Fugas - Viagens

O céu não tem hora de visita mas é tempo de ver Srinagar

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

A independência foi como um filho da Índia e do Paquistão que pereceu ao fim de 73 dias. Desde então, já lá vão quase 70 anos. Caxemira tem vivido períodos turbulentos intervalados com tréguas que fazem o viajante sonhar em bater à porta do paraíso. A acalmia parece estar de volta, a magia do vale permanece intacta, como imutável se apresenta a vida nesta cidade com gentes hospitaleiras.

Jammu começa a ficar para trás, com o seu calor sufocante, a sua desordem sempre em ordem e os seus eternos ruídos, o autocarro avança golpeando a paisagem cada vez mais rural, buzinando por nenhum motivo e cansado de serpentear por aquela estrada que se enche de poeira e de curvas que abraçam montanhas bíblicas.

Be soft in my curves.

A serpente vai subindo, o rio Chenab, ao fundo do imponente desfiladeiro, corre como um cavalo enlouquecido, furioso nas suas tonalidades prateadas, um estímulo à vertigem. Qualquer motorista, conduzindo os seus camiões que, por vezes, se assemelham a jardins com rodas, sabe que um segundo de distracção pode ser fatal. Mãos grossas e calejadas segurando o volante, abordam com delicadeza as curvas de uma das estradas mais perigosas do mundo, por vezes arrastando-se penosamente, a eles e aos seus veículos-demasiado-pesados, quase ao ritmo da passada de um homem, enquanto lançam olhares fugazes às frases manchadas de sensualidade.

Darling I love you but not so fast.

Era o único turista no autocarro que, anunciando a sua chegada com estridência, como se aquele fosse um momento festivo para as gentes da vila, ainda fez uma paragem demorada em Kud antes de me deixar em Ramban e depois de passar a garganta de Digdol, com os seus 400 metros, um cenário que impõe respeito e é palco de frequentes acidentes. Segundo estatísticas da polícia de tráfego de Jammu e Caxemira, estado do norte da Índia com mais de dez milhões de habitantes, só no ano de 2011 morreram mais de mil pessoas neste eixo comercial e outras dez mil ficaram feridas em resultado de mais de 7000 acidentes. Uma percentagem elevada (66%) de mortes que está muito para lá dos números nacionais (37%) e que se fica a dever, na maior parte dos casos, ao congestionamento, às más condições da via e à irresponsabilidade dos condutores.

Save your life for your wife.

As advertências são dirigidas, na sua grande maioria, a homens casados mas, na verdade, um elevado índice de irresponsabilidade e inexperiência entre os jovens é apontado como uma das principais causas de morte nesta estrada que, devido ao conflito no vale de Caxemira, opondo a Índia e o Paquistão, esteve encerrada ao trânsito durante todo o Verão de 2008, afastando os turistas. Na artéria que rasga Ramban ao meio, a esta hora muito concorrida, sou exemplar único dessa espécie, alvo de todos os olhares e sorrisos, eu solitário, eles solidários, desenhando gestos para a carrinha se deter e me conduzir, sem pressa, a Srinagar, ao longo daquela serpente que ainda se arrasta por mais centena e meia de quilómetros. Um grupo de indianos, em viagem de férias, indolentes e silenciosos, são os meus companheiros ao longo de horas intermináveis, ao crepúsculo e também quando apenas os faróis iluminam a noite negra e fantasmagórica, altura em que o cansaço os vence e a vida, no interior do confortável veículo, se parece resumir a mim, ao motorista e a Pankaj Singh, o seu ajudante, seis olhos postos na estrada.

This is a highway, not a runway.

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