Fugas - Viagens

O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

A independência foi como um filho da Índia e do Paquistão que pereceu ao fim de 73 dias. Desde então, já lá vão quase 70 anos. Caxemira tem vivido períodos turbulentos intervalados com tréguas que fazem o viajante sonhar em bater à porta do paraíso. A acalmia parece estar de volta, a magia do vale permanece intacta, como imutável se apresenta a vida nesta cidade com gentes hospitaleiras.

Jammu começa a ficar para trás, com o seu calor sufocante, a sua desordem sempre em ordem e os seus eternos ruídos, o autocarro avança golpeando a paisagem cada vez mais rural, buzinando por nenhum motivo e cansado de serpentear por aquela estrada que se enche de poeira e de curvas que abraçam montanhas bíblicas.

Be soft in my curves.

A serpente vai subindo, o rio Chenab, ao fundo do imponente desfiladeiro, corre como um cavalo enlouquecido, furioso nas suas tonalidades prateadas, um estímulo à vertigem. Qualquer motorista, conduzindo os seus camiões que, por vezes, se assemelham a jardins com rodas, sabe que um segundo de distracção pode ser fatal. Mãos grossas e calejadas segurando o volante, abordam com delicadeza as curvas de uma das estradas mais perigosas do mundo, por vezes arrastando-se penosamente, a eles e aos seus veículos-demasiado-pesados, quase ao ritmo da passada de um homem, enquanto lançam olhares fugazes às frases manchadas de sensualidade.

Darling I love you but not so fast.

Era o único turista no autocarro que, anunciando a sua chegada com estridência, como se aquele fosse um momento festivo para as gentes da vila, ainda fez uma paragem demorada em Kud antes de me deixar em Ramban e depois de passar a garganta de Digdol, com os seus 400 metros, um cenário que impõe respeito e é palco de frequentes acidentes. Segundo estatísticas da polícia de tráfego de Jammu e Caxemira, estado do norte da Índia com mais de dez milhões de habitantes, só no ano de 2011 morreram mais de mil pessoas neste eixo comercial e outras dez mil ficaram feridas em resultado de mais de 7000 acidentes. Uma percentagem elevada (66%) de mortes que está muito para lá dos números nacionais (37%) e que se fica a dever, na maior parte dos casos, ao congestionamento, às más condições da via e à irresponsabilidade dos condutores.

Save your life for your wife.

As advertências são dirigidas, na sua grande maioria, a homens casados mas, na verdade, um elevado índice de irresponsabilidade e inexperiência entre os jovens é apontado como uma das principais causas de morte nesta estrada que, devido ao conflito no vale de Caxemira, opondo a Índia e o Paquistão, esteve encerrada ao trânsito durante todo o Verão de 2008, afastando os turistas. Na artéria que rasga Ramban ao meio, a esta hora muito concorrida, sou exemplar único dessa espécie, alvo de todos os olhares e sorrisos, eu solitário, eles solidários, desenhando gestos para a carrinha se deter e me conduzir, sem pressa, a Srinagar, ao longo daquela serpente que ainda se arrasta por mais centena e meia de quilómetros. Um grupo de indianos, em viagem de férias, indolentes e silenciosos, são os meus companheiros ao longo de horas intermináveis, ao crepúsculo e também quando apenas os faróis iluminam a noite negra e fantasmagórica, altura em que o cansaço os vence e a vida, no interior do confortável veículo, se parece resumir a mim, ao motorista e a Pankaj Singh, o seu ajudante, seis olhos postos na estrada.

This is a highway, not a runway.

O trânsito é intenso, motiva sucessivas paragens e manobras delicadas que provocam uma sensação de medo que a penumbra se encarrega de exacerbar. “Não há outro lugar assim no mundo. Srinagar tem algo de mágico. Não há um indiano que não sonhe com uma viagem, pelo menos uma vez na vida, ao vale de Caxemira”, enfatiza Pankaj Singh enquanto ajeita o seu turbante na cabeça, precisamente no momento em que os faróis iluminam um marco e eu começo a idealizar um mundo em que os acidentes matam muito mais do que balas, contrariamente a um passado manchado de sangue, com eternos conflitos que já roubaram a vida a mais de 70 mil pessoas.

