Fugas - Viagens

  • Vista da muralha Mosteiro de Santa Clara
    Vista da muralha Mosteiro de Santa Clara Miguel Nogueira
  • O aviso, em português, de que o funicular está fora de serviço
    O aviso, em português, de que o funicular está fora de serviço Miguel Nogueira
  • Cemitério Prado do Repouso
    Cemitério Prado do Repouso Miguel Nogueira
  • A ver o Douro
    A ver o Douro Miguel Nogueira
  • Miguel Nogueira
  • Mercearia São Nicolau
    Mercearia São Nicolau Miguel Nogueira
  • Cartazes num muro do bairro São Nicolau, Bonfim
    Cartazes num muro do bairro São Nicolau, Bonfim Miguel Nogueira
  • A ver o Douro
    A ver o Douro Miguel Nogueira
  • A ver o Douro e as pontes
    A ver o Douro e as pontes Miguel Nogueira
  • Na imagem, vêem-se lavatórios de casas de banho comunitarias
    Na imagem, vêem-se lavatórios de casas de banho comunitarias Miguel Nogueira
  • Bairro Herculano
    Bairro Herculano Miguel Nogueira
  • Mercearia do sr. Armando, Bairro Herculano
    Mercearia do sr. Armando, Bairro Herculano Miguel Nogueira
  • Capela dos Alfaiates
    Capela dos Alfaiates Miguel Nogueira
  • Muralha do Mosteiro de Santa Clara
    Muralha do Mosteiro de Santa Clara Miguel Nogueira
  • Mosteiro de Santa Clara
    Mosteiro de Santa Clara Miguel Nogueira
  • Ilha São Nicolau
    Ilha São Nicolau Miguel Nogueira

O Porto é uma estória que Germano Silva lhe vai contar

Por Patrícia Carvalho

O jornalista e investigador da história da cidade do Porto escolheu alguns dos seus percursos favoritos pela cidade e juntou-os no livro "Caminhar pelo Porto". Há dias partilhou um desses passeios com a Fugas e, como é seu costume, mostrou-nos a cidade que está para lá daquilo que vemos quando a olhamos.

O pequeno grupo de turistas está encavalitado na muralha fernandina, a que se acede através de uma porta na parede da Igreja do Mosteiro de Santa Clara, e vê um Porto que passa ao lado da maior parte dos visitantes. A guia sorri, ao ver passar Germano Silva, no seu passo certeiro, longe de apontar para os 82 anos do jornalista e cronista da cidade. Ele cumprimenta-a. Já se conhecem de se cruzarem de outras andanças. Ela ganha a vida a mostrar o Porto aos turistas, ele fá-lo por gozo, voluntariamente, por amor.

Ela poderá olhar para lá da Ponte Luís I, do metro, do casario do centro histórico, e indicar que, lá ao longe, num recanto que já não se vê dali, ficam as ruínas do Convento da Madre de Deus de Monchique, cenário final do romance Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, e construído no século XVI por ordem de um casal rico — D. Pedro da Cunha Coutinho e a esposa, D. Beatriz de Vilhena —, após uma promessa. Mas se for Germano Silva a falar-lhe de Monchique, ele vai contar-lhe outra história. “Havia um barqueiro que ia tocar madrigais às freiras e a madre abadessa fez queixa à polícia. Foi o Amândio Barros [historiador] que me falou nisto. E a queixa existe mesmo. O homem defendeu-se, dizendo que ela tinha era ciúmes, porque ele antes costumava cantar para ela.”

Germano Silva conta este Porto que vê, de certeza, com uns olhos diferentes dos nossos, sempre com um sorriso no rosto. Ali, na muralha fernandina, os turistas aglomeram-se no ponto mais alto, tentando abarcar todo o rio Douro que corre, lá em baixo, para a esquerda e a direita, sob um céu azul limpo. Mas Germano já nos está a contar outra história. “Diz-se que a primeira comunicação telegráfica sem fios foi feita aqui”, desfia, já depois de ter apontado as laranjeiras e limoeiros aos nossos pés, plantados pelas freiras do antigo Mosteiro de Santa Clara. “Havia aqui uma freira que mandava os doces de Santa Clara aos frades Agostinhos [do Mosteiro da Serra do Pilar, do outro lado do rio]. A cesta levava uma pomba e, quando os doces chegavam, os frades soltavam-na, com um recado amarrado na pata e ela regressava aqui, com a mensagem”, conta.

