainda conserva recantos mágicos.

Um pedregulho aconselha os automobilistas a deixar o carro no parque, à sombra dos pinheiros, antes de iniciar o percurso a pé, íngreme, rumo ao desconhecido. Fragmentos de alcatrão recordam que o acesso já foi mais fácil, a vegetação é espessa, as panorâmicas sobre o mar, aqui e acolá, cortam a respiração, as águas azuis, de diferentes tonalidades, em contraste com o verde, com os penhascos que se pintam de uma multiplicidade de amarelos e castanhos. Um trilho, camuflado entre as árvores, abre-se numa curva pronunciada, nada mais me acompanha do que o ruído dos meus passos entrecortado pelo silvo de um pássaro solitário, tão grato para com a natureza como eu por escutar o suave murmúrio do mar. Um jovem loiro, vestindo uma t’shirt de uma qualquer maratona nos Estados Unidos, é o único com quem me cruzo nesta manhã esplendorosa, um rapaz cansado que, agradecendo o facto de lhe facilitar a passagem, apenas levanta a mão, sem pronunciar uma única palavra, em sinal de respeito por quem respeita a existência dos desportistas.

E vou caminhando, perscrutando iates órfãos de tudo menos de água, pequenos rochedos compondo a moldura e um ou outro barco à vela no horizonte. Até que, de repente, as rochas, com o seu peso bíblico, se perfilam, deixando ver pedaços de água de um verde-garrafa que, como um magnetismo, apressam os meus passos. Subitamente, desfeita uma pequena curva, o primeiro segredo de Ibiza surge diante dos meus olhos, uma baía de águas calmas, as suas minúsculas e rudimentares casas de pedra onde os pescadores, mais ontem do que hoje, guardavam os seus barcos após um dia ou uma noite de faina. Sento-me por longos minutos, fito as colinas erguendo-se do mar para o céu azul, a sua vegetação, veredas conduzindo a lugares incertos, um cenário perfeito para um filme de piratas. O mar está calmo, só a natureza produz ruídos, faço uma retrospectiva da conversa que tive, na véspera, em Sant Josep, com Pep Saliner, um vizinho da festa à qual Toni French deu colorido.

- O meu pai era pescador, pescava de noite, com luz, mais calamares do que qualquer outro peixe. Eu, cheio de orgulho e de coragem, recordo-me de ir com ele vezes sem conta para o mar. Mas lembro-me com mais nitidez do dia do meu sétimo aniversário. Consegui pescar sete peixes e, nessa altura, não cabendo em mim próprio de felicidade, dei por finalizada a minha missão.

Olho para cá e para lá, uma âncora aqui, um barco acolá, os acessos básicos às construções que protegiam as precárias embarcações. Mas não avisto um único pescador, apenas avivo na memória as memórias de Pep Saliner.

- Em Ibiza, ao contrário do que acontecia em Maiorca ou em Barcelona, havendo pouco ou muito peixe, o preço não sofria oscilações. Nessa altura, há muitos, muitos anos, a ilha era um mar de pescadores, todos eles profissionais. Hoje, não resta mais do que um em Cala D’ Hort, outro em Cala Vedella — e é um cubano que reside em Ibiza há quase 20 anos — e mais um par espalhado por pequenos portos. A actividade não compensa, ter um barco, pagar impostos e material, feitas as contas ao peixe que se pesca e aos preços praticados por países exportadores, deixou de ser rentável. E os jovens, as novas gerações, não vão para o mar, não querem ser pescadores, buscam o lucro fácil em meia dúzia de meses na área do turismo.

Com tanta vontade de guardar segredo, ainda não escrevi onde me encontro nesta manhã de uma luz tão delicada, tão diáfana. Estou em Es Portitxol, na parte norte de Ibiza, neste porto que a natureza construiu quase sem ajuda humana, observando as suas águas translúcidas, descansando depois de imitar os passos de piratas, de invasores e de simples pescadores que viam neste lugar mágico um porto de abrigo sem paralelo em toda a ilha. E, uma vez mais, Pep Saliner e as suas palavras assaltam-me o cérebro.

- Os trilhos foram construídos de forma a que os pescadores pudessem utilizar as suas motocicletas.

Não tenho nenhuma. Mas tenho tempo. E subo, subo, ao longo da ladeira escarpada que bordeja o mar.