Love the neighbour but not while driving.

A crise entre Índia e Paquistão pela possessão de Caxemira é tão antiga como os dois países, remonta à meia-noite do dia 14 de Agosto de 1947, com a divisão em dois estados: de um lado o Paquistão, do outro a União Indiana. Caxemira, vendida pelos britânicos ao marajá Gulab Singh em 1846, era, por sua vez, um estado com uma população maioritariamente muçulmana mas governado por um hindu — o também marajá Hari Singh, que vivia na ilusão de uma independência face aos novos todo-poderosos da região. Pura ilusão. Após 73 dias, a 22 de Outubro de 1947, o vale é invadido pelas tribos vindas do Paquistão que, ao longo do seu percurso, semeiam o terror, matando e pilhando com uma violência sem paralelo. Hari Singh solicita ajuda à Índia e, como preço a pagar pelo apoio militar, Lord Mountbatten (para os menos íntimos Louis Francis Albert Victor Nicholas Mountbatten, último vice-rei e primeiro governador-geral da Índia independente), pede ao marajá para assinar um documento de adesão à União Indiana, tratado que é rubricado a 26 de Outubro, um dia antes de as tropas indianas entrarem em Caxemira e expulsarem os invasores paquistaneses para lá do Uri. De então para cá, a disputa entre os dois países manteve em permanente angústia um povo sofredor, o som das metralhadoras rompendo o silêncio do vale silencioso, um futuro incerto.

As trevas à nossa frente, a estrada estendendo-se agora em linha recta, as montanhas foram vencidas e o vale recebe-nos, anunciando Srinagar, com as suas luzes tímidas, na linha do horizonte. O motorista permanece silente, Pankaj Singh continua a emitir sinais de simpatia. “Já tens onde pernoitar? Eu posso ajudar, não te preocupes.” No meu ser não há sintomas de preocupação, apenas uma certa ansiedade em conhecer a cidade que está tão perto do céu — e ela entra-me, mais tarde do que esperava, pelo campo de visão, motorizadas quebrando o silêncio da noite, rumores imperceptíveis vindos de restaurantes e das bancas de comida ainda abertas àquela hora, para um lado a Karakoram, para o outro a cordilheira de Pir Panjal.

Sob o céu cheio de estrelas, o momento teve algo de hilariante mas também de gratificante. Invoco-o como um exemplo de tolerância de que o mundo começa a ficar estéril mas, rindo-me para dentro, numa mistura de sentimentos, traço uma analogia com uma sandes — um católico sentado no meio de uma motorizada, conduzido por um muçulmano e protegido por um sikh, Pankaj Singh, rompendo a serenidade de uma zona residencial em busca de um quarto para um corpo exausto mas, na minha qualidade de católico, com a alma a explodir de gratidão. Mais morto do que vivo, bebi o chá que me foi oferecido antes de me arrastar para uma cama arejada por duas janelas abertas sobrepujando as águas serenas de um rio onde se reflectem as luzes mortiças das casas ancoradas numa das margens e a ponte que as liga.

