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  • Maison des Soeurs Macarons
    Maison des Soeurs Macarons
  • A imponente Praça Stanislas, pouco conhecida fora de França, é, no entanto, uma das mais sumptuosas da Europa
    A imponente Praça Stanislas, pouco conhecida fora de França, é, no entanto, uma das mais sumptuosas da Europa
  • A estátua de Claude Gellée “Le Lorrain”
    A estátua de Claude Gellée “Le Lorrain”
  • Os macarons de Nancy
    Os macarons de Nancy
  • As madalenas de Commercy
    As madalenas de Commercy
  • A pena de ganso usada para retirar as grainhas de cada baga de groselha para as famosas compotas de Bar-le-Duc
    A pena de ganso usada para retirar as grainhas de cada baga de groselha para as famosas compotas de Bar-le-Duc

Lorena, a herança gastronómica chique da região da quiche

Por Fortunato da Câmara (texto e fotos)

Por aqui há compotas feitas com a precisão de um ourives, macarons, quiche, o famoso baba bêbado de rum e umas poéticas madalenas nada arrependidas de serem mais uma entre as gulosas especialidades da Lorena.

Cada uma das diversas regiões que perfazem a França pode contar a sua história recheada de milhares de outras, sejam elas acerca de invasões, resistência, lutas e conquistas, mas também sobre famílias poderosas, construções opulentas, banquetes epopeicos e uma vida social fortemente ancorada nas tradições locais. O percurso secular e rico do país confunde-se com a evolução da própria Europa – e uma parte desse processo fez-se naturalmente à mesa. Ao percorrermos um pouco do nordeste francês encontramos memórias gastronómicas distantes de um património que, afinal, nos é mais próximo do que imaginávamos.

Estamos na cidade de Nancy, no centro da região da Lorena, localizada num recanto do mapa hexagonal gaulês entre as regiões de Champanhe e da Alsácia. O primeiro impulso mental, e logo em seguida do estômago, foi palmilhar a cidade à procura da célebre quiche lorraine. O curioso é que, depois de exploradas algumas ruas do centro, deu para perceber que, além de cabeça e estômago, também seria necessário haver coração para aguentar a demorada busca por esta especialidade que tanto contribui para divulgar o nome da região. Algumas charcutarias exibiam vistosas tartes nas suas montras identificadas como quiche aux lardons. Inicialmente o nome soou estranho, por ser recorrente em diversos pontos da cidade, até que afinal se percebeu que a famosa quiche lorraine é conhecida localmente por esse preciso nome: quiche aux lardons. A diferença de designação não parece ser inocente, pois estas quiches de Nancy são tartes salgadas feitas a partir de uma base de massa quebrada guarnecida com uma voluptuosa mistura de ovos com natas, também conhecida como migaine. Os lardons são pequenos troços de toucinho fumado previamente salteados, que vão enriquecer (e protagonizar) o recheio da tarte. Existem variações a esta preparação base que são muito pouco consensuais. Na cidade de Metz, capital da Lorena, acrescenta-se queijo Gruyère à migaine, uma adulteração que os puristas e acérrimos defensores da versão de Nancy consideram retirar todo o protagonismo aos lardons, além de ser uma fusão desnecessária com ingredientes estrangeiros à região.

Os cânones da receita indicam que a migaine deve ser esbranquiçada, ou seja, ter uma quantidade de nata superior à de ovos. Em relação à origem da tarte quiche, a resposta é ambígua, mas sabe-se que tem reminiscências no século XVI, quando a Lorena se chamava Lothringem e fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico. Era então conhecida como küche em frâncico, o dialecto local da época, e só no século XVIII, com a região integrada na França, é que surgiu a derivação etimológica para quiche e começou a ganhar mais destaque. Gradualmente, a tarte foi-se dando a conhecer pela França e no século XX começou a conquistar outras mesas europeias. A versão da receita que acrescenta o queijo suíço Gruyère ao toucinho na guarnição do recheio – mesmo não sendo consensual em Nancy – é que fez a “quiche Lorraine” ser uma das tartes salgadas mais populares a nível internacional, colocando a Lorena no mapa-múndi da gastronomia. E esta é só uma das especialidades de que os lorenos podem orgulhar-se, pois tomando Nancy como ponto de partida podem fazer-se outras curiosas viagens à mesa dentro da região.