Descemos a muralha, deixamos para trás a fonte que, como nos conta Germano, costumava estar no claustro do mosteiro, antes de ser transferida para as traseiras do edifício, cruzamos o pátio que nos poderia levar ao interior da igreja, não estivesse ela fechada, e estamos de novo no Largo do Primeiro de Dezembro, onde o nosso passeio devia ter começado. É que é aqui que começa um dos sete percursos a pé que Germano Silva incluiu no livro Caminhar pelo Porto, editado em Junho pela Porto Editora. O livro que o jornalista “sempre quis escrever”, como revela na apresentação da obra.

A ideia surgiu dos passeios pela cidade que Germano Silva orienta, no último domingo de cada mês, e que têm cativado cada vez mais entusiastas. “As pessoas pediam-me, diziam-me: ‘E se eu não puder ir, mas quiser fazer o percurso depois, não há um guia que me oriente?’” , conta. Agora há. Da Praça da Liberdade a São Bento, da Batalha à Ribeira, do Infante ao Passeio Alegre, do Passeio Alegre à Praia do Ourigo, de Soares dos Reis ao Bolhão, de Carlos Alberto à Igreja de Cedofeita e de Santa Clara ao Prado do Repouso (o percurso que Germano escolheu para a Fugas), fica-se a ver um pouco do Porto que o jornalista vê quando percorre estas zonas da cidade.

O que significa que em cada esquina há uma história, em cada varanda de ferro forjado uma possibilidade, em cada nova artéria uma antiga quinta do bispo ou de algum nobre, em cada viela uma personagem que Germano recupera. Ver o Porto pelos olhos de Germano é estar mais atento à cidade com que nos cruzamos diariamente. De que outra forma se pode explicar que nunca tivéssemos reparado na Capela de Nossa Senhora de Agosto, ou Capela dos Alfaiates, que está mesmo ali, plantada no meio da via, com a Rua do Sol a passar-lhe a um lado e a Rua de S. Luis a correr-lhe pelo outro?

O Porto dissipado

A capela está fechada (o horário afixado no exterior explica que só abre entre as 14h e as 17h, de segunda-feira a sábado e para a missa das 8h15, ao domingo), mas no seu guia a pé Germano conta-nos que “o interior é intensamente iluminado pela luz que entra através de um amplo janelão aberto na fachada” e que o retábulo maneirista “está dividido em oito painéis que representam cenas da vida da Virgem”. No século XVI, a capela estava instalada em frente à Sé, mas haveria de ser demolida em 1940, para ser reconstruída, treze anos depois, no local onde hoje está instalada. “Estive aqui na altura do Natal, com um grupo de 250 pessoas. Pedi a chave ao senhor da Confraria dos Alfaiates, para mostrar o interior, mas não cabíamos todos lá dentro, tive de contar a história mais do que uma vez, para todos ouvirem.”

A ele já o tentaram “institucionalizar”. Propuseram-lhe parcerias com agências de turismo. Uma mulher em busca de prenda ideal para o marido quis que Germano organizasse um passeio à medida do aniversariante. Que lhe pagava, disse-lhe. Mas ele recusou. “Eu faço isto voluntariamente, por gosto”, explica. As décadas de conhecimento adquirido alimentam as crónicas que escreve semanalmente para o Jornal de Notícias e para a revista Visão e também os vários livros sobre o Porto que já publicou. O resto é distribuído, sem avareza, por todos os que o queiram ouvir.

Ali, na Rua do Sol, que “começou por ser a Viela das Tripas”, morava “gente ligada à igreja”. Lá ao fundo, onde hoje não há nada, havia o casarão do conde de Samodães, cujos domínios se estendiam até ao miradouro das Fontainhas, e onde, já muito depois do conde, funcionou a Escola Comercial de Oliveira Martins, que Germano Silva frequentou quando, aos 17 anos, e depois de trabalhar durante seis na Fábrica de Lanifícios de Lordelo, decidiu que tinha de mudar de vida. Agora, aponta o terreno vazio, junto à Rua do Duque de Loulé, e diz: “Tinha aulas à noite e vinha a pé, todos os dias, de Lordelo do Ouro para aqui. As pessoas perguntam-me: ‘E andas a pé?’ Pois ando, ando”, ironiza.

Nas Fontainhas espreitamos de novo o rio, ele procura, entre a folhagem, a Capela do Senhor d’Além, entaipada nas encostas de Gaia, diz que era ali, em Quebrantões, que ficavam as “emparedadas” na Idade Média — “um castigo horrível que se aplicava às mulheres que se portavam mal, que eram deixadas no interior de um espaço fechado, apenas com uma abertura pequena para lhes passarem água, até morrerem”, explica —, volta-se para subir, em direcção à Rua de Alexandre Herculano e mergulha no Bairro Herculano, cujas ruas percorre sem qualquer hesitação.