Os anos da fome

Foi um latido teimoso, com uma constância capaz de pôr um homem em pulgas, a causa de um despertar agitado mas logo serenado pelo quadro que se me oferecia à contemplação desde uma das molduras viradas para o rio. A frescura da manhã invadia o quarto, uma casa-barco quase não se mexia nas águas do Jhelum, tributário do temível Chenab, e os sons pareciam amigáveis. A chuva começou a cair, aumentando de ritmo, as gralhas continuaram a voltear no céu cinzento. Quando a cortina se abriu e o sol fez a sua aparição em força, impiedoso, desci até à casa-barco, sem destino e sem destinatário, para, antes de mais, como se impõe em Caxemira, beber um chá para o qual sou convidado. A mulher, de olhos tristes, fita o infinito, como quem olha sem ver, e envolve nos braços a sua filha com um cabelo tão curto que mais se semelha a um rapazinho; o homem, de amplos sorrisos e menos palavras, prepara a bebida. “Tempos muito difíceis. A ausência de turistas, provocada pelas perturbações políticas, provocou danos irreparáveis na economia do vale. Era uma luta diária, constante, ter qualquer coisa para comer e, muitas das vezes, não mais do que o suficiente para as crianças. Fome, desespero e mais fome”, recorda Shabir Ahmad Pakhtoon, proprietário do Young Sweet Star enquanto lança os olhos no chão como se experimentasse um sentimento de vergonha perante a família silenciosa.

No início desta década, poucos foram os que, temendo a insurgência anti-Índia, se aventuravam a pôr o pé em Caxemira; por esse tempo, segundo dados oficiais, o vale não recebeu a visita do que mais de 27 mil turistas locais; lentamente, após lutas quase sem tréguas, a acalmia banhou Srinagar e, desde 2010, ano em há registo dos derradeiros violentos confrontos, a cidade e o seu vale começaram a atrair visitantes, predominantemente indianos — em 2012, num total de quase um milhão de turistas, apenas 23 mil eram estrangeiros, um sinal revelador do sentimento de insegurança que ainda assalta viandantes de outras nacionalidades.

“Hoje o comércio está praticamente encerrado e não é por ser um dia festivo — é uma forma de protesto. Mas não te assustes, mesmo que vejas soldados bem armados nas ruas, é apenas uma medida de prevenção”, aconselha-me Shabir Ahmad Pakhtoon enquanto eu mergulho em números: a despeito da desmilitarização, acredita-se que meio milhão de soldados (um por cada 20 habitantes do estado) estão colocados em Jammu e Caxemira, assim como são visíveis arame farpado aconselhando distância de lugares mais sensíveis e bunkers em pontos nevrálgicos ou simples guaritas devidamente camufladas. “As gentes de Caxemira são boas, gostam de receber, o visitante é bem-vindo. E há sempre tempo para um chá porque quem nos visita tem de sentir-se em casa, mesmo se, como tu, é apenas nosso convidado. Queres mais um biscoito? Outro chá?”

Olho a filha e a mãe, as duas ainda envolvidas num abraço que se eterniza, sinto vontade de permanecer. “A partir deste momento, não vais tardar a sentir por que razão Caxemira é conhecida como o paraíso na terra.” As palavras de Shabir Ahmad Pakhtoon soavam a emoções e eu já as sentia, cada vez mais próximas, incentivando-me a conduzir os meus passos quando a minha cabeça ainda permanecia ali, numa total inércia, deixando o tempo correr, pausadamente, como as águas do rio ao qual viro as costas com a sensação de já carregar comigo um fragmento sólido do paraíso.

Soldados armados até aos dentes que se abrem para outra arma que é o sorriso caminham para cá e para lá na praça onde se projecta a torre no relógio. Raras são as lojas comerciais abertas ao público mas um pequeno restaurante, numa esquina, convida-me a entrar para um pequeno-almoço que não tardará a ser acompanhado com uma especialidade local, comprada para mim por um atleta que me jura ter conquistado uma medalha de bronze, não sei em que modalidade, nos Jogos Asiáticos, em 2006, no Qatar. A atmosfera é familiar, o paraíso bate à porta não na forma de paisagens mas de atitudes, dar parece ser uma prioridade em relação a receber, talvez porque os pobres têm mais dignidade; aqui pelo menos, neste recanto tantas e tantas vezes conturbado, mais vezes ainda esquecido, carregam-na como se de um filho se tratasse, um filho que não ousam abandonar.