Não muito longe do centro, numa deambulação pelos 23 hectares do imponente parque de La Pépiniére, encontramos, numa curva arborizada perto da alameda central, a estátua de Claude Gellée “Le Lorrain”, um importante pintor barroco do século XVII que ficou para a posteridade devido às suas paisagens nórdicas – algumas das suas telas fizeram parte da recente exposição O Prado em Lisboa, no Museu de Arte Antiga. A escultura representa Claude ainda jovem, em pose artística, segurando uma paleta de tintas, provavelmente na época em que foi aprendiz do mestre italiano Agostino Tassi. Haveria de se tornar num artista consagrado, mas antes de se afirmar na pintura já tinha mostrado outros dotes artísticos na cozinha, quando, na sua juventude ficou associado à descoberta da massa folhada em França ao trabalhar como aprendiz de pastelaria, um feito que quase lhe custou a vida...

O desafortunado Claude nasceu em 1600 na localidade de Chamagne, a cerca de 40 quilómetros de Nancy, e desde muito jovem teve de aprender um ofício para ajudar a família. Quando o pai adoeceu, quis fazer-lhe um bolo para o animar e, ao arrepio dos conselhos do mestre pasteleiro, envolveu um grande pedaço de manteiga com massa, em vez de a misturar inicialmente a seco só com a farinha. O resultado foi um bolo leve e fofo que o pai apreciou muito, pois a massa folhou no forno devido à quantidade de manteiga que ele tinha incorporado. Foi melhorando a receita da “sua” massa folhada até que a fama atraiu a atenção dos irmãos Mosca, dois pasteleiros italianos que convenceram Claude Gellée a ir trabalhar para eles.

Graças à prodigiosa novidade, Luigi e Angelo Mosca abriram três novas pastelarias em Florença no espaço de um ano. Depois de aprenderem a receita da massa folhada, simularam um assalto com rapto e descartaram o jovem francês. Os cúmplices do crime deixaram Gellée desamparado e condoído em Nápoles com apenas 20 anos de idade. O rapaz viria a receber asilo na casa de um pintor alemão que lhe ensinou as técnicas a troco de trabalho como empregado interno. Claude Gellée permaneceu em Itália até falecer, em 1682, em Roma, após uma carreira de prestígio marcada pelas pinceladas naturalistas com que traçava as sua célebres paisagens sob o cognome “Le Lorrain”, que remetia para as suas origens. Os traços de sucesso da “sua” massa folhada em terras transalpinas ecoaram em Nancy, levando o antigo patrão ao suicídio.



As “irmãs macarons

Afastamo-nos desta história folhosa, e um pouco trágica, para caminharmos em direcção à saída deste emblemático jardim de La Pépiniére e partir ao encontro da Rue des Soeurs Macarons, topónimo que nos remete para o doce macaron que é a coqueluche da pastelaria parisiense e também uma prova de fogo de qualquer pasteleiro que queira exibir créditos profissionais. O percurso até esta rua é simples e directo, em contraste com o trajecto histórico desta iguaria, que foi igualmente atribulado, tal como o da massa folhada. Teve uma origem discreta e popular, muito longe de ser quase um ícone de sofisticação à escala planetária, como é visto hoje.

As primeiras indicações surgem em livros de cozinha do século XVII, entre eles o Traité de confiture (1689, autor anónimo), onde uma das receitas manda espalhar sobre papel macarons (pequenos círculos) de uma pasta cremosa feita à base de farinha de amêndoa, envolvida com açúcar em pó e claras batidas em castelo. Estes pequenos biscoitos secos, que se pensa terem chegado à corte francesa no século anterior através da rainha Catarina de Médicis, poderão ter sido inspirados nosmaccherone venezianos. Espalharam-se por várias localidades gaulesas de norte a sul do país, mas com a Revolução Francesa foi a versão de Nancy que começou a ganhar maior destaque, depois de as freiras Marguerite-Suzanne Gaillot e Marie-Elisabeth Morlot terem ficado desalojadas do mosteiro beneditino de Les Dames du Saint-Sacrement. O decreto revolucionário que ordenou a extinção de todas as ordens religiosas obrigou as irmãs a trabalharem como cozinheiras para sobreviverem. Receberam guarida a servir a família do médico da comunidade, Charles Gormand. O apelido do clínico foi quase premonitório do que iria acontecer às duas religiosas. A receita conventual dos seus biscoitos macarons foi um sucesso tão grande que elas começaram a ser conhecidas como as “irmãs macarons” e a venderem a especialidade gourmand à porta de casa do doutor Gormand.