Entra-se no bairro, uma espécie de ilha gigante, animada e colorida, e é como se o Porto urbano se dissipasse. Há vasos em cada porta, tanques de roupa por todo o lado, velhos a apanhar sol junto a fachadas bem tratadas. Germano ziguezagueia pelas ruas desta aldeia incrustada na cidade até à mercearia do senhor Armando, instalada no bairro há 33 anos. “Já foram três, mas agora só há uma”, explica Germano Silva antes de entrar e se perder uns minutos à conversa com o merceeiro.

Regressamos à rua, passamos pela Praça da Alegria, entramos na Rua de S. Victor, com as suas muitas ilhas e Germano, que cresceu numa, mas não ali, lamenta que estes espaços típicos portuenses não tenham tido, até agora, obras que lhes dessem todas as condições e permitissem a instalação de novos moradores. “Em S. Victor temos estas ilhas de má memória, eram sítios de muitas epidemias, mas as ilhas não têm de ser só um estendal de misérias. Existe, nestes sítios, uma comunidade de partilha muito acentuada, que devia ter outra atenção”, defende.

É em S. Victor que Germano entra noutra mercearia, a do senhor José. “José Marques de Sá Júnior”, como o próprio se apresenta. Velha, com as prateleiras de madeira até ao tecto mal cheias de produtos a transpirar pó e com marcas que nem reconhecemos, a mercearia está ali desde 1949 e o dono, de 86 anos, aparece retratado no livro do jornalista. Germano mostra a página ao merceeiro, disse que trouxe o livro para lho oferecer, autografa-o e ouve o homem contar como já tinha mandado comprar um exemplar e como, agora, o irá oferecer à “cozinheira”, que também manifestara a vontade de ter um.

Excesso de paixão

Fora de portas, anda-se um pouco mais e espreita-se de novo o Douro. Germano explica que ali havia azenhas, e que o pequeno bairro/ilha que se avista mais abaixo na encosta se chama, por isso, Bairro dos Moinhos. Mais uns passos e entramos no Cemitério do Prado do Repouso — mais um dos espaços da cidade que foi, em tempos, uma quinta do bispo.

No primeiro cemitério público a ser inaugurado no Porto, em 1839, Germano encaminha o passo para o túmulo de Teresa Maria de Jesus, com a sua imagem em mármore de um frágil Santo António. No livro Caminhar pelo Porto, e à Fugas também, Germano conta como o túmulo foi mandado construir por Henriqueta Emília da Conceição, uma bela prostituta que odiava os homens por, supostamente, ter sido violada em criança e que se apaixonou irremediavelmente por Teresa, pouco antes desta adoecer com tuberculose e morrer. Durante o enterro, que se realizava à noite, Henriqueta pediu para se despedir, sozinha, da sua paixão e, sem que a vissem, cortou-lhe a cabeça e levou-a para casa.

Descoberta a macabra recordação foi julgada, mas absolvida, por se considerar que agira num “excesso de paixão”. O passeio que tínhamos combinado podia terminar aqui, enquanto vemos as rosas vermelhas presas entre os braços do santo (postas por quem, não se sabe) e uma mulher de cabelos brancos a orar junto ao túmulo, antes de afagar o braço da estátua e se afastar. Mas estamos com Germano Silva e enquanto estamos com Germano Silva há sempre mais uma história para contar.

Saímos para o Largo de Soares dos Reis e Germano podia apenas apontar para o edifício ali ao lado e lembrar-nos que ali funcionou a sede da Pide. Mas, isso, não seria típico de Germano. O que ele nos conta é que havia uma jovem portuense que, determinada a casar rica, partiu para o Brasil em busca desse pretendente sonhado. Encontrou-o e regressou a Portugal, com 16 anos, casada com “um riquíssimo general” com mais de 80 anos. Instalaram-se ali, naquela casa e, após um dia mais agitado em que o velho participara num desfile ataviado com farda e condecorações, este regressou a casa, afogueado e assumindo-se cansado, sentou-se no cadeirão e morreu. “A jovem viúva não se atrapalhou e mandou chamar um pintor para que fizessem o retrato do marido, ali sentado, e diz-se que a pintura ainda demorou uns dias”, sorri.

O retrato, garante, ainda existe, noutro edifício. E, depois, Germano despede-se e vai embora. Não quer boleia. Vai a pé até ao metro e há-de continuar a pé até ao próximo destino. O Porto já não deve ter segredos para ele, mas já não pode mostrar-lhe o que ele mais gostava de ter visto — apenas porque já não existe. “A calçada de Vandoma, quando ali viviam os Távoras. Era ali que ficava o aljube eclesiástico, era a entrada principal na cidade antiga.”

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