O murmúrio chega até mim, primeiro dissimulado, depois evidente, as águas agitando-se à passagem das shikaras, o majestoso lago Dal potenciando a sua beleza, nas suas cores, nos sons, nas gentes, na quietude, na melancolia, na dádiva que os céus lhe ofereceram. Há lugares na terra dos quais não é necessário falar de monumentos, de atracções, do muito ou pouco que se pode fazer ou visitar — basta senti-los, como um prato que nos chega à mesa e ao qual as nossas mãos estão interditas de tocar, ainda que nada nos impeça de cheirar. Assim é Srinagar, magnificente na sua beleza natural, como natural é a sua gente.

Da minha posição privilegiada avisto o médico aproximando-se de barco, o vendedor, o barbeiro, outros homens de negócios, uns mais lícitos do que outros, a vida vivendo o seu ritmo diário, sem nada nem ninguém perturbar. Gosto desta família, habituei-me a visitá-la, a passar o meu tempo com ela, numa imobilidade quase total, apenas com tempo para dar tempo aos diálogos, às histórias, à contemplação do lago. “Acordava todos os dias bem cedo interrogando-me: o que vou eu arranjar para os meus filhos comerem? Não havia negócio, era como se o relógio do tempo se tivesse detido, tudo o que carregava no estômago, eu e a minha mulher, era fome. Nós não queremos fazer parte da Índia, nós não queremos integrar território paquistanês, tudo o que nós desejamos é pertencer a Caxemira. E, talvez por isso, sofremos, mais ainda do que o nosso estômago», conta-me Youssuf, não sem deixar correr uma lágrima, na casa-barco de onde avisto, sonhando, o grande lago Dal, com as suas embarcações-residências espelhando-se na água, nas suas múltiplas tonalidades, fazendo adivinhar mais um pedaço do paraíso.

Perfume intenso

Por este lugar abençoado pelos deuses e imortalizado, desde a década de 1960, por George Harrisson, num tempo em que, rasgando com notas o silêncio do lago, aprendeu a tocar sitar numa casa-barco, o viandante deve deixar-se levar pelo tempo, umas vezes indolente, outras desperto, sem mapas, sem planos ou talvez com um único: o de ser feliz numa etapa demasiado efémera da sua existência.

Duas jovens correm na minha direcção, respiração ofegante, solicitando-me uma fotografia, uma menina pontapeia uma bola multicolorida com a inocência das flores. Mais para lá, um casal na meia-idade veste trajes típicos de Caxemira para a pose tradicional, imitando aqueles que o fazem no lago, a bordo de uma shikara, sob anúncios de um tempo que não é deste tempo, de uma era fotográfica anterior à digital, quase esquecida mas para mais tarde recordar. Quem visita Srinagar acaba por desembocar, mais cedo ou mais tarde, em algum dos jardins construídos na era Mughal, ou no Shalimar Bagh, o mais famoso, ou no Nishat Bagh, o mais impressionante, protegido por montanhas imponentes recortando os céus, com as suas flores crescendo por todo o lado, os seus lagos em socalcos e as chinar, árvore nacional de Caxemira, bordejando trilhos que conduzem a pavilhões ou a fachadas de arcos elegantes. Com uma panorâmica privilegiada sobre o lago Dal, o Nishat Bagh, desenhado e construído em 1633 por Asif Khan, o irmão mais velho de Nur Jehan, imperatriz do Império Mughal e uma das mais poderosas e influentes mulheres do século XVII, é, muito mais do que um jardim, uma imagem poética e um retrato fiel da docilidade destas gentes e do clima.

A sensação perdura quando salto para dentro de uma shikara, essa espécie de gôndola que é o símbolo cultural de Srinagar, e me deixo conduzir ao longo do lago banhado de dourados, com os seus barcos de cores alegres resplandecentes ao sol que desce nos céus. Em Caxemira, nenhum estrangeiro tem o direito de possuir terra, uma interdição que remonta aos tempos da colonização e levou os britânicos a lançar para as águas do Dal os seus palácios flutuantes, muitos deles transformados hoje em hotéis luxuosos e mantendo, por uma questão de marketing, a toponímia inglesa. É no lago, com os seus 18 km2, que reside a verdadeira essência de Srinagar, a sua alma, no movimento charmoso das shikaras, levando e trazendo pessoas e produtos, nos seus jardins flutuantes e nos lótus em flor, a paisagem e a sua magia que permanece intacta, a despeito de todos os conflitos que martirizaram a região.  