O ponto de venda inicial situava-se no número 10 da Rua Hache, que hoje é apenas uma habitação particular, mas a memória perdura. Desde 1952, graças ao impacto que as devotas tiveram na época, a rua foi dividida em dois, ficando a parte da artéria onde elas oficiavam com o actual nome de Rue des Soeurs Macarons. Para quem ainda quiser conhecer e saborear estes antepassados próximos dos actuais macarons, a morada obrigatória é agora o número da Rua Gambetta, onde se situa a Maison des Soeurs Macarons (Casa das Irmãs Macarons), a poucas centenas de metros do local original.

A montra exibe folhas alvas de papel de forno inclinadas como molduras, onde se alinham uma dúzia de macarons em cada uma. Parecem ter sido ali fixados de propósito, mas estão apenas com a aparência exacta que têm ao sair do forno. A pasta brilhante e quase translúcida à base de amêndoas da Provença e claras batidas é tendida com um saco de pasteleiro em pequenas porções dispostas de forma simétrica sobre grandes folhas de papel, com uma precisão quase matemática. Os pequenos discos de massa vão ao forno por breves minutos, onde cozem uniformemente até ficarem com ligeiras fissuras à superfície mas húmidos no interior e com uma cor entre os tons pérola e champanhe. O segredo da confecção está hoje na posse do confeiteiro Nicolas Genot, dono da Maison des Soeurs Macarons e que recebeu a receita do seu pai Jean-Marie em 1991. Quando a família Aptel quis passar o negócio do fabrico dos macarons de Nancy o pasteleiro Jean Marie Genot comprou-lhes a fórmula “secreta”. Anteriormente, a receita já tinha estado na posse da família Moinel que a obteve através de Elisabeth Muller, sobrinha de uma das “irmãsmacarons” e que ficou como herdeira do segredo em meados do século XIX.



O rei sogro do rei

Ao entrarmos na loja, uma bancada com diversas “folhas” de macarons salta naturalmente à vista, mas há por aqui mais iguarias que fazem o nome da região aquém e além-fronteiras. Uma delas são as “pérolas da Lorena”, uns bombons semiesféricos feitos com uma pasta de fruta (tipo goma) de tom âmbar, recheados com aguardente de mirabelle, um destilado de uma variedade de ameixa muito usada em compotas e tartes da doçaria local. Os rebuçados de bergamota de Nancy são outro dos ex-líbris da casa, que também se destaca sobretudo devido à certificação de Indicação Geográfica Protegida (IGP). Estes rebuçados seculares são feitos a partir de uma pasta de açúcar aromatizada com essência de bergamota, fruto de perfume intenso da família dos citrinos. Emblemático e mediático é o baba du roi, clássico da pastelaria tradicional francesa que é igualmente conhecido em Portugal e cuja principal característica reside no facto de, depois de sair do forno e arrefecer, o bolo ficar a esponjar em rum por longas horas antes de ser servido.

Os rebuçados de bergamota e o bolo baba são duas especialidades que nos podem levar ainda mais longe na história da gastronomia lorena. Para isso despedimo-nos da Maison des Soeurs Macarons, viramos à direita ao sair da porta e volvidos pouco mais de uma centena de metros na Rua Gambetta encontramos a Praça Stanislas, que, apesar de ser pouco conhecida fora de França, é seguramente uma das mais sumptuosas da Europa.

A rectangularidade deste espaço público está projectada quase como se fosse uma sala de visitas de um palácio. De um lado a Ópera-Teatro e o Grande Hotel e do outro o Café Foy (Pavilhão Jaquet) e o Museu das Belas-Artes. Os quatro edifícios de traça gémea estão dispostos de forma simétrica, ladeando a vistosa Câmara Municipal, enquanto nos recantos ou artérias de saída da praça portões de ferro forjado com ornamentos dourados de cariz rococó conferem a acolhedora sensação de funcionarem como portas engalanadas com reposteiros de cretone num gigante salão de festas. Todo o conjunto é um hino ao planeamento urbano e uma declaração de bom gosto arquitectónico com elementos de estilo barroco e neoclássico. Ao centro, a estátua majestática do “rei” Stanislas Leszczynski, monarca polaco que foi duas vezes deposto do trono da Polónia, tendo partido para França, onde a sua filha Marie Leszczynska tinha ascendido à coroa por ter casado com Luís XV, em exílio definitivo.