A piscina de Cala de Xarraca

Sant Joan está envolta numa serenidade nostálgica, os meninos brincando no adro da igreja, os pais entregues aos prazeres das tapas nos restaurantes tranquilos. A estrada sobe, a caminho de Portinax, já popularizado pelo turismo, mas pelo meio, escondidas, surgem praias onde a presença humana quase não se manifesta. Uma estrada de terra batida enche-me o carro de pó, um hotel em ruínas faz-me hesitar mas, alongando a vista, a pequena praia de Cala d’en Serra, protegida pelos seus rochedos rugosos e com a sua faixa de areia suave, convida-me a descer ainda mais, para me deitar naquela que foi considerada, não há muitos anos, pelo diário inglêsThe Guardian, como uma das melhores praias da Europa. Todo este mediatismo provocou alguma ansiedade nos turistas mas Cala d’en Serra nunca chega a estar verdadeiramente lotada e, se é verdade que quem a povoa ainda vive nos tempos de antanho, não é mentira que meia dúzia de braçadas, para a direita, proporcionam um momento ímpar de privacidade antes de regressar à praia para uma bebida refrescante no familiar chiringuito bem enquadrado na natureza.

Por Portinax passeia-se o turista globalizado e o melhor é continuar ao longo da estrada que me leva de volta a Sant Joan, não sem antes me deter em Cala de Xarraca, a praia à qual os locais baptizaram piscina gigante, com as suas dúzias de ilhotes. De um deles, numa queda elegante de costas, fazendo uma pirueta no ar, lança-se um jovem para as águas cristalinas, observado por umas dezenas de turistas que preguiçam na praia. Ao longo dos últimos anos, Cala de Xarraca, uma das mais bonitas de Ibiza, tem vindo a atrair cada vez mais visitantes mas, caminhando para a esquerda ou nadando uns metros para a direita, reencontrará a tranquilidade perdida por uns minutos — há aqui um pouco de exagero porque Cala de Xarraca, com apenas um restaurante, nunca chega a apresentar-se verdadeiramente movimentada.

Os segredos multiplicam-se e não muito distante aguarda-me outro, depois de, saindo da estrada principal, percorrer uma estreita faixa de asfalto que não tarda a dar lugar a uma pista mais convidativa a veículos todo-o-terreno. Um cão, de pêlo negro como um corvo não fosse a poeira, vem aninhar-se ao meu lado, oferecendo-me um olhar meigo que faz desviar o meu do cenário magnificente que me é dado a contemplar. Calò de S’Illa, também conhecida como Moon Beach, seduz facilmente o viajante, um território de paz que ganha uma expressão ainda mais grandiloquente quando o sol, cansado e impregnado de tonalidades avermelhadas, mergulha no mar, deixando na semipenumbra as ilhas que parecem flutuar nas águas dóceis.

De S’Aigua Doça a Es Canaret

Ao cimo, Sa Talaia, que é, de todas as montanhas de Ibiza, aquela que está mais próxima do céu; no sopé, algumas nuvens brancas ondulando ao sabor da brisa fraca; mais para baixo, logo depois de passar Es Frigolar, um bar onde são raros os turistas e em grande número os locais, sou recebido de forma hospitaleira na Cas Saliner, ouvindo com prazer as histórias infindáveis de Francisca Ferrer Ribas, 90 anos, uma das poucas sobreviventes tipicamente ibicencas, nos costumes e na fala, um sentido de humor ao qual nem o filho, Pep Saliner, resiste, respondendo com estridentes gargalhadas às piadas da mãe que aqui vive há 63 anos.

- Sempre me vesti assim, pelo menos desde os meus oito anos. Quer uma foto minha? Com sombrero? Este é muito grande.

Francisca Ferrer Ribas apoia-se na sua bengala para se sentar. Já alimentou as galinhas e o cão, como faz habitualmente sem recorrer à ajuda da família. Um lenço cobre parte da cabeça mas deixa ver restolhos de cabelo branco. Sentada, dobra-se facilmente para agarrar a peça de roupa que agora toca o chão de cimento. É um avental, por baixo um vestido, por baixo, ainda, uma combinação, tudo de cores negras.

- No Inverno, quando faz frio, são seis.

O filho, fazendo-nos companhia, assenta com a cabeça.

- Nós, os ibicencos, temos um pouco de berberes. Em tempos, nos funerais, também os homens usavam um manto negro que lhes cobria a cabeça e o corpo. Francisca Ferrer Ribas faz muitas perguntas, dá menos respostas e quase não se queixa da sua saúde.

- Agora tenho dificuldade em andar, com este calor sinto-me cansada mas antes, quando era uma menina, bem mais bonita do que agora, corria mais do que um carro.

Ri-se muito, uma expressão delicada, meiga. Para Francisca Ferrer Ribas, os turistas não a incomodam, vive a sua vida, não lhe interessa a dos outros.

- Ainda me lembro do dia em que, pela primeira vez, vi um grupo de turistas. Senti tanto medo que me escondi, até eles passarem, atrás de umas árvores.