A noite tomba sobre a cidade, as nuvens da cor do chumbo acumulam-se e enchem o céu. Da janela do meu quarto, a dois passos do Dal, vejo os relâmpagos incendiar a penumbra e, envolto nos meus cobertores, como um gato assustado, ouço a chuva caindo ruidosamente sobre os telhados de zinco de Srinagar. Recordo Youssuf, então mais animado:

- Em Bombaim a moda chega e ninguém sabe; em Srinagar, é o tempo.

Mercado flutuante

Dele não retenho o nome mas guardo a imagem do seu rosto cruzado por rugas como rios, a pele queimada do sol que preguiçosamente ainda se esconde, ao alvor do dia, o anúncio de uma luz sempre diferente à medida que a manhã se espraia. Homens ora afastam, ora aproximam os barcos, vivendo descontraídos mas inquietos, porque o momento feliz do reencontro, no mercado flutuante, com os amigos, pode não ser suficiente para encher estômagos necessitados nas horas vindouras. Os legumes e as frutas, mas também as flores, vão passando de mão em mão, mal o sol emite os seus primeiros raios quentes o mercado emite os seus últimos suspiros e, partindo no exacto momento em que chegam dois grupos de turistas carregados com as suas câmaras fotográficas, a shikara leva-me de volta através de canais tranquilos, mulheres lavando a roupa ou utensílios de cozinha nas suas águas, crianças dando vida, com as suas brincadeiras e os seus gritos, à manhã que avança. Ao cimo, envolto numa espécie de neblina e coroando uma colina proeminente, está o Hari Parbat Fort, a sentinela que vigia a cidade desde o século XVIII (acesso interdito ao público) e que, para os hindus, era, originalmente, uma ilha a partir da qual Vishnu (o deus da manutenção do universo que, com Shiva e Brahma, forma a trindade do hinduísmo) e os amigos derrotaram Jalodabhava, o mítico demónio do lago.

Um trilho estreito, trepando o dorso da colina arborizada, conduz-me a Shankaracharya Hill, também conhecida como Takht-i-Sulaiman (Trono de Salomão) e um lugar sagrado desde há 250 anos a.C., com o pequeno templo Shiva (século XI) recortando-se no cimo de todas as coisas. Visto desde as alturas, sob um céu sem nuvens, o lago, com as suas centenas de barcos, é ainda mais mágico; para o outro lado, a cidade antiga, com os seus telhados de zinco que quase não deixam ver as ruas e as suas gentes negociando como já o faziam em tempos imemoriais. Caminhar por estas artérias impregnadas de sons e cheiros é como entrar na máquina do tempo, regressando a um passado distante feito de velhos costumes e tradições seculares e carregado de misticismo quando, deambulando sem destino aparente, espreito lugares de culto, como a Jama Masjid, a principal mesquita de Srinagar, com as suas impressionantes 378 colunas (todas elas de um único tronco de um cedro-do-himalaia, árvore de grande porte que atinge 60 metros de altura e um diâmetro de três metros) segurando um tecto que abriga mais de 30 mil fiéis.

Mesmo em frente da Jama Masjid, está a pequena Rozabal, nos seus tons esverdeados, modesta e não menos controversa por conter um dos maiores mistérios do mundo: supostamente, a sua cripta acolhe o túmulo de Jesus Cristo e alguns estudiosos, debruçando-se sobre a temática, chegaram à conclusão de que Yuza Asaf não é outro se não Jesus Cristo. De acordo com tradições que datam do século I d.C. e de alguns trabalhos antigos em farsi, árabe ou sânscrito, Yuza Asaf era o Profeta de todas as crianças de Israel, crucificado pelo seu povo e que, tendo sobrevivido, rumou a Caxemira, por onde teria andado (mas também por outros locais da Índia, inspirando-se na religião budista) com a idade de 13 anos e até completar 29, uma teoria que pode soar, aos ouvidos de muitos, excêntrica ou blasfema. Verdade ou mentira, a tese ganhou maior consistência na década de 1980, quando o viandante russo Nicolas Notovitch terá descoberto, em Hemis Gompa, um centro espiritual na região de Leh, documentos que corroboravam esta hipótese e descritos no seu livro A Vida Desconhecida de Jesus Cristo.