Durante quase três décadas, Stanislas Leszczynski foi um verdadeiro mestre-de-cerimónias da região. O genro entregou-lhe o Ducado da Lorena sem lhe conferir quaisquer poderes políticos, pois apenas o queria manter ocupado e longe de interferir na sua corte. As relações com Luís XV eram frias e formais e apesar de ser o sogro do rei a sua chegada à Lorena foi recebida com desconfiança. O facto é que Stanislas foi muito além do título de duque e reinou plenamente a partir de 1737. Criou um conselho de finanças e comércio, uma biblioteca real, uma academia de letras, diversas obras sociais – algumas pagas do seu próprio bolso – e projectou a praça epónima, que na inauguração, em 1755, recebeu o nome do seu genro. Já com a monarquia extinta, os lorenos que haviam retirado a estátua de Luís XV substituíram-na pela actual, onde se pode ler na base a seguinte inscrição: “A Stanislas o benfeitor, a Lorena agradecida”.

Gratos estarão também milhares de gulosos que, sem provavelmente o saberem, se deliciam com algumas especialidades cujas origens estão relacionadas com o próprio Stanislas, como são os casos do famoso baba ao rum ou das madalenas que Marcel Proust imortalizou. Para as descobrir é preciso sair de Nancy e percorrer cerca de 40 quilómetros até Lunéville, localidade marcada pela imponência do seu castelo, que é nada mais nada menos que uma réplica de Versalhes, onde nem falta uma extensa alameda de jardins. Stanislas fixou aqui a sua residência até morrer em 1766, tendo montado até um salão do trono onde recebia membros da aristocracia local e convidados de honra. Nos faustosos salões deste castelo, conhecido como “mini Versalhes Lorena”, o duque viveu de facto à grande e à francesa, sem no entanto descurar o seu lado filantropo que o tornou um benemérito. Deliciava-se a saborear um bolo ali-baba, que era um tradicional kugelhopf (bolo franco-prussiano de massa de brioche recheada com passas) regado com uma calda de vinho de Málaga, rum e açafrão. A iguaria era depois flamejada, para gáudio do monarca, que a terá inventado em Wissembourg juntamente com o pasteleiro Nicolas Stohrer, aquando do seu primeiro período de exílio. Stanislas baptizou o bolo com o nome da sua personagem favorita do conto das “Mil e uma Noites”, o famoso Ali-Babá. Stohrer levou a receita para Versalhes em 1725 quando foi pasteleiro da rainha Marie Leszczynska, e em 1730 abriu o seu próprio negócio em Paris na Rua de Montergueil, onde fez fama e fortuna rebaptizando o bolo como baba au rhum e apresentando-o numa versão recheada com chantilly.

Muito além da predilecção por babas, o duque da Lorena era um gastrónomo apaixonado e curioso. Segundo nos conta Alexandre Dumas no seu Grand Dictionaire de Cuisine (1873), numa das visitas de Stanislas à sua filha Marie o duque pernoitou em Châlons-en-Champagne durante a longa viagem entre Lunéville e Versalhes (400kms), e na estalagem onde ficou hospedado saboreou uma sopa de cebola de sabor intenso, mas com tal suavidade de textura que ficou inebriado. Consta que o monarca não hesitou em levantar-se de madrugada e pedir ao cozinheiro da casa que fizesse de novo a sopa para ele e lhe explicasse a receita com todos os detalhes. Era igualmente um grande apreciador de merengues e por isso ajudou à divulgação da guloseima na corte de Luís XV, onde entretanto surgiram os bouchées à la reine, pequenas caixas de massa folhada que levavam diversos recheios – mais tarde viriam a ser conhecidas como vol-au-vents – e que foram criadas para serem um aperitivo delicado que a rainha pudesse colocar na boca de uma só vez de forma elegante.