Deixo a Cas Saliner e lanço-me à estrada, um trânsito já intenso que abranda no momento em que Santa Eulària, lugar de eleição dos alemães, fica para trás. O asfalto penetra na vegetação, como uma cobra, em ziguezagues, até desaguar na rotunda de Sant Vicent; em frente a praia, para a esquerda, subindo, subindo, espera-me mais um segredo da ilha. A sinalização do trilho está meio oculta entre as árvores, ao fim de breves minutos, escutando apenas os sons da natureza e perscrutando retalhos do mar, chego ao alto de uma falésia, grato pelo quadro perfeito que me é dado a ver, as rochas abraçando as águas, três ou quatro turistas gozando a plenitude do silêncio que impregna S’Aigua Dolça e a acalmia do mar em distintos tons de azul. O desabamento de terras não facilita a descida mas, com precaução e a ajuda de uma corda num ou noutro troço, acabo por desaguar na praia, a respiração ofegante superando o suave marulho das águas que namoram os seixos.

Agora que o calor começa a poupar a terra, cruzo a pequena povoação de Sant Vicent de Sa Cala, com a sua igreja recortando-se no centro, e embrenho-me por uma faixa de alcatrão estreita, com uma vista soberba sobre o mar mas em algumas partes desoladora, árvores calcinadas tombadas como cadáveres, uma paisagem lunar e dramática, consequência do grande incêndio de 2010 que destruiu extensas áreas de pinheiros. Há um projecto de reflorestação e, aos poucos, a vegetação começa a dar sinais de vida, descendo do alto das colinas até ao mar, ao encontro de Port de ses Caletes, uma das praias mais tranquilas de toda a ilha e onde, desapiedado de pressa, sou recebido por uma solidão que me convoca para uma quietude sonhadora.

Os efeitos do incêndio são visíveis ainda quando a estrada sobe até San Joan mas os pinheirais, de um verde viçoso em contraste com o azul do céu, não tardam a caracterizar a paisagem. Es Canaret é o próximo destino, o último do dia que vai emitindo os derradeiros suspiros, constituindo uma espécie de desafio que se justifica plenamente quando a praia revela todo o seu charme, as águas funcionando como espelho da natureza, da vivenda que se assemelha a um castelo, trepando o dorso da suave montanha, e dos abrigos dos barcos. Na verdade, são duas praias mas uma delas, mesmo em frente à ilha que domina Es Canaret, apenas é acessível depois de muitas braçadas — e não serão menos de 300 ou 400 metros em águas profundas.

De Ses Balandres a Cap Negret

O dia começa como terminou o anterior, uma prova de esforço que me leva, não sem alguma demora, a Ses Balandres, não muito distante de Santa Agnès, uma aldeia que me encanta, especialmente no Inverno, pela sua ruralidade e, no Verão, pelas suas festividades que conduzem a memória do viandante até tempos imemoriais, com as suas procissões, as suas gentes em trajes típicos e a sua atmosfera mergulhada em nostalgia. Mesmo para exploradores profissionais, Ses Balandres não é fácil de alcançar — e essa é a explicação para o isolamento mas não um obstáculo para os pescadores que, no passado, aqui edificaram esconderijos para os seus barcos e estaleiros básicos. Da praia, avista-se, na baía em frente, um rochedo em forma de arco, a Ses Margalides, uma beleza harmoniosa que funciona como estímulo para encetar o caminho de regresso.

A estrada entre Sant Josep e Cala d’Hort é uma das mais panorâmicas de Ibiza mas antes de atingir essa praia já globalizada faço um desvio até Cala Truja, ao longo de uma picada. Vista de cima, a praia pode revelar-se uma desilusão mas não se deixe impressionar negativamente: umas escadas nas rochas vão revelando pequenas maravilhas e, num instante, a minúscula praia mostra-se, com as suas águas tão transparentes quanto adormecidas. De novo no topo do penhasco, presencio uma cerimónia, um casal de noivos e convidados, todos de branco, sentados em cadeiras brancas, holandeses que decidiram casar em Ibiza, mesmo em frente a Es Vedra, a ilha mágica que tanto se afunda no mar como sobe no céu. Observo-os, em silêncio, e evoco palavras de Francisca Ferrer Ribas.

- Eu, a minha família e amigos, tínhamos por hábito subir ao topo de Es Vedra, carregados com um piquenique.

A simpática ibicenca desconhece que, por razões ambientais, já não é possível pôr o pé em Es Vedra. Os tempos mudam.

- Nessa altura, não havia missa onde eu vivia. Saía ainda de noite, a minha mãe acompanhava-me até o dia começar a nascer, eram duas horas e meia a caminhar, até à igreja de Sant Josep.

Imutável permanece uma parte de Cap Negret, a despeito das muitas vivendas que foram sendo construídas de um dos lados do cabo. Invisto pelo caminho que nasce junto à igreja de Es Cubels, uma das zonas mais ricas de Ibiza, passo um portão que conduz a duas vivendas (é um caminho público) e, ao fim de trinta minutos, estendo-me na Secret Beach, uma vez mais só, escutando o mar e seguindo com o olhar um ou outro pássaro, como deseja o meu corpo e a minha alma. Daqui, pela tarde fora, não avisto um único dos sete milhões de turistas, qual formigueiro enlouquecido, que se entregam a tantos outros prazeres.

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