Em todas as mesquitas por onde me aventuro, em Srinagar, não sinto, uma única vez sequer, que sou um intruso, os sorrisos e as palavras dóceis encorajam-me a entrar e a comunicar. Uma expressão viva de tolerância que não desaparece mesmo nos espaços onde os meus olhos apenas podem espreitar desde a porta, como sucede, a meio de uma manhã cinzenta, na Khanqah Shah-i-Hamadan, o mais bonito de todos os monumentos históricos da cidade. Ocupando uma área onde em tempos remotos se ergueu uma das primeiras mesquitas de Srinagar, foi fundada pelo santo persa Mir Sayed Ali Hamadani, alcunhado de Shah. Hamadani terá chegado a Caxemira em 1372, integrando um grupo de 700 refugiados que deixou o Irão após a conquista de Timur — na verdade é apontado como o responsável pela conversão de quase 40 mil pessoas ao sufismo mas também por ser o primeiro a ensinar aos indígenas a arte de fabricar os famosos tapetes persas.

Olho, uma vez mais, a cidade desde o alto da colina, Srinagar espraiando-se aos meus pés, serena, as balas não cruzam os céus, nada mais do que uma suave brisa, um povo hospitaleiro, benevolente e persistente que não quer ser da Índia nem do Paquistão. Apenas de Caxemira. As últimas horas da noite que antecede a minha partida são passadas numa casa-barco, no mesmo para onde os meus passos me levam sempre, na certeza de que ali sou recebido como se recebem os viajantes em Srinagar. Bebo chá, converso, limito-me a olhar as águas tranquilas do lago Dal, por vezes em silêncio. E não preciso de mais nada, apenas de saber que respiro. A shikara aproxima-se, carregada de mercadoria, e a noite estende-se até ser vencida pela madrugada, anunciando a alvorada pintada de cores melancólicas.

A estrada segue, cheia de curvas, de regresso a Jammu, como segue, até um futuro incerto, a memória cheia de memórias. Agora, muito do trajecto é a descer, quando ocorre a maioria dos acidentes, a serpente já se avista, ameaçadora, as gargantas com as suas bocas abertas que terminam bem lá no fundo.

If married divorce speed.

Srinagar, esse lugar que é o céu na terra, ocupa-me os pensamentos. Não hesito em colocá-lo entre os mais belos de todos por onde passei nesta vida errante. O céu não pode esperar, mesmo não existindo hora de visita.

GUIA PRÁTICO

Quando ir

A melhor altura para visitar Srinagar e o vale de Caxemira é entre os meses de Abril e Outubro, um período que contempla três estações do ano: a Primavera, entre Março e os primeiros dias de Maio, o Verão, até Agosto, e o Outono, que se estende até finais de Novembro. De Dezembro a Fevereiro, Srinagar veste-se com um manto de neve, constituindo a época ideal para os amantes do esqui. É importante ter em conta que o Verão coincide com a monção — começa em Junho e estende-se, gradualmente, de sul para norte, até cobrir todo o país (à excepção de Ladakh) mas Srinagar e todo o vale recebem chuvas fortes mas erráticas, com temperaturas que variam entre os 25 e os 35 graus, caindo por vezes drasticamente durante a noite. Na verdade, as estatísticas mostram que chove mais em Srinagar no mês de Março do que no período da monção, pelo que os meses entre Abril e Junho (época alta) se afiguram como os melhores para visitar esta parte do norte da Índia ou, se busca um pouco mais de tranquilidade, em Setembro e Outubro.