Seguindo as palavras sábias de Dumas partimos de Lunéville. Viajamos até ao departamento de Meuse para visitar Commercy, uma localidade com pouco mais de 6000 habitantes onde vamos encontrar mais um belíssimo castelo barroco que em 1755 terá sido palco de uma festa organizada por Stanislas Leszczynski em que terão nascido as famosas madeleines. O motivo da celebração não ficou registado, mas foi certamente um evento formal para justificar a presença de Stanislas, uma vez que Commercy fica (hoje) a cerca de noventa quilómetros daquela que foi a sua residência oficial em Lunéville. Segundo relatos de investigadores locais, a sobremesa terá ficado em risco por causa de uma discussão na cozinha durante a qual o pasteleiro abandonou o castelo, situação que deixou o duque bastante apreensivo. Foi então que surgiu Madeleine Paulmier, jovem cozinheira da senhora Perrotin, que era marquesa de Baumont, e que se ofereceu para fazer uma receita que aprendera com a sua avó. A sobremesa foram uns bolinhos leves de massa esponjosa com um ligeiro sabor alimonado que agradaram tanto ao exigente palato do soberano que ele decidiu dar-lhes o nome de madeleines de Commercy.

Alexandre Dumas refere que, depois de o duque Stanislas ter saboreado as “madalenas”, a reputação do bolinho de Commercy estendeu-se por toda a França. O facto é que este bolo típico francês também granjeou prestígio fora do país, provavelmente devido à emotiva metáfora que o romancista Marcel Proust utilizou na sua obra À procura do tempo perdido, quando descreve a sensação de regresso à infância que as migalhas de uma madalena misturada com chá lhe provocaram.



A pena de ganso

No passado chegou a haver nove fabricantes de madalenas na vila, que as vendiam através das janelas aos passageiros da linha Paris - Estrasburgo durante a paragem do comboio na estação, mas agora restam apenas duas casas a fabricarem diariamente esta especialidade segundo a receita original. Encontramos uma delas numa moradia à saída de Commercy em direcção a Toul: a La Bôite à Madeleines, propriedade da família Zins. A loja é de facto uma autêntica caixa de madalenas, pois no seu interior há uma fábrica artesanal onde a iguaria é confeccionada totalmente à vista dos clientes, desde a mistura dos ingredientes até à embalagem em requintadas caixas de madeira decoradas com uma gravura do castelo de Commercy. E com um merci agradecido por mais um pouco de história nesta viagem lá partimos para a nossa derradeira paragem na Lorena.

Na pacata vila de Bar-le-Duc o destino era simples e situava-se na Rua de L’Étoile, 35, morada de um armazém de artesanato onde se mantém com orgulho o fabrico de umas peculiares compotas de groselha sem grainha. A particularidade que faz deste produto a “estrela” da região reside no facto de as grainhas serem retiradas manualmente de cada baga com a ajuda de uma pena de ganso cortada em forma de bisel. A primeira menção escrita desta especialidade remonta a meados do século XIV, quando era oferecida como um presente requintado entre a aristocracia francesa. A iguaria atravessou a época medieval até ao século XXI mantendo intacto o processo de fabrico.

Antes da Revolução Francesa existiam centenas de pequenos produtores, agora resta apenas a Maison Dutriez, dirigida pela simpática Anne que, quando se apercebe do nosso interesse pelos frasquinhos de compota em vidro facetado, se disponibiliza de imediato a fazer uma demonstração da técnica de épépiner cada baga de groselha. Anne Dutriez é uma entusiasta desta tradição secular e explica que uma épépineuse treinada pode libertar as grainhas a cerca de quatro quilos de groselhas durante um dia de trabalho, enquanto uma iniciada levará o mesmo tempo a preparar cerca de 500 gramas do fruto. O segredo reside no interior oco da pena de ganso, que permite recolher as sementes do interior da frágil baga apenas com uma ligeira pressão graças ao corte oblíquo que funciona como uma espécie de lâmina. As groselhas são depois ligeiramente fervidas numa calda de açúcar em tacho de cobre, apenas em porções de 1,5 quilos de cada vez para não ficarem esmagadas pelo peso umas das outras.

Devidamente colocadas em pequenos frascos de cristal com 85 gramas de compota, as groselhas retomam a forma redonda inicial, ficando quase incólumes no meio da calda de aparência vítrea e brilhante, características que fizeram esta especialidade lorena ser apelidada de “caviar de Bar”. Entre os que se deixaram seduzir ao longo dos séculos pela delicada guloseima estão a rainha Maria Stuart, o escritor Victor Hugo e o realizador britânico Alfred Hitchcock, conta-nos Anne, sem esconder o orgulho de manter clientes regulares desde Tóquio até Nova Iorque.

De regresso à estrada ficam para trás a quiche, a massa folhada, os macarons, o baba ao rum, as madalenas e a compota de groselhas – ou a certeza de que a extensa herança gastronómica da região Lorena é uma descoberta que vale bem a pena, sobretudo se a fome não for pequena...

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