Como ir

Entre Lisboa e Nova Deli, e tendo como base as duas primeiras semanas de Setembro, as melhores tarifas são proporcionadas pela Lufthansa (520 euros) e pela Emirates (530), com escalas em Frankfurt e no Dubai, respectivamente. Nos voos comparados, a companhia aérea alemã, além de apresentar um preço mais em conta, implica menor tempo de espera nas ligações. Desde a capital da Índia, são várias as opções para chegar a Srinagar: pode viajar de comboio até Jammu e, daqui, de autocarro (cerca de 12 horas) ou de veículo todo-o-terreno (oito horas) para chegar ao Vale de Caxemira, uma viagem por uma estrada sinuosa, por vezes caótica, mas seguramente inesquecível. A outra possibilidade, mais rápida, é uma ligação aérea entre as duas cidades. A GoAir (www.goair.in), companhia low-cost com base em Bombaim, cumpre o trajecto entre Nova Deli e Srinagar em pouco mais de uma hora e a preços muito acessíveis (apenas 39 euros para um bilhete de ida e volta). A Spicejet (www.spicejet.com), a IndiGo (www.indigo.in) e a Jet Airways (www.jetairways), entre outras, também servem Srinagar.

Onde comer

Ao longo da Boulevard, abundam as pequenas bancas de comida barata, na maior parte vegetariana, a preços económicos e abertas pela noite dentro. Entre os restaurantes, as melhores alternativas passam pelo Mughal Darbar (Residency Road), com as suas especialidades de Caxemira, e pelo Lhasa Restaurant (Boulevard Lane, 2), numa atmosfera com motivos budistas ou no jardim muralhado.

Onde dormir

Se procura um pouco de luxo e de conforto, num ambiente relaxante, o Lalit Grand Palace é umas das melhores opções em Srinagar. Rodeado pela imponente cordilheira dos Himalaias e a poucos minutos do lago Dal, o hotel serviu de residência aos marajás (desenhado e construído por Pratap Singh em 1910) e foi alvo, há bem pouco tempo, de uma meticulosa renovação, oferecendo mais de uma centena de quartos e suítes, incluindo 10 cottages de luxo, bem como quatro restaurantes, spa, ginásio, piscina e uma elegante arcada comercial, com preços por noite desde 190 euros. Para viajantes com orçamento mais baixo, recomenda-se a Noor Guesthouse ou a Zeenath Guesthouse, ambas localizadas mesmo nas margens do lago Dal, ou, deixando-se embalar pelas águas calma deste, numa das centenas de houseboats, a forma mais típica de passar uns dias em Srinagar. Os preços variam consoante a época do ano mas vale sempre a pena recorrer à Houseboat Owners Association, na Residency Road, antes de fazer a sua escolha.

Informações úteis

Os cidadãos portugueses necessitam de passaporte com uma validade de, pelo menos, seis meses (no mínimo duas páginas em branco) e de obter um visto (52 euros) junto da embaixada da Índia, situada na Rua Pêro da Covilhã, 16 (perto do Estádio do Restelo, em Lisboa). As solicitações devem ser efectuadas online através do site https://indianvisaonline.gov.in/visa e, uma vez preenchido e submetido o formulário, deverá imprimi-lo e deslocar-se à representação diplomática munido dos documentos necessários e de duas fotografias (5x5 cm). A embaixada não aceita cheques ou cartões de crédito e os pedidos devem ser apresentados entre as 9h30 e as 12h, de segunda a sexta-feira, excepto às quartas, e estarão disponíveis nesses mesmos dias entre as 16 e as 17h. Se desejar, também é possível enviar o pedido através dos CTT, com uma carta registada e o envio de 2,50 euros para o retorno, um processo simples e pouco demorado. Se necessitar de qualquer informação extra, deve contactar os serviços consulares através do telefone 21 304 10 94 ou enviando um e-mail para consular@indembassy-lisbon.org.

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